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Thais Borges
Publicado em 25 de julho de 2021 às 07:00
- Atualizado há 2 anos
Da noite para o dia, a vida mudou. Por 18 anos, a família de Henry*, um cigano da etnia Calon, viveu sem problemas em Itambé, cidade no Centro-Sul da Bahia. Alguns integrantes de sua família - que, hoje, ocupam cerca de 10 casas em um bairro da cidade - já moram lá há quase três décadas. Nas últimas duas semanas, porém, os relatos são de temor, perseguição e abuso por parte das forças policiais. "Imagine você dizer para uma criança que nunca viu esse tanto de polícia em sua porta: 'ó, meu filho, nós somos ciganos e, por isso, somos tratados com preconceito'. Somos tratados pela polícia como um só. Se acontecer um crime com um cigano em São Paulo, a polícia vai achar que é o mesmo na Bahia. Queremos sair da cidade, porque estamos com medo que eles voltem", desabafou, em entrevista no início da semana. Henry se referia à madrugada da última segunda-feira (19), quando um grupo de policiais militares teria invadido parte dessas casas e abordado os ciganos de maneira agressiva. No dia seguinte, o medo dele se concretizou: os policiais retornaram à comunidade. Henry e sua família tiveram que sair de casa; agora, estão abrigados em lares provisórios, porque temem até mesmo ficar nos imóveis.
Esses são só dois dos episódios denunciados pelas comunidades ciganas das cidades da região depois que dois PMs foram mortos no último dia 13, no distrito de José Gonçalves, em Vitória da Conquista. Os suspeitos de matar o tenente Luciano Libarino Neves, 34 anos, e o soldado Robson Brito de Matos, 30, são homens de uma mesma família de uma comunidade cigana. Três deles foram mortos (dois morreram na mesma ação); outros seis estão foragidos.
Desde então, outros ciganos denunciam que estão sendo vítimas de excessos que teriam sido cometidos por policiais. No dia 14, um adolescente de 13 anos foi morto em uma farmácia. Ele era irmão dos suspeitos e havia testemunhado o crime. Já no último domingo (18), o empresário Diego Santos Souza, 29 anos, morreu na mesma localidade. Ele foi encontrado dentro de um carro carbonizado. Comunidades da região afirmam que ele teria sido morto por ter sido confundido com um cigano, mas a polícia investiga as hipóteses de acidente ou homicídio.
Em uma nota pública divulgada no final de semana, mais de 100 entidades, pesquisadores e ativistas dos direitos humanos denunciam o que chamaram de “verdadeira caçada e matança” das famílias da região pertencentes à etnia. Segundo o documento, além dos ciganos suspeitos de envolvimento na morte dos PMs, ao menos 15 pessoas foram baleadas. Vídeos que circulam entre as comunidades mostram casas e carros que seriam de propriedade de ciganos sendo queimadas e destruídas.
“No Brasil, não existe pena de morte. Uma comunidade inteira sofrer e morrer por atos que devem ser encaminhados para as instâncias jurídicas evidencia a violência, o despreparo e as injustiças cometidas pela Polícia Militar da Bahia”, dizem. Na nota, o grupo pede que o governo da Bahia e entidades como Ministério Público do Estado (MP-BA) e o Ministério Público Federal (MPF) façam uma intervenção pelo fim dos atentados.
Casas invadidas Henry é um cigano da etnia Calon, como a maioria dos que vivem na Bahia. Ainda que essa seja a percepção da comunidade, não há nenhuma estatística oficial quanto à presença de ciganos no país ou no estado. Nem mesmo o Censo de 2010 tem dados específicos sobre esses grupos. Representantes de entidades ciganas estimam que eles estejam em cerca de 30% das cidades baianas, incluindo Salvador, Feira de Santana e Porto Seguro.
Em Itambé, onde há quase uma centena de ciganos, muitos deixaram suas casas nos últimos dias. Henry e sua família são alguns dos que não têm previsão de voltar à cidade onde passaram boa parte da vida - pelo menos até que se sintam seguros novamente.
No dia 13, quando os PMs foram mortos, ele estava com a família em Vitória da Conquista. Ao retornar para Itambé, encontraram uma blitz na entrada da cidade. Os policiais que os abordaram, conhecidos da região, falaram sobre a situação e disseram para que não ficassem com estranhos, nem protegessem ninguém. Afirmaram até que quem era da cidade sabia que eles - Henry e sua família - eram "pessoas de bem". "Achamos que estaríamos bem de opressão e perseguição. Mas, de lá para cá, a viatura começou a rodar os nossos lares. Se antes passava uma vez por dia, começaram a passar 10, 12 vezes, sempre intimidando. Mas a gente não tem o que esconder, então, falamos que no dia que quisessem ir em nossas casas, poderiam ir", explica. Na noite do último domingo (18), porém, algo mudou. A família de Henry havia voltado do culto, mas, naquele dia, ninguém conseguiu dormir. "De repente, a gente só ouve o barulho de vários carros". Ele conseguiu ver três viaturas em frente à sua casa; vizinhos disseram ter visto ao menos dez carros.
"Nós somos uma família grande e fizemos nossas casas coladas umas na outras. Na minha casa, eles pediram para entrar. Mas nas casas vizinhas, a situação não foi a mesma", lembra. Segundo ele, os PMs perguntavam pelos foragidos e exigiam que a família assumisse uma ligação com eles. Insinuavam que estavam escondendo os suspeitos, falando até de uma suposta semelhança física.
Por mais de uma hora, fizeram uma abordagem que incluiu insultos aos presentes. "Começaram a dizer: 'por causa de vocês miseráveis que isso tudo está acontecendo'. Chegaram para nossos filhos adolescentes dizendo 'você usa droga, você é maconheiro'. Passamos momentos de terror", contou.
Uma das filhas de Henry, uma menina de 10 anos, teve um pico de pressão. Assustada, relatou dores de cabeça aos pais. Quando aferiram a pressão, o susto veio: o aparelho indicava 16 por 14. Não adiantou explicar que não tinham ligação com os suspeitos. Assim, ele diz ter perdido a confiança na Polícia Militar. "Eu acreditava que a PM tivesse crédito, mas hoje me parece que se tornou uma milícia. Eu achava que só existia isso em São Paulo e no Rio, mas pudemos comprovar que tem acontecido justamente com a gente, que não tem culpa, que é minoria, que não tem voz e não é visto. Nós somos vistos pela população como uma quadrilha de ciganos. Não veem que foi uma família específica que fez aquele crime", completa. Em um vídeo divulgado pelo Whatsapp, outra moradora da cidade, também pertencente a uma família cigana, faz uma denúncia semelhante. Ela conta que, por volta de 1h da manhã de segunda-feira, a casa onde mora com a família há 15 anos foi cercada por policiais fortemente armados.
“Tive que encerrar meus atendimentos, desmarcar todos os meus compromissos, que a agenda estava lotada, por medo. Tivemos que sair do nosso lar por medo que eu não imaginaria passar. Que os culpados paguem, e não os inocentes”, declara.
Discriminação A presidente da Associação Nacional das Mulheres Ciganas, Edvalda Viana, mais conhecida como Dinha, uma das principais lideranças da comunidade em Porto Seguro, afirmou que há relatos de que até mulheres grávidas têm sido torturadas. Ela pede que sejam punidas as pessoas que fizeram algo errado - não a etnia como um todo. Para ela, trata-se de uma violação de direitos dos ciganos."Eles estão agindo como milícia. Querem que inocentes paguem por crimes que não cometeram. Eles estão agindo de forma ilegal. Sangue nenhum é melhor que outro. Estão se escondendo atrás da farda, se aproveitando de um cargo", denuncia. Pedindo anonimato por medo de represálias, outra liderança cigana citou situações em que outros membros da comunidade teriam sido torturados em uma localidade próxima a Itiruçu, também no Centro-Sul.
Ele conta que páginas ligadas à PMs, como perfis não oficiais no Instagram, têm postado fotos dos suspeitos pedindo informações com teor agressivo. Em uma das postagens a que a reportagem teve acesso, os administradores pedem que as pessoas ajudem "a promover o encontro desses pombos com o diabo (sic)". "Eles não estão querendo prender. Estão querendo matar. E isso pode estimular a violência em todo o Brasil contra os povos tradicionais. Desde o começo, o que venho falando é que é injusto que inocentes paguem por aqueles que cometeram crimes", diz. Ciganos, explica a liderança, sempre estiveram à margem da sociedade. No Brasil, frequentemente são tratados como bandidos. "Os ciganos da Bahia são todos da etnia Calon, mas não quer dizer que são todos parentes. A gente vê tudo isso com muita perplexidade, porque não vi ninguém do governo olhar os fatos imparcialmente".
Ele calcula que, só em Vitória da Conquista, vivam cerca de 80 famílias ciganas. Muitas, porém, abandonaram suas casas nos últimos dias. "Se a polícia viesse na casa deles com mandado, tudo bem. Mas estão chegando 1h da manhã e a gente fica aterrorizado".
Sem registros Apesar dos apelos das entidades ciganas, o delegado Fabiano Aurich, titular da 10ª Coorpin (Vitória da Conquista), afirmou que a Polícia Civil não recebeu nenhum registro de ocorrência sobre os atentados que os ciganos teriam sofrido.
"Eu só ouvi falar porque um repórter me ligou mais cedo para falar dessa história. A Polícia Civil depende que o fato seja comunicado oficialmente. Se a pessoa quer uma providência, tem que vir registrar a ocorrência. A PM também tem sua Corregedoria", afirmou, por telefone, na última quinta-feira (22).
O delegado alega que seria "fácil" protegê-los, se houvesse a ocorrência. "Todos nós queremos os culpados presos. Sei que o comandante da PM não admite que as famílias ciganas que não têm nada a ver sejam vítimas de qualquer tipo de horror". Ainda segundo Aurich, o inquérito sobre a morte dos PMs já está na fase final e deve ser concluído em breve pelo delegado responsável.
A morte do adolescente de 13 anos - irmão dos suspeitos - ainda está em investigação. Ele havia prestado depoimento na delegacia, como testemunha da situação em que tanto os policiais quanto seus irmãos morreram, no dia anterior. Já quanto à morte do empresário, a polícia aguarda os resultados da perícia. De acordo com Aurich, não foram encontradas marcas de tiros, mas o pneu do carro estava furado. Assim, são consideradas das hipóteses de acidente e de homicídio.
Medidas Segundo a Polícia Militar, os dois policiais foram mortos enquanto trabalhavam no serviço de inteligência da 92ª CIPM (Área rural de Vitória da Conquista). Eles teriam ido ao distrito de José Gonçalves para fazer um levantamento a partir de denúncias de homens armados que estariam cometendo roubos, furtos e agressões. Nesse processo, foram parar em uma emboscada por um grupo formado por oito homens.
A PM informou que tem feito operações e ações para capturar os criminosos, mas que adotou medidas para proteger as famílias dos suspeitos. Entre as medidas, estão o reforço do policiamento no hospital onde um deles ficou internado, a escolta dele para apresentação no Disep e também a escolta de seis mulheres e três crianças “até a rodoviária a fim de embarcar para destino de necessidade pessoal do grupo”.
Houve, ainda, a escolta de outro grupo de mulheres e crianças, acompanhada também pelo advogado delas.“As ações desenvolvidas na operação de busca e nos trabalhos atuais se pautam na técnica policial e na necessidade de garantir os direitos humanos do cidadão, independente de etnia, gênero ou crença”, diz a PM, em nota.Quanto à abordagem em Itambé, a corporação afirmou que suas ações são pautadas em técnica policial e “na necessidade de garantir os direitos humanos do cidadão, independente de etnia, gênero ou crença”. De acordo com a PM, as denúncias de desvio de conduta estão sendo imediatamente apuradas. Não houve, contudo, nenhum registro na Corregedoria até o momento.
A Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado (Sepromi) disse que enviou ofício à Secretaria da Segurança Pública (SSP) solicitando atenção e garantia dos direitos humanos à população cigana, além de apuração rigorosa e responsabilização dos culpados nos episódios. A Sepromi diz que está sendo informada pela SSP sobre orientações à operação e que está em diálogo com representações das organizações ciganas.
O MP-BA informou que acompanha o inquérito sobre a morte dos PMs, assim como a morte dos ciganos. O órgão não respondeu sobre as denúncias de excessos por parte dos policiais, mas informou que está aguardando a conclusão dos inquéritos para adotar providências legais. ‘São os mesmos excessos praticados nas favelas’, diz pesquisador
As denúncias da comunidade cigana no Sul da Bahia indicam que as instituições não têm cumprido seu papel, na avaliação do advogado Phillipe Cupertino, professor de Direito da Universidade Estadual de Goiás (UEG) e doutorando em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde pesquisa as lutas pelos direitos ciganos no Brasil.
Segundo Cupertino, não se trata de um fato isolado."Infelizmente, quando acontece uma situação que tem um acusado ou suspeito que pode ser um cigano, todos os familiares, grupo ou comunidade acabam também respondendo", afirma. Haveria, assim, uma violação de um preceito básicodo Direito Penal, que é a individualização da pena. Pela lei, apenas o autor do suposto crime deve ser investigado e responder pelos atos; isso não incluiria nem sua família, nem outros membros da comunidade.
"Além dessa violação, observo que há um traço de xenofobia, que na verdade é ciganofobia e racismo. Configura uma violação dos direitos humanos porque você naturaliza e normaliza a violência sobre essas famílias, justificando a brutalidade pelo pertencimento étnico. 'Ora, se eles são ciganos, são violentos e devem ser penalizados por isso'. Aí se transcende a individualização".
Nesse sentido, o Estado falharia por omissão, ao não oferecer preparação aos servidores - da saúde à segurança pública - uma preparação para lidar com diversidade racial e étnica.
O advogado ainda considera que as atitudes por parte da PM configurariam excessos. É um contexto que levaria diretamente ao agravamento da vulnerabilidade dos povos ciganos.
"É lamentável que a gente tenha perdido um servidor público da segurança pública. Deve ser investigado, apurado, mas essa apuração não deve vir acompanhada de terrorismos e atos que entendo como excessivos. Os mesmos excessos praticados nas favelas e nos territórios periféricos são praticados com os ciganos”, completa.
*Nome fictício