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Hilza Cordeiro
Publicado em 27 de outubro de 2019 às 16:15
- Atualizado há 2 anos
“Aqui está grave, olhem o tanto de óleo”, anuncia uma voluntária do grupo Guardiões do Litoral, que logo atrai ajudantes em volta de uma rocha na praia do Farol de Itapuã. Se o domingo era sinônimo de banho de praia para alguns, para outros é dia livre para ajudar a remover o material tóxico que ainda toma conta do mar da Bahia e totaliza 249 localidades afetadas no Nordeste. De frente para Juvenal Lacerda, 38, professor de jiu-jítsu, os presentes escutam as razões que o levam ali e as instruções prévias antes de iniciar a limpeza do local neste domingo (27).
“Pessoal, a máscara que oferecemos aqui, infelizmente, é só um paliativo, mas coloquem. O ideal é que fossem aquelas de filtro, mas ainda não temos”, diz ele, que mora na região e participa dos mutirões desde o último dia 11 de outubro. Com pequenas pás, luvas, sacos de lixo, baldes e outras ferramentas compradas através da vaquinha feita pelos Guardiões, os voluntários partem para o trabalho árduo de retirada.
Sob o sol quente, agachada nas pedras, a francesa Juliette Robichez, 51, moradora de Itapuã, mostra a dificuldade de se extrair o óleo. Usando uma espátula, ela raspa o óleo três, quatro vezes, junta o resíduo e põe no balde revestido com saco de lixo. Professora de Direito, Juliette vem ajudando desde o começo, mas quase não saía de casa hoje. A foto de uma enorme tartaruga-cabeçuda morta, encontrada ao lado do farol, e a motivação do professor de jiu-jítsu a fez reunir os equipamentos e se juntar ao grupo às 7h da manhã. “Eu nem quis chegar perto para ver a tartaruga porque senão sinto vontade de chorar, é muito triste. Com o mar sujo, Salvador perde a sua alma. Não é só o turismo. É a identidade baiana, que está relacionada ao acarajé, à moqueca e todas as outras comidas [de mariscos] que temos aqui. Eu me apaixonei por Salvador por causa do mar”, lamenta ela.Pescadores, cientistas, surfistas, filhos de santo, moradores de regiões afetadas e tantas outras pessoas estão, há dias, numa luta quase diária para conter as consequências deste que já é considerado o maior desastre do litoral brasileiro. Alguns deles tentam explicar de onde vem esta onda de união e o ímpeto de fazer algo. O movimento humano em prol da causa surpreendeu Juvenal, que não esperava tamanha adesão. Voluntários enfrentam luta diária para conter o óleo (Foto: Guardiões do Litoral/Reprodução) Onda de união Ao todo, 17 praias são monitoradas pelos Guardiões do Litoral, cada uma com seu líder. Pela manhã, logo cedo, eles checam a situação dos determinados locais para ver se tem registro de óleo e avisam no grupo de WhatsApp. A partir daí, todos são chamados para formar o mutirão. No ‘zap’ de Itapuã são 44 membros ativos, mas tem gente que chega lá de forma espontânea, já que as as mensagens vão sendo compartilhadas.
“O grupo é formado por pessoas apaixonadas pelo mar, que têm preocupação com a causa ambiental. A gente se juntou para não deixar esse nosso paraíso se acabar. Se cada pessoa traz mais uma, são 88. E se essas trazem mais uma, vai dobrando e dobrando, a gente não esperava tanta adesão, é bonito de ver”, conta Juvenal, que surfa desde criança.
Filho de mergulhador profissional, ele conta que seu pai já trabalhou em plataforma de extração de petróleo. Quando era criança e nadava na Baía de Todos Os Santos, já se indignava com o rastro de óleo que era deixado pelos navios. “Hoje eu vejo que aquilo ali não era nada perto do que estamos assistindo”, comenta. Ele, que sempre morou próximo à praia, define o mar como sua segunda casa. Sunga e chinela foram substituídas por botas e calças de proteção | Foto: Tiago Caldas/CORREIO
'Salciabilidade'
A sociabilidade que o jiu-jiteiro construiu na vida veio a partir do ambiente que se esforça para salvar. Os laços com a sua família e os amigos que conquistou ao longo do tempo estão diretamente associados à paixão pelos esportes marítimos. Surf, pesca, nado, mergulho, ski. Foi também nesta história que perdeu um irmão, afogado. “Minha relação é mesmo desde que nasci. Então sinto muito o que está acontecendo. Isso me ajudou a ter mais amor e zelo por esse lugar”, declara.
O movimento do qual Juvenal é um dos líderes trouxe surpresa para Juliette, que enxerga que o baiano tem uma solidariedade forte entre família, mas nem tanto para as causas sociais. “Na França, por exemplo, as pessoas deixam a mãe num asilo, mas, por outro lado, estão ligadas à associações em defesa de algo. Aqui as pessoas têm laços fortes entre si, mas pouco para o social”, compara.
Ali, enquanto retiram as crostas de petróleo, pessoas que moram na mesma região passam a se conhecer melhor. Juliette e Tarsila Maia, 33, filha de pescador, trocam vivências. Tarsila levou materiais para compartilhar com os demais voluntários e conta que o pai deixou de pescar. Segundo ela, os prejuízos econômicos já chegaram na conta dos trabalhadores da Colônia de Pescadores Z6. Juliette, de branco, usa espátula para buscar óleo entre rochas e limo | Foto: Tiago Caldas/CORREIO Vaquinha No começo, todos os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), como máscaras e luvas, eram comprados pelos voluntários. O aumento na quantidade de praias atingidas fez com que eles precisassem de uma vaquinha. Os Guardiões do Litoral arrecadaram R$ 57 mil e é com esse recurso que o grupo está comprando e distribuindo materiais em Salvador, e nos litorais norte e sul do estado, como em Moreré, Barra Grande e Sítio do Conde.
“A pessoa que está responsável pela compra dos equipamentos está rodando a cidade e pedindo descontos, contando sobre a causa do mar”, revela Juvenal. Segundo ele, a Concessionária Litoral Norte (CLN), que administra o pedágio para o litoral baiano, também vem ajudando, liberando o acesso para os líderes que estão indo fazer a limpeza.
O grupo que começou com 50 pessoas já mobilizou mais de 500 voluntários e é encabeçado pelo engenheiro civil Arthur Sehbe, 34 anos. Especialista em soluções ambientais, Arthur estava em casa quando viu a notícia de que as primeiras manchas de óleo haviam chegado à costa da Bahia.
Protesto Sensibilizado, ele movimentou os amigos mais próximos, que, por sua vez, foram chamando outras pessoas. Desde então, eles já recolheram óleo desde Sítio do Conde, perto da fronteira com Sergipe, até o litoral sul do estado. Neste sábado (27), o movimento de limpeza virou também manifestação. No Farol da Barra, o protesto pedia agilidade das autoridades na resolução das manchas de petróleo.
De acordo com o último balanço da Empresa de Limpeza Urbana (Limpurb), 108 toneladas do material tóxico já foram removidas das praias de Salvador. Na última terça-feira (22), a Marinha do Brasil informou que mais de mil toneladas de óleo foram removidas da costa nordestina. O relatório mais recente divulgado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) neste domingo, contabiliza 249 localidades afetadas na região Nordeste em 92 municípios. Tartaruga-cabeçuda foi encontrada morta pelos voluntários. Tamar não especificou causa da morte | Foto: Tiago Caldas/CORREIO Ainda conforme o relatório, a Bahia está com três locais manchados (Taipu de Fora, Sítio do Conde e Jandaíra), 32 apresentaram vestígios esparsos e outras 24 que haviam sido afetadas não foram observadas ocorrências na última revisita do órgão. O ponto mais ao norte afetado é Mangue Seco, pertencente à Jandaíra, e, ao sul, Acuípe, no município de Ilhéus.
Presente na manifestação no Farol da Barra, a psicanalista Patrícia Lopes, 50, chorou ao falar da dimensão do problema.“Fico comovida pelas espécies, por nós, por nossas crianças, e pelo futuro. É um absurdo estar tudo tão manchado desta forma. O planeta está vomitando óleo e ninguém sabe de onde vem. Isso me emociona muito, ver todo mundo unindo forças para algo que é muito maior que uma manifestação, é um movimento de valorização da ancestralidade”, disse.Água da Bahia Observador destes desdobramentos humanos em torno das praias, o antropólogo Jaime Sodré ensaia explicações sobre esse desejo em ajudar que despontou nos baianos. No seu entendimento, Salvador tem uma relação muito íntima de identidade com o mar, que passa inclusive pelas religiões, que o endeusam, venerando como uma entidade.
Segundo ele, a conscientização para a limpeza deste habitat tem sido crescente e é possível observar isso na tradição dos presentes para Yemanjá. Os devotos têm adotado presentes mais sustentáveis, os chamados biodegradáveis. “O mar é um monumento natural e uma mancha de óleo macula este importante elemento do sincretismo baiano”, justifica. Sodré diz que o discurso ecológico também está presente nas igrejas católica e evangélica, uma vez que o batismo nestas religiões passa pela água.
Na comunidade turística de Baixio, no Litoral Norte, um pastor evangélico ajudou a criar um movimento de limpeza, solicitando aos fiéis para ajudassem. Quando viu a situação no local, que chegou a tirar 18 toneladas numa semana, o Pastor Joaquim organizou a ideia e divulgou durante um culto na Igreja Batista.
“Ele pediu para que, quem tivesse esse desejo no coração, de pensar na comunidade e na natureza, fosse auxiliar a tirar o óleo porque não tinha como ficar de mãos cruzadas, esperando o governo tomar as providências, temos que pensar primeiro em nós ”, conta o pescador e fiel Ricardo Lobato, 36.
Para o operador de turismo Márcio Pereira, 30, que faz passeios entre Morro de São Paulo e Garapuá, se tem uma coisa que a Bahia entende, isso é de solidariedade e amor ao mar. Juvenal Lacerda acredita que essa sensibilidade com o assunto não é exclusiva dos baianos e demais nordestinos. “Em qualquer lugar do mundo, o povo se mobilizaria”, contraria.
Com mais de mil quilômetros de litoral, a Bahia possui a maior costa do país e, para Jaime Sodré, é impossível pensar o estado sem levar em conta o elemento aquático. Afinal, lembra ele, foi pelo mar da Bahia que o Brasil foi descoberto e, antes mesmo da chegada dos portugueses, nossos índios já o cultuavam. “O que eu acho interessante no que está acontecendo é que as pessoas estão descrentes nos governantes e sabem que esperá-los pode não dar tempo. As pessoas superaram suas diferenças, de ser rico, pobre, preto, branco e puxaram a causa para si e disseram ‘eu preciso fazer algo’ por entender que o que está aí é nosso e que é preciso uma postura de preservação. As pessoas que estão limpando as praias não estão interessadas em quem sujou, mas em resolver o problema e isso é potente”, finaliza Sodré.Colaborou o repórter Gil Santos