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Tal qual um violinista do Titanic

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  • Foto do(a) author(a) Gabriel Galo
  • Gabriel Galo

Publicado em 21 de dezembro de 2020 às 05:05

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: .

O quanto precisamos de pequenices para nos reconduzir à tranquilidade? Penso que muito.

Na virada para as festividades de fim de ano, o futebol apita seus últimos trilos de um ano inacreditável. Não estivéssemos vivendo-o, difícil seria conceber tamanho acúmulo de impropérios e surrealidade. À frente, bestas-feras ineptas com poder demais, inversamente proporcionais à capacidade cognitiva. E nós aqui, buscando fazer sentido para seguir adiante, puro instinto de sobrevivência.

A covid-19 volta a marcos recordes de contaminação e morte. Mas, munidos de uma pulsão de morte incontrolável, pessoas saem às ruas sem as necessárias máscaras e se aglomeram lançando mão da esfarrapada desculpa da necessidade de se juntar para não enlouquecer. O parente assintomático de Nicette Bruno deve ter falado isso, suponho.

A preocupação com o psicológico de agora é a antiga preocupação com a economia. Mas a economia não voltou, nem voltará, insumos estão faltando, inflação disparando, crise ainda mais grave na porta. Vê-se, pois, que se precisava de outra razão para renovar o enredo.

E lá está o futebol, distribuindo minutagem em estádios sem alma, em calendários apertados, num jogar e analisar patéticos enquanto a morte espalha seu bafo. São eles em campo, assim como nós do lado de cá, na condição de profissionais no assunto, tais quais violinistas do Titanic, marionetes de ilusões, promotores de desvio de olhares, distribuindo psicotrópicos à fantasia. “Não tem nada pra ver. Tá tudo normal”. Se falado insistentemente, vira verdade. Já virou.

Alguns neste meio rompem a barreira de marionetes da pretensa dignidade ignorante no curso da tragédia e se tornam agentes da infâmia. São volantes a direcionar a conversa para fortalecer mitos desumanos, projeções com sua imagem e semelhança, porque não são os opostos que se atraem, mas os iguais, mesmo que, um tanto envergonhados, apelem para senões, seja economia, seja psicológico, seja qualquer outro que venha na sequência.

De vez em quando na cancha deserta aparece um minuto de silêncio, como se a demonstrar preocupação. Compre esse discurso quem quiser. Aceite-o e o replique quem quiser. Percebo que não consigo. Não aceito, sob nenhum pretexto, compactuar com a ignorância coletiva para evitar catástrofes. A catástrofe é justamente esta em andamento galopante, a que estamos vivendo, que aposta no desconhecimento geral e no medo para se perpetuar em seus ideais totalitários.

Entendo, também, que se dedicar continuamente aos temas e notícias da pandemia não é saudável. Distrações são necessárias. E cada um administra a sua dose, cada um sabe de seus dramas e suas necessidades. Só que o consumo destas distrações, para valer, deve ser individual. Quando se potencializa o mal coletivo, a conversa muda.

Visto um smoking do avesso, a tecer disfarçadas linhas com o futebol pelas margens, tocando a marcha fúnebre no violino enquanto o país afunda no mar gelado do Atlântico Norte.  Subverto a lógica intentando expor a insanidade do papo torto. Sarcasmo é arma poderosa, mais que a arminha na mão dos horda ignara, embora, admito: o esforço destas linhas talvez não atinja quem dela poderia se valer. Teimo, no entanto.

Viu a rodada deste fim de semana? Vamos criar uma polêmica vazia, conta aí, que comparação ridícula mais mobiliza e aumenta o seu engajamento? Talvez uma provocação no rival? Natal chegou. Vai ver a família? Legal, importante, né? Sim, eu sei, aglomeração para cuidar do psicológico, claro. Ninguém aguenta mais, né?

Gabriel Galo é escritor.