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Três pandemias, 213 anos e portas abertas: como a Faculdade de Medicina da Bahia ajudou a cuidar do Brasil

'A gente não fechou nenhum dia', diz o diretor da Fameb, a primeira faculdade da América Latina e ligada à Universidade Federal da Bahia

  • Foto do(a) author(a) Thais Borges
  • Thais Borges

Publicado em 29 de março de 2021 às 05:00

 - Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Nara Gentil/CORREIO

A decisão da Universidade Federal da Bahia (Ufba) era inevitável: no dia 18 de março de 2020, por recomendações de autoridades sanitárias devido ao início da pandemia da covid-19 no Brasil, a instituição teve que suspender atividades administrativas e acadêmicas presenciais. Mas o professor Luis Fernando Adan, diretor da Faculdade de Medicina da Bahia (Fameb), sabia que não podia fechar o prédio da unidade, no Terreiro de Jesus, no Pelourinho. 

As aulas foram suspensas, mas o trabalho administrativo nunca foi remoto - e justamente porque ele entendia a gravidade daquela emergência sanitária que só começava a se delinear.“A gente não fechou as portas em nenhum dia, porque a gente entendia que uma faculdade de Medicina muito provavelmente teria demandas da sociedade e da comunidade em relação ao que a gente pode fazer”, explica, ao CORREIO, exatamente um ano depois. No dia seguinte à publicação da portaria da Ufba - uma quinta-feira, dia 19 de março de 2020 - ele se reuniu com a equipe técnica da faculdade. No encontro, discutiram quem tinha mais condições de continuar indo presencialmente à faculdade - o que incluía, por exemplo, servidores que tivessem carro próprio, para evitar aglomerações no transporte público. “Nós montamos uma equipe de 10 plantonistas e temos estado aqui há um ano, desde que começou nosso plantão”, conta.  Mesmo com atividades presenciais suspensas na Ufba, a Fameb continuou aberta (Foto: Nara Gentil/CORREIO) Até o Carnaval desse ano, também continuou funcionando um Centro de Atenção Psicossocial (Caps) na faculdade. Só depois do feriado é que o centro foi transferido para a Rua do Saldanha.

Já a unidade de Saúde da Família, também lá dentro, sempre esteve aberta. “Ela não foi linha de frente, mas eventualmente recebeu pacientes com sintomas. Nesse período, aconteceu a vacinação da gripe e nós fomos um dos postos que funcionou. Vacinamos a população aqui”. 

Esses episódios ao longo dos últimos doze meses são tão simbólicos que ajudam a entender a própria Faculdade de Medicina da Bahia - como ela é oficialmente chamada hoje - e sua vocação para o cuidado. A história já é conhecida: trata-se da primeira do país, tendo sido fundada em 18 de fevereiro de 1808, com a chegada da família real portuguesa ao Brasil. Na ocasião, D. João VI, então príncipe regente de Portugal e suas colônias, assinou o documento que criava a Escola de Cirurgia da Bahia, seu antigo nome. 

Mas, em 213 anos de existência, a Fameb não só ajudou a desenvolver a Medicina no país, como a cidade de Salvador. Pouco mais de 40 anos antes, Salvador tinha deixado de ser capital do Brasil - em 1763, a capital federal foi transferida para o Rio de Janeiro. “A Faculdade de Medicina foi criada como a casa da ciência. É um local que sempre esteve no centro dos principais debates de Salvador. Não dá para pensar a sociedade de Salvador sem pensar no legado e em como ela é um espelho. Ela coloca as demandas da faculdade para a sociedade e vice-versa. Se está sendo discutido lá, é porque tem relevância social”, diz a historiadora Mayara Santos, mestre em História Social pela Ufba e doutoranda em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pelo Brasil Esse diálogo com a sociedade não vem de hoje. Ainda no início do século 19, especialmente na década de 1830, quando houve uma reforma do ensino, os médicos formados pela faculdade já buscavam oferecer soluções aos problemas de saúde da comunidade, ao mesmo tempo em que se organizavam em associações científicas e editavam periódicos especializados, como destaca a historiadora Christiane Souza, doutora em História das Ciências pela Casa de Oswaldo Cruz. 

“Os médicos ligados às questões da saúde pública propunham a regulamentação de hábitos, costumes e estilo de vida, recomendando ainda o exercício de constante vigilância sobre a qualidade do ar, da água e do solo, bem como a reordenação dos espaços urbanos, a fim de facilitar a distribuição da luz e a circulação do ar, de pessoas e de mercadorias, com a finalidade de evitar a proliferação de doenças transmissíveis”, afirma. A Faculdade de Medicina da Bahia completou 213 anos em fevereiro (Foto: Nara Gentil/CORREIO) Por muito tempo, só existiam duas faculdades de Medicina no Brasil: a da Ufba, em Salvador, e a da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fundada também em 1808, mas em novembro. Por isso, vinham estudantes de todo o Brasil para cá. A faculdade formava não apenas os médicos que cuidariam dos baianos, mas os que cuidaram de gente ao redor de todo o país, como lembra o médico Jorge Cerqueira, conselheiro decano do Conselho Regional de Medicina da Bahia (Cremeb). "A faculdade ficou tendo um papel muito importante. Foram surgindo aqui médicos que se destacaram como cientistas e foram dando fama à faculdade. Muitos voltavam para suas terras e cuidavam do Brasil todo. A primeira mulher brasileira a se formar em Medicina, por exemplo, era uma gaúcha que começou o curso no Rio, mas veio para a Bahia e se formou aqui", conta ele, que é presidente do Instituto Bahiano de História da Medicina. Ele se refere à médica Rita Lobato Velho Lopes, que se formou em 1887 - ou seja, 79 anos após a criação da faculdade. Mas a lista de grandes nomes da Medicina que passaram pela Fameb é grande demais até para que se possa fazer um resumo. Só para dar uma ideia, foi lá que se formaram pessoas como Juliano Moreira, Martagão Gesteira e Gonçalo Muniz, que deram nomes a hospitais de referência em suas áreas ou à sede da Fundação Oswaldo Cruz na Bahia, no caso de Muniz.  A gaúcha Rita Lobato é considerada a primeira médica formada no Brasil; ela completou no curso na Fameb (Foto: Reprodução) Mulheres Entre as mulheres, o nome da psiquiatra Nise da Silveira, que se formou em 1926, é sempre lembrado, por ter revolucionado o tratamento em saúde mental no Brasil.  No entanto, como lembra a historiadora Mayara Santos, a trajetória das mulheres na faculdade começa antes disso. 

Em sua pesquisa de mestrado, ela estudou a trajetória da primeira médica negra do Brasil: Maria Odília Teixeira, em 1909, na Fameb. Ela foi a sétima mulher a se graduar em Medicina na instituição, com uma tese sobre cirrose alcoólica. As outras médicas, até então, tinham feito um trabalho de conclusão de curso sobre pediatria ou ginecologia.  Rita Lobato concluiu o curso de Medicina em 1887 (Foto: Nara Gentil/CORREIO) O acesso de mulheres ao ensino superior era proibido até 1879, com a Reforma Leôncio de Carvalho, conhecida como a Reforma do Ensino Livre. "Até então, mulheres que acessavam o ensino superior só conseguuiam isso indo para fora do Brasil", explica Mayara, cuja dissertação sobre Maria Odília deve virar livro este ano. 

Mesmo com a autorização, a historiadora acredita que as mulheres eram muito desencorajadas. Além disso, os altos custos afastavam boa parte da população. Na época, na Bahia, o curso de Medicina custava 50 mil réis. 

"E não era só querer entrar. Tinha que ter domínio de línguas como latim, grego e francês. Quando (Maria) Odília entrou, ela já era bacharel em Letras e Ciências. Foi preciso tempo para que essas mulheres na elite se organizassem para estar na faculdade", diz a historiadora.  Sétima mulher a se formar em Medicina na faculdade, Maria Odília foi a primeira médica negra do Brasil (Foto: Reprodução) Maria Odília entrou na Fameb menos de duas décadas após a abolução da escravatura. A população negra estava "à margem da margem", nas palavras de Mayara. No entanto, ela era filha de um casamento interracial. O pai de Maria Odília era um médico branco formado pela Fameb, enquanto a mãe dela era filha de uma mulher negra alforriada. 

"Não só ela, mas os irmãos dela também tiveram carreiras consideradas de elite. Em uma carta, ela diz ao pai que gostava das letras. Para um homem apostar na filha no sentido de não ter só educação burguesa de tocar piano e tomar conta da casa, Odília avança nesse sentido", analisa. 

Ela também se torna a primeira professora negra da Faculdade de Medicina, na cadeira de obstetrícia, na Maternidade Climério de Oliveira. Aos poucos, as mulheres vão ganhando mais espaço na escola. A própria Medicina, hoje, tem maioria de mulheres entre as estudantes. "A feminização da Medicina vai acontecer durante o século 20, mas ganha força nessas últimadas décadas", completa Mayara. 

Pandemias Nesse um ano de pandemia na Bahia, a Fameb teve projetos próprios para ajudar a população. O primeiro deles foi o Telecoronavírus, um programa em parceria com a Fiocruz, com a Secretaria da Saúde do Estado (Sesab) e com faculdades privadas. 

Durante quatro meses, mais de 100 estudantes que estavam no internato - os dois últimos anos do curso - participaram do projeto fazem triagem de casos de coronavírus pelo telefone, orientando a população. Ao fim de julho, quando o projeto foi encerrado, eles tinham atendido mais de 110 mil ligações, de acordo com o diretor da faculdade, Luis Fernando Adan.  O pediatra Luis Fernando Adan é professor da Ufba há 20 anos; há seis, é diretor da Fameb. Ele criou um esquema de plantão para garantir que a faculdade continuasse aberta (Foto: Nara Gentil/CORREIO) Os estudantes e professores ainda fizeram campanhas educativas construindo cards informativos para redes sociais, mas usando ditos populares. "Tivemos um projeto aprovado na Fapesb para introduzir a telemedicina em nosso curso. A gente entende que não pode ser uma ferramenta única, mas, em algumas situações, podemos levar conhecimento através dela. Por exemplo, se tiver um médico a 800 quilômetros daqui, ao invés de encaminhar o paciente para cá numa situação de confinamento, a pessoa pode ter uma consulta conosco na presença do profissional de saúde de lá", explica. 

Além da pesquisa científica - distribuída em quatro programas de pós-graduação -, a faculdade também cedeu seus manequins, no início da pandemia, a algumas clínicas e hospitais privados de Salvador, para o treinamento de profissionais na intubação. 

Mas a pandemia da covid-19 não foi a primeira enfrentada pela faculdade. Antes disso, houve a da gripe espanhola, em 1918, e a do H1N1, em 2009. Na época da gripe espanhola, os alunos chegaram a ir para a linha de frente. "Mas eram outros tempos. Naquele tempo, já se usava máscara, mas havia uma cultura de que, se morresse em combate, era um herói. Hoje, a gente não faz isso. Nós temos um sistema de saúde, que antes não existia. Não fazia nenhum sentido colocar nossos estudantes na linha de frente porque ela exige treinamento de profissionais altamente habilitados e treinados no enfrentamento de formas graves", diz o diretor. Ele explica que apesar de toda a vocação da Fameb para o cuidado, nunca existiu uma meta de criar heróis. A ideia sempre foi formar médicos "socialmente comprometidos, com uma visão humanista e generalista". 

"O Brasil hoje precisa que os três poderes se mobilizem para que nós tenhamos vacinas, porque da formação dos estudantes, as escolas médicas estão cuidando. O problema de enfrentamento não está nas ações das escolas médicas. Nós temos agido com serenidade, competência e serenidade social. Por isso, não fechei a faculdade um único dia", reforça. 

Presente e futuro  E a pesquisa, uma das principais bases da Fameb, não deixou de acontecer, mesmo com a pandemia e com os seguidos cortes orçamentários nos últimos anos. Um dos principais nomes do quadro de professores hoje é o pneumologista e alergologista Álvaro Cruz, que tem o maior número de citações acadêmicas da Ufba, entre pesquisadores de todas as áreas. Com mais de 29 mil citações, ele é pesquisador 1B do Cnpq - outro indicativo de alto nível de produtividade em pesquisa. 

Mesmo com passagens em órgãos como a Organização Mundial da Saúde (OMS), o professor Álvaro passou quase toda a vida ligado à Fameb, desde que entrou para fazer a graduação em Medicina, em 1974. Seu pai, também pneumologista, já havia se formado lá, assim como suas duas irmãs. 

“Na minha cabeça, nem passou pela minha cabeça estudar em outro lugar, porque eu sabia que era uma faculdade muito boa. E era um tempo difícil, da ditadura militar. Havia muita falta de liberdade, muito atrito na universidade e desorganização por causa disso”, lembra. 

Ainda que fosse um momento de crise, ele enumera professores “fantásticos” com quem começou a conviver ainda naquela época, como Heonir Rocha, Gilberto Rebouças e Rodolfo Teixeira. Rocha foi, inclusive, um dos reitores da Ufba, entre 1998 e 2002. Ao menos sete dos 15 reitores da instituição até hoje vieram da Fameb, incluindo Edgar Santos (o primeiro e o que dá nome ao hospital universitário), Roberto Santos e Eliane Azevedo.

Uma das situações mais marcantes, para ele, foi ter presenciado, no terceiro ano da graduação, a universidade cercada pelo Exército, que tentava prender dois colegas. “Foi uma agressão enorme a uma instituição que, para a gente, era sagrada. Mas as coisas boas eram diárias. A gente tinha lições incríveis, com muitas reuniões científicas onde se discutiam casos difíceis”. 

Na década de 1980, ele decidiu voltar à Fameb como professor. Para Cruz, a instituição ainda é muito importante para formação de profissionais de saúde, inclusive de áreas além da Medicina. 

“Acho que minha contribuição nesse momento é que continuo a desenvolver projetos de pesquisa com alunos de várias áreas de forma colaborativa. Trabalhar com uma equipe multidisciplinar e fazer pesquisa voltada para nossa realidade, que traduza um benefício imediato e ajude a melhorar o SUS. É o que tenho conseguido fazer com a equipe do ProAr”, diz, referindo-se ao Programa para Controle da Asma na Bahia (ProAR), fundado por ele em 2002, ao lado de um grupo de alunos de pós-graduação.  No acervo do memorial da Fameb, há instrumentos de outros períodos da faculdade (Foto: Nara Gentil/CORREIO) O ambiente da faculdade também proporcionou memórias importantes para a infectologista pediátrica Cristiana Carvalho, professora titular de Medicina, pesquisadora 1C do CNPq e uma das autoridades em pesquisa sobre pneumonias na infância.

"Comecei a pesquisar no terceiro ano do estudo médico e isso só foi possível porque encontrei um espaço para isso. Desde o início da faculdade, por ter sido a primeira da América Latina, o berço dela está vinculado à pesquisa", explica. 

Continuar como professora na escola onde se graduou, para ela, tem a ver com a própria evolução da Medicina. "Não posso ensinar o que aprendi há 33 anos. Ser professora é um grande motivador para que eu esteja atualizada. E conviver com os estudantes faz com que eu me sinta jovem. Sou a favor e pratico o ensino construtivista, em que não só falo, mas sempre estimulo que eles falam e façam perguntas, então a gente dialoga muito", conta.

Para ela, a Faculdade de Medicina luta arduamente para se manter fiel ao propósito com o qual foi fundada, em 1808."Existem outras faculdades hoje, na Bahia, em Salvador. Elas vieram ocupar locais, atender necessidades em termos de demanda de assistência da saúde... Mas especificamente a Faculdade de Medicina luta arduamente para honrar esses propósitos", completa. Entre os futuros médicos, existe também o reconhecimento do que é estudar em uma instituição história. Para a estudante Luana Ribeiro, 33 anos, que está no sétimo semestre, há uma sensação de pertencimento que vai sendo construída ao longo dos anos do curso. 

"Claro que quem entra no século 21 é apenas uma formiguinha, mas esse peso vem para todos os estudantes", diz. O atendimento à comunidade, especialmente nos serviços abertos como a maternidade e o hospital universário, é um dos pontos altos para ela. "E durante a pandemia, tivemos toda essa participação. A gente, estudantes que não estão no internato, estava com as aulas suspensas. Mas a faculdade, como sempre, participou desses processos todos, como tem que ser", diz. 

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