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Da Redação
Publicado em 9 de junho de 2019 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
“Uma feiticeira me disse: você tem algo a resolver no mar”. Se alguém acredita que nome é destino, esta seria a confirmação da profecia da velha senhora para Mário, lá nos princípios dos anos 1990. Para quem tem o mar no próprio nome, ficou fácil aceitar o oráculo e se enveredar pelas rotas oceânicas, tornando-se mergulhador e narrador de histórias de piratas, recentemente reunidas em seu primeiro livro (Pirataria no Mar da Bahia, Editora Kazuá, 2019).
Quando nasceu, em junho de 1954, numa família de imigrantes galegos, radicados nesta terra há duas gerações, recebeu o nome Mário Cortizo Andion. Mas, aos 19 anos, nas ruas da cidade da Baía, em 1973, foi rebatizado Mário Mukeka, após ser detido, junto com amigos, por causa de uma moqueca de peixe vermelho, turbinada com algumas berlotas de cannabis sativa.
Naqueles anos de contracultura e ditadura militar, os jovens eram reprimidos pela polícia apenas por usarem cabelos longos, terem pinta de artista e circularem por locais badalados da cidade como o Porto da Barra e a Boca do Rio. (Foto: Sora Maia) Após sucessivas detenções, um cronista de jornal o considerou “irrecuperável” e o estigma foi tornando sua vida mais difícil, sobretudo para o jovem que, aos 21 anos, já era pai de duas crianças: Mário Luís e Indiara, nascidas de seu relacionamento com Yara, uma descendente dos Tupinambá da Bahia.
Foi, então, que Mario Andion transformou o vulgo Mukeka em nome artístico, se metamorfoseando várias vezes, ao longo de suas seis décadas e meia de vida: artista plástico; compositor e músico; carpinteiro naval e de móveis; escultor; mergulhador; caçador de tesouros. Pirataria no Mar da Bahia marca o nascimento do escritor, fazendo de Mukeka o verdadeiro pirata dos "sete Mários”.
Mário viveu intensamente os anos da contracultura e, quando viu Os Novos Baianos se separarem, em 1979, se sentiu desconsolado, por ver morrer o sonho da sociedade alternativa e a possibilidade de viver sob o mesmo teto com amigos, unidos pela música. “Aquilo me prejudicou muito”.
Contudo, a desilusão não foi suficiente para desistir da arte. Nos anos 1980, conquistou dois Troféus Caymmi, como um dos vocalistas da Gang Bang, banda de rock and roll formada por amigos de longa data. Mas a vida desregrada e incerta, de noites perdidas entre os bares, os palcos e as alcovas, da velha São Salvador, não sobreviveriam à próxima década. (Foto: Sora Maia) Com o fim da Gang Bang, passou a se dedicar, com mais regularidade, às atividades que o ligavam ao mar; ora construindo ou consertando barcos, entre a rampa do Mercado e o cais da Ribeira; ora mergulhando em busca de tesouros perdidos por embarcações naufragadas, durante tempestades ou em sangrentas batalhas, nos tempos em que os engenhos do Recôncavo Baiano produziam grande parte do açúcar que adoçava vidas mundo afora.
Por este motivo, Salvador era uma cidade portuária bastante cobiçada por impérios e piratas europeus. Quem sabe, por isso, até hoje “é doce morrer no mar”.
Pessoa carismática, exímio narrador e aficionado pelo cabalístico número sete, as aventuras de Mário Mukeka, assim na terra como no mar, se desdobram pelos cenários que se espalham desde as profundezas oceânicas, dos perdidos tesouros ainda por encontrar, passando pela rampa do Mercado Modelo, para desaguar nas entranhas da Baía de Todos-os-Santos, depois de lamber as areias do Porto da Barra.
Se você anda com ele, por ali, pela Praça Cairu, vai apontar para a parte alta da cidade velha, acima do Elevador Lacerda, e vai falar das sete colunas do Palácio Rio Branco e dos sete arcos da Ladeira da Misericórdia, como uma constatação de que a arquitetura não se limita a fornecer estruturas visíveis, mas também expressa sistemas de crenças e valores de natureza intangível. Basta saber procurar os símbolos e se deixar levar pelas artimanhas dos significados.
Em suas tantas sete vidas, Mario fez de tudo um muito, seja como artesão, músico, caçador de tesouros ou até mesmo costureiro. Atualmente, se dedica bastante à carpintaria, especialmente com madeira recolhida de demolição. Porquanto, não basta criar um novo e charmoso objeto, será sempre um prazer a mais também ter uma boa história para contar. (Foto: Sora Maia) O talento lhe apareceu ainda criança, quando o pai, conhecido pela pitoresca alcunha de Manolo Maluco - piloto de avião autodidata, que realizou a façanha de voar por baixo do vão do Elevador Lacerda -, lhe deu de presente um conjunto de chaves de fenda, martelo, alicate, serrote, formões, trazido dos Estados Unidos.
O menino saiu a desmontar tudo o que achava pela frente, para remontar conforme a imaginação mandava. Essa curiosidade criativa é um traço que se destaca na pessoa Mario Mukeka, levando-o a fabricar móveis de variados tamanhos, brinquedos, barcos, além de sua própria casa, com madeira de demolição, dentre outros materiais.
Se você quiser um móvel funcional, bonito e exclusivo, basta chegar junto. Um antigo assoalho de pau d’arco pode renascer como uma confortável poltrona, sustentada por rodinhas. O jequitibá, o breu branco, o breu preto, o cedro, retirados de portas, janelas e painéis decorativos de casas antigas que sucumbiram aos arranha-céus, facilmente ele transforma nas estruturas e nos tampos de mesas, camas, carrinhos de bebida ou banquinhos em forma de coração.
Melhor ainda se você quiser participar do processo, tardes a fio, gargalhando e se divertindo com os causos do pirata, enquanto ajuda a lixar, furar, calafetar, polir a madeira, na condição de ajudante ou aprendiz. O Galpão de Catarina, onde funciona o ateliê, estará de portas abertas.
Colecionador de “ex-queridas” - tal como ele chama as inúmeras mulheres que o seduziram e foram seduzidas por sua sutil prosa poética -, pelas suas contas, casou-se dezessete vezes, embora nunca tenha assinado qualquer papel. Filhos foram apenas dois, igual ao número de netos.
Nos últimos dias, Mario tem transbordado de alegria, por ver Júlia Andion, sua neta de 12 anos, cantar diante da Orquestra do Estado da Flórida, EUA, onde reside com a mãe, Indiara, e o irmão, Felipe.
Hoje, ele manca de uma perna, após um episódio de “doença descompressiva”, ocorrido durante um mergulho realizado há mais de dez anos. Mas já deu muitos pulos nessa vida. Vai se equilibrando como pode e se considera um homem de sorte, apesar de que “nunca tive um dia sem dificuldade”, tal como ele gosta de dizer, entre risos e olhares de deboche.
Dificuldade recorrente é encontrar vaga preferencial, “só porque ando de motocicleta, não posso ter vaga preferencial, mesmo com mais de 60 anos? É brincadeira?" Até quando, sociedade? Ao ouvir suas peripécias, há quem o chame de “Highlander”, em bom baianês,"couro de rato”. Mukeka é assim, aquele tipo de pessoa feita de biriba, madeira que verga, mas não quebra.
Corsários As Grandes Navegações, a partir do Séc. XVI, tal como ficaram conhecidas as iniciativas imperialistas de países europeus, resultaram na invasão, ocupação e exploração das terras do, assim denominado, "Novo Mundo". Durante três séculos, diversas embarcações deixaram riquezas no fundo do mar. E muitas histórias em terra. Em ‘Pirataria no Mar da Bahia’, numa narrativa poética e envolvente, Mário Mukeka interpreta e recria, de modo livre, vários episódios de batalhas e de naufrágios ocorridos nas águas da Baía de Todos-os-Santos.
*Núbia Bento Rodrigues é professora da Universidade Federal da Bahia e escritora. Publicou, pela Editora Kazuá, Roteirista e Personagem, Sítio Caipora, Quem vigia o vigia e Um Certo Nelson Rodrigues ou a Soma de Nossas Obsessões.