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Thais Borges
Publicado em 4 de abril de 2020 às 06:22
- Atualizado há 2 anos
O meme já alertava há alguns dias. “Tenho até medo de abrir a geladeira e encontrar uma live lá dentro”, postou um usuário no Twitter, antes de ser compartilhado incessantemente. O humor pode até ter lá seu exagero, mas, nesse caso, tem até algum fundo de verdade.
Se você acompanha minimamente as redes sociais, não tem como não ter notado. Desde o começo da quarentena pelo coronavírus, basta abrir o Instagram para notar, na frente dos stories dos amigos, uma fila de bolinhas que indicam que algo ao vivo está acontecendo. Tem gente transmitindo algum conteúdo em tempo real.
No YouTube, a maior plataforma de vídeos, as lives se tornam parte do canal de quem transmite logo após serem encerradas.
Por muito tempo, as transmissões ao vivo eram principalmente de empresas de jornalismo ou artistas. Mas as coisas mudaram. Tem live de jardinagem, meditação, culinária, discussão política, exercícios físicos, aula de idiomas, aula de dança e sessão de centro espírita. E elas são feitas por qualquer usuário - de Fátima Bernardes e Anitta à filósofa Djamila Ribeiro, da loja de produtos veterinários até aquele vizinho ou vizinha que é chef de cozinha.
Entre os artistas, inclusive, o que mais se vê são lives “musicais”. Com shows improvisados ou mesmo produzidos dentro da estrutura que têm em casa, chegam a passar horas tocando e cantando para quem estiver assistindo. No último fim de semana, uma live do sertanejo Gusttavo Lima quebrou recordes mundiais, com 750 mil pessoas assistindo ao mesmo tempo.
Depois disso, nomes como Jorge e Mateus e Tony Salles anunciaram apresentações para o fim de semana. Léo Santana, que transmitiu um show nesta sexta-feira (3), chegou até a se envolver em polêmica por conta do vídeo. Até os shows nas festas do Big Brother Brasil, reality show da TV Bahia/Globo, começaram a acontecer através de lives com nomes como Iza e Lexa.
Para o pesquisador Alexandro Mota, mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), não dá nem mesmo para comparar ao que se fazia antes do isolamento devido ao grande número de perfis que investiram no modelo sem nunca ter feito. “A grande distinção das lives nesse momento de quarentena é que temos mais pessoas dispostas e com tempo para assistir, mas não apenas assistir. Querem interagir, comentar, fazer perguntas, enviar para os amigos. Tudo isso cria um ambiente favorável para uma live de sucesso e para uma produção que explora ao máximo as potências dessa tecnologia, que é justamente essa promessa de socializar em tempo real”, diz Alexandro, que pesquisa lives desde 2016. Obrigação e diversão Nesse período de isolamento social, há dois grandes grupos de live, na avaliação do professor Antônio Netto, de Comunicação e Marketing Digital na Unifacs. O primeiro é de pessoas ou empresas que não faziam lives e foram, de certa forma, forçadas a pensar em novas formas de relacionamento com o público.
"A maioria das empresas já fazia rede social, mas não usava tanto essa ferramenta. Falo empresa mas podem ser também profissionais liberais, seja para fazer posicionamento de marca ou converter algum resultado em vendas", diz. Nesse contexto, estariam incluídos também os artistas.
Já o segundo grupo, para Netto, é o do entretenimento. Seria uma categoria formada por pessoas que estão em casa isoladas e querem passar o tempo, conversar com amigos e gerar entretenimento. "Tem desde gente que está cozinhando, fazendo alguma coisa enquanto fala com os amigos, até aqueles que vêm lutando contra as diretrizes do Instagram. Tem gente até fazendo sexo ao vivo no Instagram, criando uma conta falsa e transmitindo o link", cita Netto. Mas não necessariamente quer dizer que esse fenômeno é novo. O pesquisador Alexandro Mota destaca um recurso que existia no Facebook chamado Live Map. Através dele, era possível ver transmissões pelo mundo.
"Muitas dessas transmissões eram de evangélicos em casa ou na igreja usando para pregação – ou seja, não é de agora que as lives estão sendo usadas para culto porque as pessoas não estão podendo ir para as igrejas. Outro exemplo de que não é novo: gamers. Quem tem filho adolescente em casa que lives de jogo são uma febre. Com esses dois exemplos eu quero dizer que as lives até então eram muito bem recebidas e difundidas em nichos”, enfatiza.
Para ele, o momento não é necessariamente de banalização das lives, mas de apropriação. Ou seja: a sociedade está usando o recurso como convém. “No fundo estamos nos apropriando de um momento da cultura em que o streaming faz completamente parte da nossa rotina. Acho que vamos ainda usar muito essas ferramentas e só precisamos pensar mais na responsabilidade desse uso”, pondera. (Confira a entrevista completa abaixo)
Famosos Com o Encontro fora da programação da TV Globo desde meados de março, para aumentar a cobertura jornalística sobre o coronavírus, a apresentadora Fátima Bernades foi das que pensou nas lives como estratégia para alcançar seu público nesse período.
Sempre às 10h30, horário em que o programa normalmente é exibido, ela tem recebido convidados como o poeta Bráulio Bessa, que já participa da atração, e o psicólogo Rossandro Klinjey. Na sexta-feira (3), recebeu o bailarino Justin Neto. Ao lado da filha Beatriz, ela dançou coreografias de Ivete Sangalo, ensinadas por Justin. Fátima Bernades tem feito lives como a que fez com o coreógrafo Justin Neto (Foto: Reprodução) "É a segunda semana que estou fazendo essa brincadeira das lives. É uma novidade para mim. Estou experimentando. Claro que que estou louca par ter contato presencial com as pessoas. Ainda vai demorar um pouquinho, mas a gente tem que se fortalecer enquanto isso", dizia Fátima, pouco antes de encerrar o vídeo. Léo Santana, que marcou sua live também para a sexta, causou polêmica na véspera, em um vídeo que convidava os seguidores para acompanhá-lo. Nas primeiras imagens divulgadas, o GG dizia que doaria 10 cestas básicas a comunidades carentes de Salvador. O número seria multiplicado a cada 10 mil pessoas que acessassem a transmissão.
Só que pegou mal. Muita gente achou que o cantor estava mais interessado nas visualizações do que em fazer doações. Depois, ele se pronunciou e disse que as doações começariam com uma tonelada de alimentos, com a meta de alcançar cinco toneladas.
"A ideia da minha live é fazer com que mais pessoas assistindo, mais alimentos eu esteja doando. Mas, independente disso, eu também vou fazer a minha doação, a minha parte, do meu coração. Se vocês quiserem ajudar, quanto mais pessoas assistirem, mais alimentos eu vou doar", afirmou Léo, na quinta-feira (2).
Ao CORREIO, o cantor explicou que decidiu fazer a live para entreter o público, fazendo o que gosta e espalhando alegria."Além de tudo, é também uma maneira de incentivar que as pessoas curtam em suas casas para que essa situação passe o mais rápido possível", reforça o cantor. Para ele, as transmissões são uma forma de mostrar como tem sido o período de quarentena e inspirar outras pessoas. "Tenho adorado ver o que as pessoas estão fazendo, conversar com elas... Acredito que seja um bom recurso".
O forrozeiro Del Feliz também faz parte da turma que tem feito lives diárias. Isolado em sua casa em Salvador desde que voltou de uma temporada de shows em Londres, na Inglaterra, no dia 17 de março, ele começou a usar o recurso porque muitas pessoas perguntavam sobre seu retorno. Na ocasião, a Inglaterra já começava a apresentar crescimentos no número de casos de coronavírus.
Ao mesmo tempo, a vontade de fazer música ia aumentando. Como tem uma estrutura de estúdio em casa, decidiu montar playbacks que substituíssem a companhia da banda ao vivo. Nos vídeos, canta e conversa. “A gente fala de tudo, até de política. É natural, porque política faz parte da vida da gente, mas nada partidário. O principal da live é a música, a alegria e a mensagem de positividade”.
Com o passar dos dias, a audiência foi aumentando. Hoje, chega a ser o dobro do que era nas primeiras noites, chegando a 600 pessoas ao mesmo tempo. Há muitos comentários parecidos - de que o dia ficou melhor, de que ajudou a lidar com a depressão. Del Feliz tem feito lives misturando música e conversa (Foto: Reprodução) “Eu nunca tinha feito (lives), mas tenho essa mesma impressão: de que as pessoas estão tirando uma tristeza de mim. Estou o dia inteiro aqui trancado, compondo, dando entrevistas. Tem muita coisa do meu trabalho que eu não paro, mas há uma lacuna de contato”, admite Del. A falta do toque fez com que, no primeiro dia de isolamento, ele compusesse a música Pra Gente Se Abraçar, lançada dois dias depois. Enquanto cria novas canções, Del deve continuar dividindo o tempo com as lives - pelo menos enquanto a quarentena durar.
"Eu falo por mim, pela minha necessidade de me sentir vivo e de levar uma palavra, que foi um dos estímulos iniciais. Quem tem alguma possibilidade de levar uma palavra deve fazer isso", completou.
Na Arte de Viver, há lives diárias de meditação. Algumas são transmitidas direto da Índia, país do fundador da ONG, Ravi Shankar. Outras são conduzidas como a instrutora Carolina Gordilho. No Instagram, as transmissões chegam a 450 pessoas simultaneamente, enquanto no YouTube passam de 30 mil.
Segundo ela, a entidade já tinha planos de desenvolver um projeto de sessões de meditação online. A quarentena forçada, porém, acelerou o processo. Carolina tem feito lives para a Arte de Viver (Foto: Reprodução/Instagram) "Existe um caos de modo geral, mas também é a oportunidade de a gente trabalhar a gente mesmo. É muito importante ser responsável com o mundo, com os outros, com a gente", enumera Carolina.Acompanhando Mas quem vê tanta live? A técnica de operação de poços Fernanda Melo, 29, tem assistido principalmente apresentações musicais. Acompanhou a tão falada live de Gusttavo Lima, mas também de artistas como Emicida e Agnes Nunes. Outra que gostou foi uma do professor e comediante Matheus Buente, que preparou um conteúdo sobre a formação da cidade de Salvador no dia do aniversário da capital baiana, 29 de março.
Para ela, uma transmissão ao vivo é diferente de ver a um show gravado, por exemplo.“Estar no show pessoalmente é fora do comum, porque você está ali sentindo o contato com o artista. Mas, na live, acontecem os imprevistos. Na de Gusttavo mesmo, ele bebeu, ficou à vontade, como a maioria dos que estavam assistindo. Representou todo mundo”, opina Fernanda. Ela própria chegou a preparar alguns petiscos e bebidas para o período da live. “Bebi meu uísque e a gente fez um churrasquinho dentro de casa. Sem aglomeração, nem nada. O clima é esse”, conta.
Como trabalha em campos de petróleo, ela costuma ficar uma semana embarcada, outra semana em casa. Nesse período, tem saído o mínimo possível. “Na sexta-feira mesmo, sempre tem vários artistas fazendo ao mesmo tempo. Eu fico 10 minutos em um, 10 minutos em outro”.
A biomédica Fernanda Carvalho, 33, também tem recorrido às lives para suprir a falta dos shows que costuma frequentar. Ela começou a ver as transmissões nos últimos dias, mas já conseguiu ver Duda Beat, Ivete Sangalo e Tony Salles.
"Eu gosto muito de show e nesse período a gente está impossibilitado de ir para esses lugares. É uma forma de distrair e estar mais próximo dos artistas, porque você sabe que está todo mundo na mesma situação", diz.
Mesmo assim, ela tem notado um excesso de conteúdo à disposição."Realmente, é um bombardeio de lives. Chega um momento da noite que você não consegue nem ver os stories dos nossos contatos, de tanto que tem", pondera a biomédica. Já a estudante de Relações Internacionais Brenda Aguiar, 19, dispensa o sertanejos. Ela tem visto as lives de Anitta, além das transmissões de políticas como Manuela D’Ávila e da filósofa Jéssica Miranda. Mesmo assim, ela admite que tem sido difícil manter o foco nos conteúdos. Ainda que os tópicos de discussão a interessem, é como se eles estivessem disputando sua atenção o tempo inteiro. No Instagram de Anitta, as lives são diárias (Foto: Reprodução) “Durante a quarentena, é difícil pensar em uma coisa só porque sua cabeça está muito entediada. Para mim, é difícil focar em qualquer coisa, então nunca termino. As mais fáceis de acompanhar são as de Anitta, que vejo todo dia. Ela faz academia de manhã, aula de francês à tarde e, às vezes, ioga. Eu faço as aulas também e, nas de francês, presto atenção, escrevo”.
De fato, é preciso ter alguns cuidados. A quarentena pode ter efeitos diferentes em cada pessoa, ao longo do processo, como destaca a psicóloga clínica Renata Matos, professora da UniFTC. No início, foi como se os ‘ao vivos’ trouxessem a sensação de que a vida continua.
“Mas com a permanência da quarentena, a gente tem que ter cuidado para não ficar excessivo. É tanta live para assistir que, se eu assistir todos, não vou dar conta de tudo. Quem está assistindo está tentando manter o ritmo de vida, mas fico me questionando até que ponto estão contribuindo efetivamente no sentido de conteúdo".
A sensação de proximidade é real para quem assiste, da mesma forma que para aqueles que fazem. Muitos dos que têm feito transmissões estão tentando atender expectativas de seu público, assim como fazer com que as pessoas não se sintam desamparadas.
No entanto, de acordo com Renata, também há um certo oportunismo em algumas situações."Tem pessoas que estão se aproveitando do momento para aparecer, para vender curso, construir ou alimentar um nome. Há uma necessidade de não ser esquecido, porque quem não é visto não é lembrado", analisa a psicóloga. Uma dica da psicóloga é identificar o que cada um quer fazer naquele momento. Às vezes, a pessoa pode simplesmente não querer fazer treino ou aula de idiomas. "A gente está em um momento que vão ter dias bons, dias mais ou menos, angustiados, de incerteza. Mas tenho a sensação de que a gente às vezes tenta viver como se não estivesse acontecendo e isso traz uma sobrecarga", completa.
'A live funciona na lógica da escassez; é a vendedora da Avenida Sete', diz pesquisador
O ponto forte das lives são a informalidade - ainda que empreitadas como a de Gusttavo Lima tenham dado certo. Quem diz isso é o pesquisador Alexandro Mota, mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas e autor da pesquisa Jornalismo Live Streaming: um estudo das apropriações jornalísticas da tecnologia de transmissão audiovisual ao vivo no Facebook.
Em entrevista ao CORREIO, ele falou sobre os principais aspectos desse fenômeno.
Pelo que você tem visto dessas lives "da quarentena", é possível identificar alguma diferença ou especificidade delas, em comparação às lives que são normalmente feitas por esses perfis? A minha observação é que, de um modo geral, não dá para comparar porque o grande volume de lives que temos hoje é de perfis que não fazia antes ou que fez esporadicamente. Você percebe isso no depoimento das pessoas que estão fazendo e até como ainda usam de modo experimental os recursos. Quem já fazia antes, certamente, traz sua expertise, já sabe o que funciona ou não, mas está surpreso com o público que agora é maior por conta da necessidade de isolamento social. A grande distinção das lives nesse momento de ‘quarentena’, então, é que temos mais pessoas dispostas e com tempo para assistir, mas não apenas para assistir. Elas querem interagir. Tudo isso que cria um ambiente favorável para uma live de sucesso e para uma produção que explora ao máximo as potências dessa tecnologia, que é justamente essa promessa de socializar em ‘tempo real’. Parece meio óbvio, mas é importante dizer que a tecnologia é a mesma. Ela está aí há um certo tempo e não mudou nesses dias. Nós que mudamos temporariamente nossos hábitos de consumo e produção. O fator quantidade de pessoas assistindo, à primeira vista, também pode ser algo banal, mas ele me parece determinante para a experiência. Todos nós sabemos diferenciar, por exemplo, a experiência de um show intimista em um barzinho, ou exclusivo para convidados, da experiência de um grande show com uma plateia numerosa e barulhenta. Resguardada as proporções e os ambientes, ter muita gente muda o modo como essas transmissões acontecem, o tipo e a variedade de interações que a gente vai encontrar lá. Inclusive, a superlotação, em ambos os cenários, do barzinho ou na live, sabemos, tem seus inconvenientes, no caso da live tem gerado um consumo grande da largura de banda e acarretado lentidões e travamentos. Que tipo de conteúdo você tem visto com mais frequência nos últimos dias? É um conteúdo similar ou diferente das lives "pré-quarentena"?
Se tem algo que a gente não pode reclamar do brasileiro é a falta de criatividade, não é? Tem uma gama muito grande de formatos que as pessoas estão usando, desde lives sem nenhum tema, que a pessoa liga para afastar a solidão desses dias, contar da vida e responder quiz, passando por treinos de atividade física, o que podemos chamar de programas de receita, dicas de saúde, entrevistas, pocket shows... Dentro disso tudo, o que realmente me parece novo, distinto do que a gente via antes, é a lógica de “festival musical”, live festival, que tem ganhado ainda mais destaque pelo peso dos artistas envolvidos com esse cancelamentos em massa de turnês e pela nossa necessidade mesmo de entretenimento. Pelo o que tenho acompanhado, O Globo foi quem se antecipou por aqui com o festival #tamojunto, o que foi replicado em iniciativas locais e de outros artistas. Não é apenas uma experiência brasileira. Outros países também fizeram e estão fazendo o mesmo, como em Portugal teve o Festival Fico em Casa.
Fora isso, os demais formatos poderiam até estar adormecidos, mas não são inéditos desse contexto da pandemia. Essa diversidade de formatos abraça um discurso forte nesses últimos dias que estamos tendo de consumir conteúdos, digamos, edificantes, do tipo aprenda como fazer, cuide de sua saúde, veja aulas, cursos... A gente teve mais de 30 mil pessoas em uma live com Anitta aprendendo francês, por exemplo. Temos lives que podemos chamar do olho a olho, gente que está adaptando o que já fazia para a live.
São artistas que transmitiam seus shows presenciais mas agora adaptam-se para esse ambiente, ou de marcas que estão sem clientela e querem aproveitar para fidelização e alcance de novos públicos – o que é, de fato, uma grande oportunidade; você não vai, necessariamente, lembrar de uma postagem no Instagram, mas de uma marca cujo dono lhe deu um aceno na live, lhe fez rir em um dia de tédio a chance é maior. E temos a live do entretenimento mesmo, da risada, sem roteiro, daquele amigo que é mais falastrão ou daquela vizinha que resolveu colocar seu pagode e dançar na sala de casa para quem quiser ver. É muito bom ver que muitas dessas lives atraem muita gente à revelia da lógica comercial ou de grandes empresas ou marcas. O que é possível dizer quanto à recepção do público? Existe um engajamento maior?
Primeiro, é bom evitar a sedução de dizer que tudo é novo. O Facebook tinha um recurso chamado Live Map, um mapa que você podia ver as transmissões espalhadas pelo mundo e perto de você. Muitas dessas transmissões eram de evangélicos em casa ou na igreja usando para pregação. Ou seja, não é de agora que as lives estão sendo usadas para culto porque as pessoas não estão podendo ir para as igrejas. Outro exemplo de que não é novo: gamers. Quem tem filho adolescente em casa que lives de jogo são uma febre, há redes sociais só para isso, há um página no Facebook também reservada para encontrar transmissões do tipo.
Com esses dois exemplos eu quero dizer que as lives até então eram muito bem recebidas e difundidas em nichos. Certamente quando essa pandemia for controlada muita coisa vai ficar e vai mudar em nossa sociedade e, quem sabe, não possamos constatar que as lives, uma vez experimentadas nesse período por um público maior, se distanciem um pouco dessa característica de um produto prioritariamente de nicho para se aproximar mais de algo realmente massivo. Teremos que esperar para ver.
Sobre o engajamento, sim, existe um engajamento maior. Isso tem a ver até mesmo com o formato live. Na minha pesquisa com 215 fanpages de mídia brasileira, usando dados de mais de 200 mil publicações de vídeo, pude constatar que a média de comentários registrada em lives é praticamente cinco vezes maior que a de vídeos que são gravados e depois postados nas redes. Isso tem a ver mesmo com o convite que as lives fazem para o comentário e para a participação. A live funciona muito na lógica da escassez. Ela é a vendedora da Avenida Sete ou o comercial da loja de móveis que lhe diz que é a última chance de comprar/ver, que está acabando. É muito diferente de um vídeo postado lá no Youtube que eu posso marcar para ver depois. Esse senso de urgência é parte do que atrai as pessoas. Quem gosta de consumir lives, então, eu recomendo que fique atento a isso para evitar a ansiedade que já está em alta nesse cenário de pandemia, inclusive porque às vezes dá pra ver depois. No Instagram até 24 depois e no Facebook, se não for apagado por quem fez, fica lá como um Vídeo Sob Demanda.
É possível dizer que a saturação também chegou ou chegará de forma mais rápida ou ainda é cedo demais? A live já virou piada nesses últimos dias. O meme da pessoa que tem medo de abrir uma geladeira e encontrar uma live. Mas para além da piada, é claro que a oferta de tudo isso é de uma medida que não damos conta. Parafraseando Caetano Veloso, quem vê tanta live? Ainda assim, eu não acredito em uma saturação, mas em um movimento de popularização. Quando tudo isso passar haverá um reajuste de expectativas, um equilíbrio de oferta e demanda que passa por pessoas que se permitiram experimentar o recurso e darão mais chances quando verem um símbolo de live no Instagram ou em outras redes daqui pra frente. O ao vivo no Instagram, que é o mais popular agora, chegou no Brasil em 2017. Então, é um recurso novo, ainda caindo no gosto e nos hábitos de consumo das pessoas. Não saturou. É só um momento de entusiasmo que vai passar e vai deixar a clientela de quem assiste e o mercado de streamers maiores.
Eu acredito que esse movimento dos últimos dias, inclusive, reanimou o Facebook, que andava meio começando a colocar lives para escanteio. Fazia tempo que não anunciava novidades e essa semana voltou a prometer o gerador de legendas automático e vai dar a opção de apenas ouvir a live sem o vídeo, o que é legal para esses nossos tempos de internet escassa. São recursos que chegam primeiro no Facebook Live, mas logo é replicado no Instagram, como de costume, por ser do mesmo grupo.
A live de Gusttavo Lima quebrou recordes de audiência no fim de semana e foi muito discutida justamente pela estrutura que ele montou. O quanto de influência tem a pré-produção no engajamento das de quem acompanha? Claro que a pré-produção é um fator importante, mas grande parte do sucesso da live de Gusttavo Lima pode ser depositada na conta da projeção que ele já tem como artista (antes da live ele já tinha mais de 10 milhões de seguidores no YouTube) e com uma escolha acertada de dia e hora - um dos nossos primeiros sábados à noite de reclusão. Então, para quem faz ou quer fazer live, eu acho que a escolha da hora é algo muito estratégico, precisa entender seu público. Quem viu a live de Gusttavo Lima e quer fazer live pode ficar despreocupados que não precisa ter uma mansão com megaestrutura. A live é forte e popular justamente pela informalidade, em geral por algo mais intimista, que cabe ali na tela vertical do celular, importando mais o conteúdo, o que se tem para dizer ou mostrar. O que ele fez teve um grande sucesso e é um ponto fora da curva que inclusive deve servir de exemplo para um novo nicho de mercado do showbusiness, acredito. Aspectos de pré-produção básica que qualquer um pode seguir é avisar com antecedência ao seu público que vai entrar ao vivo, que horas e dia vai ser, fazer um card, gerar esse burburinho e compromisso, antecipar o tema para o público, pensar que quando começa não tem um público de cara. Então, precisa planejar de que forma criativa e atrativa para manter quem já chegou e, quem sabe, pensar também em convidados - gente que tenha a mesma energia ou temática que você para dividir a tela para um bate-papo que é algo que também tem sido bem recebido.
Qual é a sua visão do contexto atual? Dá para dizer que houve banalização de um recurso ou ainda há espaço para recorrer mais a ele? Eu não acredito na banalização, acho que o que está acontecendo é uma apropriação, estamos, como sociedade, usando desse recurso do modo como neste momento convém. Acho curioso ver gente confundindo lives com chamada de vídeo, como se tudo fosse a mesma coisa, e até isso nos diz algo. No fundo estamos nos apropriando de um momento da cultura em que o streaming faz completamente parte da nossa rotina, que há uma cultura do streaming, para gerar algo que no momento todos estamos sentindo falta, que é socializar. E estamos fazendo isso através da tecnologia do nosso tempo.
Acho que vamos ainda usar muito essas ferramentas e só precisamos pensar mais na responsabilidade desse uso. Não é a toa que às emissoras de televisão têm uma concessão pública para transmitir conteúdo, então quem faz lives, como emissor, mesmo sem haver uma regulação estatal – há os termos de uso das próprias redes que precisam ser observados –, tem que pensar na responsabilidade do que diz, do que faz, se preocupar com fake news, já que estamos diante de um conteúdo que é potencialmente propagável.
Lives para ficar de olho: Anitta - a cantora tem feito lives diárias em seu perfil no Instagram (@anitta). Há desde conversas com nomes como Miley Cyrus até aulas de ginástica e francês. Os horários têm sido anunciados por lá também. Arte de Viver - lives diárias de meditação no Instagram @artedeviver e no YouTube. Fátima Bernardes - a apresentadora tem feito lives de segunda a sexta-feira, às 10h30, horário original do programa Encontro. Transmissão no instagram @fatimabernardes Justin Neto - O coreógrafo tem feito lives de aula de dança em seu perfil no instagram @justneto. Del Feliz - Todas as noites, o forrozeiro promove o Live Show, às 21h, no Instagram @delfeliz. Djamila Ribeiro - A filósofa tem promovido conversas e debates em seu perfil no Instagram @djamilaribeiro1. FitDance - A companhia tem feito lives diárias com o projeto #EmCasaComAFitDance, no Instagram @fitdance Xand Avião - neste sábado (4), a partir das 16h, no canal do artista no YouTube. Parangolé - do domingo (5), a partir de 17h, no instagram @bandaparangole Jorge e Mateus - neste sábado (4), às 20h, no YouTube. Pastor Henrique Vieira - O pastor também tem feito lives diárias em seu perfil no Instagram @pastorhenriquevieira. Centro Espírita Ponto de Luz - O centro tem feito transmissões em seu perfil @souceapl no Instagram. As lives não ficam gravadas. Lana Parrilla - A atriz da série Once Upon a Time fez lives relaxantes, no melhor estilo ASMR. Ela divulga em seu perfil no Instagram @lparrilla. Unha Pintada - O cantor anunciou uma live no domingo (5), em seus perfis no Instagram, YouTube e Facebook, a partir das 16h.