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Laura Fernades
Publicado em 28 de abril de 2021 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
O “jovem senhor de quase 62 anos” que sorri do outro lado da linha telefônica tem várias identidades: ele é o “moço lindo do Badauê” cantado por Caetano Veloso na música Beleza Pura, mas também Carlos Pereira dos Santos, ou simplemente Negrizu. Dançarino referência para a cultura afro-baiana, Negrizu é coreógrafo, performer, professor, ator, griô e autodidata. É na multiplicidade que o artista com mais de 40 anos de carreira se sente confortável e é isso o que mostra o Memorial Virtual Negrizu – Um Corpo Afoxé, que será lançado na quinta-feira (29), Dia Internacional da Dança. O site conta a história do dançarino adepto do candomblé que se sente “um protegido de Exu”. “Ele está sempre abrindo meus caminhos. Sou bem que nem ele: essa diversidade de coisas”, compara. A relevância cultural, artística e pedagógica do dançarino revelado pelo Afoxé Badauê é destacada em vida, o que para Negrizu é “uma honra”. Além de um ensaio fotográfico feito por Shai Andrade no Parque São Bartolomeu, onde o dançarino foi batizado, o Memorial traz um conteúdo inédito gravado em três etapas. Uma delas é uma performance com trilha sonora de Thiago Trad, 39, idealizador, diretor artístico e curador do projeto contemplado pela Lei Aldir Blanc. O memorial também traz uma entrevista e uma videoaula com Negrizu. “Tem apresentação, aquecimento e fundamentos da dança dele. Uma infinidade de movimentos e mensagens que ele traz, da dança da terra, do movimento ancestral”, destaca Thiago. Memorial traz ensaio fotográfico inédito de Negrizu feito por Shai Andrade (Foto: Shai Andrade/Divulgação) Músico de bandas como Bailinho de Quinta e Cascadura, Thiago se encantou por Negrizu depois de entrevistá-lo, há dez anos, para uma disciplina do curso de Bacharelado em Música na Ufba. Os dois desenvolveram uma amizade profunda que parecia improvável – “Eu venho do rock e ele do afro”, brinca Thiago – e o Memorial é fruto desse encontro. “Consegui acessar a grandiosidade dele como artista. É um mestre da cultura afro-brasileira, para além do dançarino. Negrizu precisa ser ouvido, precisa ser reconhecido pelo que já fez, como uma liderança, como um cara afrofuturista em um momento em que nem se falava isso no Brasil. Colocando o corpo dele como agente político, Negrizu tem um lugar de fala, uma representatividade imensa e única”, elogia. Autenticidade Negrizu viu sua carreira deslanchar depois de vencer a primeira edição do concurso Moço Lindo do Badauê, no Engenho Velho de Brotas, evento assistido por nomes como Caetano, Gilberto Gil, Moraes Moreira e Zezé Motta. Consagrado no extinto Afoxé Badauê, passou pelos principais blocos afros de Salvador e chegou a ser diretor e coreógrafo do Ilê Aiyê. Com mais de quatro décadas de história, o coreógrafo oficial do Olodum foi o dançarino destaque do bloco por muitos anos, sendo o desfile mais recente em 2017. Professor da Escola Olodum, Negrizu trabalhou no acervo da Fundação Pierre Verger por mais de dez anos e segue ligado à instituição que leva o nome do fotógrafo francês que também o conheceu no Badauê. “Fui levado a segurar essa autenticidade. Aquele Moço Lindo do Badauê que Caetano viu foi o cara que encantou. Depois fui estudar teatro, mas jamais busquei me desprender daquilo que estava originalmente ligado ao meu desempenho”, conta Negrizu, que optou por fugir do estudo formal eurocentrado. Sua inspiração, diz, vem “da terra, do ar, do fogo, da água”. Ensaio aconteceu no Parque São Bartolomeu, onde Negrizu foi batizado (Foto: Shai Andrade/Divulgação) O corpo é o condutor sensitivo desses elementos, explica o dançarino que também bebe na ideia da corporificação que vem do teatro. E ao ser valorizado por aquilo que chama de “formação marginal”, Negrizu só agradece: “É realmente emocionante que a gente está vivo e tem uma homenagem. Espero que se torne mais comum, principalmente para nós que fazemos parte dessa luta da cultura e da arte. Estou muito feliz”. Poder black Ao buscar na memória o momento em que despertou para a expressão artística que mudou sua vida, Negrizu não hesita: “Quando me dei conta, estava dançando”. Nos aniversários, nos 15 anos, nos bailes: “Lá estava eu me destacando”, ri. “Nas festas de largo, ouvindo James Brown, vendo Tony Tornado, vendo o mestre-sala da Escola de Samba Juventude do Garcia. Estava indo para os 10 anos de idade”, lembra. Foi na juventude que o movimento Black Power chegou com força e, por sua capacidade de “aquilombar”, fisgou Negrizu. “Eu ia na onda da juventude negra de Salvador. A calça era diferente, a roupa era diferente. Sabe a moda? Se você não está na moda, então está por fora. Mas em 1978 o Afoxé Badauê me tira da hipnose, me dá um estalo. Eu não precisava mais da moda. Eu era corpo e alma”, revela.
[[galeria]] Ao encontrar um “quilombo mais Zumbi”, mais África, “o Baduaê vira a válvula propulsora desse artista que vos fala”, diz. Mas Negrizu estava certo de que “não queria dançar orixá, dar salto mortal, puxar rede, nem dançar capoeira”, conta. “Exu tinha outros planos pra mim. Hoje tenho um respeito enorme, inclusive pelo Balé Folclórico da Bahia, mas não gostava de ver as cenas da religião como forma de agradar”, revela. A dança afro, em sua opinião, tem uma razão de ser: provoca a socialização, agrega, “aquilomba”. Mas também “promove um nutriente formidável para manter o corpo ávido”, acrescenta, e serve como força política. “A dança é o poder da expressão de um povo. A gente tem na herança de nossos corpos, principalmente o negro, a essência de uma ancestralidade. A dança agrega e juntos somos mais fortes”, acredita.
Serviço O quê: Memorial Virtual Negrizu - Um Corpo Afoxé Quando: A partir de quinta-feira (29) Onde: https://memorialnegrizu.wordpress.com