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Kátia Borges
Publicado em 12 de dezembro de 2020 às 11:00
- Atualizado há 2 anos
Falta um livro na bibliografia de Clarice Lispector, aquele que ela sonhou escrever na Bahia. A escritora, cujo centenário vem sendo comemorado ao longo deste mês, com eventos diversos em todo o país, ao entrevistar Jorge Amado em 1975, para a extinta revista Manchete, confessou ter sentido que escreveria “mais e melhor em Salvador”, embora morar no Rio de Janeiro a instigasse ao confronto.
Esse encantamento é reforçado por outro comentário, registrado durante entrevista feita com Carybé, em 1969, a quem disse estar seduzida pela Bahia, “como se uma sereia me chamasse com seu feitiço”. Que combinação forte e feliz teria sido se, “vazia de inspiração”, como admitiu ao argentino-baiano, após concluir Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, Clarice tivesse posto o plano em ação.
Mas, afinal, quem é esta escritora fascinante que, nascida na pequena cidade de Chechelnyk, na distante Ucrânia, com o nome de Chaya Pinkhasovna Lispector, viraria nordestina aos dois meses, após imigrar para o Brasil junto com a família, e se tornaria “brasileira no papel” aos 23 anos? Sobre os mistérios em torno de Clarice Lispector muito se escreveu e muito se escreve.
De início, um enigma simples: por que o nome da escritora batiza ruas em pelo menos duas cidades do interior da Bahia — em Vitória da Conquista, no bairro Boa Vista, e em Teixeira de Freitas, em Colina Verde — e nenhuma em Salvador? Para além de nomear ou não logradouros, é inegável a influência que Clarice exerce hoje, 43 anos após sua morte, ocorrida em 9 de dezembro de 1977, um dia antes de seu aniversário.
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O livro dos prazeres Vencedor do Prêmio Leya 2018 e do Jabuti 2020, na categoria romance, o escritor Itamar Vieira Junior é fã confesso de Clarice. O autor de Torto Arado conta que a descobriu ainda na infância, em contos publicados nos livros escolares.
“Ali eu já fiquei encantado e senti aquele estranhamento que a obra dela costuma provocar. Por volta dos 20 anos, quando li Laços de Família, fui fisgado para sempre”.
Mais que simples leitor, Itamar admite ter ficado verdadeiramente obcecado por Clarice Lispector durante certo período de sua vida. “Ao longo de três anos, eu li tudo que saía sobre ela, toda a obra, todas as biografias, ela tem importância fundamental no meu trabalho. Embora ache que nossas escritas esteticamente estejam distantes, há um compromisso profundo nelas com a existência humana”.
Para o poeta e professor Marlon Marcos, autor de Memórias do Mar, Clarice Lispector chegou na adolescência, quando leu os contos Felicidade Clandestina e Restos de Carnaval. A identificação literária se completaria com a leitura do romance A Hora da Estrela: “Eu estava com 19 anos e, ao fechar aquele livro, soube que ela seria a minha escritora favorita para sempre. Hoje, aos 50, continua sendo exatamente assim”.
Coordenador do Clube de Leituras sobre Clarice, promovido pelo Sesc-SP (Serviço Social do Comércio de São Paulo), que acontecerá online ao longo deste mês, o escritor Marcelo Maluf diz ter sido levado até a obra dela pelos contos e, só depois, aos romances: “A Paixão Segundo G.H foi uma leitura arrebatadora, eu fiquei sem saber o que era aquilo, por qual motivo aquele mínimo enredo não saía de mim, foi uma leitura que me causou vertigem”.
A influência na escrita do autor de A imensidão Íntima dos Carneiros se deu no campo das infinitas possibilidades da criação literária: “Penso na liberdade de sua escrita, na abertura de sua linguagem, na profundidade psicológica de suas personagens, na sua autenticidade, em tudo aquilo que desconcerta e desconstrói qualquer manual. Com Clarice, aprendi que arriscar-se vale a pena”.
Professor e jornalista, o escritor Márwio Câmara, autor de Solidão e Outras Companhias, também dará um curso online sobre Clarice este mês. Para ele, a experiência de leitura foi igualmente intensa: “Não tinha a menor ideia de que se podia escrever daquela maneira tão diferente e maravilhosa. Clarice me chamou para outros autores, tão fundamentais quanto ela na minha formação, como Joyce, Virginia Wolf e Caio Fernando Abreu”.
A maçã no escuro A escritora Marina Colasanti fala de modo carinhoso e reservado sobre a relação com Clarice Lispector, que durou muitos anos: “A nossa aproximação se deu quando Alberto Dines, então editor-chefe do Jornal do Brasil, a convidou a escrever aos sábados no Caderno B, e eu fui encarregada de cuidar dela e de rever os seus textos. Não digo que fomos grandes amigas. Me basta dizer que fomos amigas”.
Esta relação fraterna se fortaleceria ainda mais após o casamento de Marina com o poeta Affonso Romano de Sant'Anna. Então professor de literatura, ele havia escrito um importante ensaio sobre a obra clariciana e a recepcionou em suas idas a Belo Horizonte: “Affonso ensinava na PUC e convidou Clarice várias vezes para eventos na universidade. Foi assim que se estreitou a nossa amizade”, conta.
Sobre o propalado mistério em torno da escritora, Marina acredita que essa aura se deva tão somente à sua escrita que, segundo ela, chegava a prescindir da compreensão absoluta, podendo falar diretamente ao inconsciente das pessoas: “Clarice não era bruxa, embora tenha sido convidada para o primeiro Congresso Mundial de Bruxos, realizado em Bogotá. O que ela buscava era o âmago das coisas, o âmago da vida”, diz.
Autora de uma tese de doutorado pioneira sobre a ética na estética da obra clariciana, defendida em 1989 na Universidade de São Paulo (USP), a professora e crítica literária Antonia Torreão Herrera conta que conheceu a escritora pessoalmente e que ela possuía um magnetismo e uma presença marcantes: “Mas era uma pessoa simples, uma pessoa que sentia a dor do mundo e a intensidade do que significa a vida. Se desejam entender de verdade o pensamento dela, leiam o conto ‘Amor’”, recomenda.
Professora emérita do Instituto de Letras da Ufba, Antonia considera fundamental o contínuo reconhecimento da obra de Clarice Lispector, sobretudo após as distorções alarmantes de seus escritos no meio digital: “Ela ainda é pouco lida, mas a recepção acadêmica tem sido bastante significativa. Infelizmente, já estive em uma banca de mestrado na qual a mestranda usou como epígrafe um trecho atribuído falsamente a ela e que havia sido pescado em sites da internet”.
Para se ter ideia da dimensão dessas distorções, uma pesquisa simples — “Clarice Lispector frases” —, em um dos buscadores mais usados do planeta, retorna em menos de 50 segundos mais de dois milhões de resultados. “Clarice diz coisas que, aparentemente, são comuns ou que serviriam de autoajuda, mas a escrita dela, apesar de as palavras serem quase as mesmas que usamos, ela as usa numa clave diferenciada que abre um abismo na língua e uma vertigem em nossa percepção”, explica Antonia.
Leitora de Clarice desde a adolescência, a escritora paulista Mariana Ianelli classifica essa vertigem como uma espécie de “matéria-magma” capaz de tocar os acontecimentos interiormente. “Ela é todo um reino literário. como Cecília na poesia, Suassuna no teatro. A esfinge que se popularizou como seu mito-mascote é já uma espécie de apropriação simbólica que fazemos de sua escrita de teor psicológico”, diz.
Autora do livro Como Clarice Lispector Pode Mudar a Sua Vida, a escritora e editora Simone Paulino diz que virou lugar-comum estabelecer uma relação de amor ou ódio com a obra deixada por ela. “Acho que só é possível amar Clarice. Acontece que nem todo mundo está disposto a pagar o preço e pagar o preço significa, entre outras coisas, saltar no escuro sem rede de proteção. Porque a leitura de Clarice não é fácil”, explica.
Lançado em 2017, porém, mais atual do que nunca, Como Clarice Lispector Pode Mudar a Sua Vida é, como ela diz, “um livro de leitora”, pois foi construído a partir da afetividade. Mas como Clarice mudou a vida da autora? “Ela me ajudou (e me ajuda todo dia) no meu processo de autoconhecimento. Ajudou a ressignificar muita coisa de minha infância, por exemplo, com suas personagens-meninas, sempre tateando o mundo. Também me ajudou, e continua me ajudando, a ser mulher”, conta. Eis aí outro mistério da escritora, que nunca se considerou feminista e tem sido até mesmo criticada por sua postura em vida. “Clarice fez muito pela subjetividade feminina ao mostrar por dentro as engrenagens dos nossos pensamentos, sentimentos, e as impossibilidades dadas pela hostilidade de um mundo patriarcal”, observa Simone Paulino. A observação é reforçada pela pesquisadora Yudith Rosenbaum, considerada hoje uma das maiores autoridades nos estudos da obra clariciana.Psicóloga por formação e crítica literária, Rosenbaum destaca a enorme simpatia de Clarice pelo ideário feminista já nos anos 40. “Isso é visível nos contos de Laços de Família (1960), que reúne textos da década de 50. Neles, a ordem patriarcal rege o domínio das instituições do matrimônio e da maternidade, enquanto as narrativas investigam o mundo interno das mulheres, suas aspirações e anseios, revelando a inequívoca necessidade de libertação”, explica.
A descoberta do mundo Outro mistério de Clarice repousa no fato de ter seu nome associado a frases que não escreveu e, ao mesmo tempo, aos autores mais representativos da literatura. “De uns anos para cá, ela tem ocupado as livrarias e as capas das revistas nos EUA e na Inglaterra. Não é difícil prever que seus contos completos, agora traduzidos para o inglês, ganhem os mesmos leitores de Virginia Woolf e Katherine Mansfield”, observa Mariana Ianelli.
De fato, as comemorações pelo centenário há muito ultrapassaram as fronteiras do Brasil. No mês passado, por exemplo, a Universidade de Princeton organizou uma conferência online sobre a obra de Clarice, com a participação de um de seus filhos, o também escritor Paulo Gurgel Valente, de diversos pesquisadores e da tradutora Katrina Dodson, responsável pela tradução de Todos os contos para o inglês.
Na França, para marcar a data, a Éditions des Femmes colocou no mercado uma belíssima caixa (15 euros) que contém, além das traduções para o francês de A Paixão Segundo G.H e A Hora da Estrela, um livreto com fotos da autora e alguns de seus manuscritos. Há muitos outros exemplos. Um deles foi o colóquio internacional “100 anos de Clarice Lispector”, organizado, em outubro, pelas professoras Yudith Rosenbaum e Cleusa Rios P. Passos na USP.
O colóquio reuniu pesquisadores brasileiros e de todo o mundo em debates multidisciplinares sobre a obra da escritora. “Os estudos de Clarice não cessam de crescer e convocar leituras de saberes diversos, como antropologia, sociologia, psicanálise, desconstrutivismo, filosofia, perspectivismo etc. Nenhum recorte sozinho daria conta dessa escritora, que transcende o limite de todas as molduras críticas”, diz Rosenbaum.
A hora da estrela Em Salvador, a exposição Clarices, no ME Ateliê de Fotografia (Ladeira do Boqueirão, 6, Santo Antônio Além do Carmo), reuniu peças criativas em torno dos livros e da vida da escritora até este final de semana. No total, participaram 51 artistas, entre brasileiros e estrangeiros — fotógrafos, pintores, bordadeiras e atores.
A celebração do centenário, em todo o país, seguirá dezembro adentro e em variados formatos — cursos, seminários etc.
Na última quinta-feira, foi lançado um selo comemorativo dos Correios (com tiragem de 900 mil exemplares, R$ 2,05, cada unidade). Não é o primeiro em homenagem a Clarice, mas, certamente, é o mais especial de todos. Seu design leva a assinatura de Mariana Valente, neta da escritora. Mariana, que é artista visual, também assinou o doodle da página do Google que entrou no ar no mesmo dia.
No estado nordestino onde Clarice viveu com seus pais e as irmãs, Tania Kaufman e Elisa Lispector, ao chegar ao Brasil, após uma breve passagem por Maceió, ela se tornou cidadã. O título honorífico post mortem, que foi concedido pela Assembleia Legislativa de Pernambuco, atendeu pedido feito pela Fundação Joaquim Nabuco com base nas várias representações do Recife em suas crônicas.
Ainda sem data de estreia no circuito comercial, até o fechamento desta edição, há pelo menos dois longas-metragens que adaptam romances de Clarice Lispector. Com direção de Luís Fernando Carvalho, A Paixão Segundo G.H tem Maria Fernanda Cândido como protagonista. Também podemos aguardar Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, de Marcela Lordy, com Simone Spoladore no papel de Lóri.
E até as escolas de samba decidiram levar a escritora, considerada em vida tão hermética, para a avenida. Foi anunciado para o Carnaval do próximo ano — que é pouco provável que aconteça em fevereiro por conta da pandemia de covid-19 — que a Tradição, de volta ao Grupo A do Rio de Janeiro, teria a vida e a obra de Clarice Lispector como enredo, com alas batizadas com títulos de seus livros.
Para quem se interessou apenas agora em ler Clarice, a editora Rocco, que detém os direitos sobre a obra, vem reeditando todos os livros. São reedições especialíssimas por, pelo menos, três razões: as capas são reproduções de telas pintadas por ela; há textos complementares assinados por especialistas e, por fim, pela primeira vez, Paulo Gurgel Valente escreve sobre a mãe, no posfácio de A Hora da Estrela.
Ao escrever sobre Clarice, Paulo Gurgel Valente relembra a carta que ela enviou ao então presidente do país, Getúlio Vargas, em 3 de junho de 1942, solicitando que acatasse o pedido de sua naturalização como brasileira, na qual alega que não possui e nem elegeria outra pátria senão o Brasil: “Creia-me, senhor presidente, ela (a naturalização) alargará minha vida. E um dia saberei provar que não a usei inutilmente”.
Para conhecer Clarice Lispector
Preparamos uma lista de livros que se debruçam sobre a vida da escritora, reúnem escritos diversos ou sugerem leituras criativas de sua obra
1. Clarice, Uma Vida que se Conta, de Nádia Batella Gotlib. Edusp | 656 pags | R$ 65,62
2. Como Clarice Pode Mudar a Sua Vida, de Simone Paulino. Buzz Editora | 122 pags | R$ 22
3. Todos os Contos. Rocco | 656 pags | R$ 46,33
4. Todas as Crônicas. Rocco | 704 pags | R$ 86
5. Todas as Cartas. Rocco | 864 pags | R$ 77,90
6. Clarice, de Benjamin Moser. – Cia. das Letras | 576 pags | R$ 74,90