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Alexandre Lyrio
Publicado em 7 de julho de 2019 às 08:15
- Atualizado há 2 anos
No dia 1º de junho, munidos de faixas, cartazes e uma boa dose de indignação, estudantes negros invadiram o Teatro Martim Gonçalves, na Escola de Teatro da Ufba, e interromperam o espetáculo Sob as Tetas da Loba, dirigido pelo dramaturgo Paulo Cunha. Na plateia, as reações foram variadas. Houve quem ficasse em pânico e até aqueles que acreditaram se tratar de parte da montagem. O fato é que o ato, que realmente não estava no roteiro, pode representar o início de uma mudança de cena histórica na unidade e na própria universidade.
O protesto foi direcionado não só contra a peça, que os estudantes consideraram de cunho racista, mas também contra o que chamam de “racismo institucional histórico” na Escola. Além de discussões acaloradas, a invasão desencadeou um processo administrativo contra os personagens da ação, uma audiência pública, um boletim de ocorrência registrado por uma professora, a entrega de uma moção à Reitoria com a assinatura de mais de 50 entidades negras e, como capítulo mais recente, o anúncio da criação de um Grupo de Trabalho para orientar a elaboração de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) antirracista.
Ouvidos pelo CORREIO, quase duas dezenas de estudantes, professores e funcionários da Ufba confirmaram que a Escola de Teatro está rachada. Eles definem o momento como tenso, traumático e necessário. A reportagem passou uma tarde e uma manhã entrevistando pessoas que circulavam no local . A situação é tão delicada que a maioria não quer se identificar. Boa parte dos estudantes, inclusive brancos, apoia a organização Dandara Gusmão, que organizou o protesto e abriu as cortinas para a discussão.
Para Ronald Vaz, aluno negro da pós-graduação, um dos poucos que autorizaram ter o nome divulgado, o espetáculo Sob as Tetas da Loba foi a gota d´água para a ação da Dandara Gusmão.“Uma postura acertada. O contexto da peça é racista. O racismo está presente em todas as instituições da Ufba, mas na Escola de Teatro isso é ainda mais notório”, afirma Ronald.Ele diz que não são de hoje os questionamentos referentes às seleções de elencos para as peças, por exemplo. “A Dandara sempre fez várias colocações e solicitações para pluralização dos espaços da Escola e nunca foi atendida. Tem uma hora que a coisa estoura”, disse Ronald, que entrou na unidade em 2011. Outra parte dos alunos considera o grupo radical e enxergou a invasão como agressiva e sem sentido. “Assisti a estreia e não vi nenhuma das questões que estão sendo levantadas. O que eu vi foi uma peça sendo encenada, de um texto que não era do próprio diretor, de um autor escolhido por ele. O que ele fez foi colocar as escolhas estéticas dele na encenação. E muitas vezes estão acusando ele de ter escrito o texto”, opinou um aluno do doutorado, que é branco. “O que vi foi um grupo de atores trabalhando, fazendo sua arte”. Novo protesto foi realizado no dia seguinte à invasão do espetáculo (Foto: Mauro Akin Nassor / CORREIO) Há quem rebata, por exemplo, a crítica de que o autor do espetáculo deve ter liberdade para encenar o que quiser. “O artista precisa pensar o que está produzindo e reproduzindo. A arte é política! Teve brechas no texto e na escolha de atores que fica claro o preconceito e o racismo”, afirmou uma aluna da pós-graduação e professora da Escola, que é branca.
Em nota, a Reitoria da Ufba diz que acompanha o caso e espera que o assunto seja resolvido na própria Escola. “A Reitoria confia que a solução virá através do diálogo franco, horizontal e democrático, guiado pelos ritos e mecanismos institucionais de autorregulação”.
Sistema de cotas O que todos concordam é que a Escola de Teatro e a Ufba vivem uma oportunidade única de discutir a questão racial. “Independentemente de qualquer coisa, esse é um momento importante de discutir o acesso de corpos negros ao palco sem que esses sejam inferiorizados. Nunca se deu atenção a isso. Esse é um momento único”, disse uma aluna da Escola, branca, que veio de outro estado. “De onde eu vim, eu não era confrontada com isso. Aqui percebi os meus privilégios”. Pichação na Escola de Teatro do Canela (Foto: Mauro Akin Nassor / CORREIO) Para alguns estudantes e professores, o movimento antirracista que eclode hoje é fruto da entrada de negros na universidade. Passados 14 anos da instauração do sistema de cotas, eles começaram a se sentir incomodados com textos e conteúdos eurocêntricos. “Os textos de quase todas as peças são europeus. É preciso reinventá-los, desconstrui-los e criar textos negros. Começamos a tomar essa consciência após as cotas”, pontuou Ronald Vaz.
Alguns estudantes da Escola de Teatro e da própria Ufba relatam atos de racismo por parte da vigilância privada da instituição, por exemplo. “Sou de religião de matriz africana e toda sexta o mesmo guarda deferia palavras de agressão religiosa contra mim”, relatou um aluno.“Os vigilantes da instituição precisam de uma reciclagem. O racismo está arraigado neles”, observou um aluno negro da graduação. A direção da peça Sob as Tetas da Loba não se manifestou. Paulo Cunha, que adaptou texto do paulista Jorge Andrade, não atendeu as ligações da reportagem. O produtor do espetáculo, Victor Gonçalves, chegou a dar entrevista ao CORREIO na época do protesto. Afirmou que o texto da montagem “é o retrato de uma sociedade oligárquica que expõe, em quatro peças simultâneas, a desigualdade social entre brancos e negros”.
Quando a questão ganhou corpo, Gonçalves preferiu o silêncio. “Sendo bem sincero, eu não gostaria de dar nenhum tipo de entrevista”, escreveu no WhattsApp. Ele disse ter procurado o diretor Paulo Cunha sobre uma possível entrevista. “Falei com ele, mas não recebi nenhuma resposta concreta. O fato é que o caso está sob os cuidados da Reitoria e da direção da Escola de Teatro. Então, João ou Cláudio Cajaíba seriam as melhores pessoas”, indicou.
Termo de conduta Cláudio Cajaíba, no caso, é o diretor da Escola. Após diversos contatos, ele apenas publicou uma pequena nota anunciando futuras medidas. O documento retira qualquer tipo de processo administrativo contra a Dandara Gusmão, que, inicialmente, responderia por perturbação da ordem pública. “Não há nenhum encaminhamento de processo disciplinar envolvendo os estudantes”. Nota anuncia grupo de trabalho (Foto: Reprodução) A nota também garante que providências serão adotadas. O objetivo seria criar um Grupo de Trabalho “envolvendo as três categorias da Escola de Teatro e a Organização Dandara Gusmão no sentido de elaborar um termo de conduta para orientar as atividades artísticas e acadêmicas de combate ao racismo”.
“A Escola de Teatro não se posiciona sobre o racismo. Apenas indica a criação de um Grupo de Trabalho, mas não tem qualquer posicionamento”, lamenta Dêvid Gonçalves, um dos integrantes da Dandara Gusmão. O elenco da peça também foi procurado. Duas atrizes não responderam.
Dêvid acredita que o elenco tem receio em dar declarações porque teme boicotes. “Os estudantes têm medo de não entrarem mais em cena. Eles colocam o movimento como radical, mas os espetáculos negros que aconteceram na Ufba só foram possíveis por conta da organização. A culpa não é do elenco, é da instituição”, ponderou.
Vários estudantes e professores também chamaram a atenção para um aspecto que envolve eventos negros na Escola. O Fórum Negro de Artes Cênicas, por exemplo, seria apenas frequentado por negros. “Tive o prazer de participar dos dois últimos, mas não tive o prazer de ver um professor branco lá”, disse a militante negra Nadir Nóbrega, ex-aluna da Escola de Dança.
Frente com mais de 50 entidades leva moção à Reitoria
A Dandara Gusmão, que iniciou essa “revolução” dentro da Escola de Teatro, é uma organização formado por estudantes negros da própria escola. As iniciativas deles contra o racismo, porém, já ultrapassaram os muros do curso e ganharam apoio de grupos. Após o primeiro ato, que foi a invasão e interrupção da peça, uma frente contra o racismo começou a se formar. Entidades entregaram moção na reitoria (Foto: Divulgação) Mais de 50 entidades negras formaram a Frente de Apoio à Organização Dandara Gusmão e assinaram a moção entregue à pró-reitoria de Ações Afirmativas. Entre outras questões, o texto da moção reafirma que a dramaturgia de Sob as Tetas da Loba é racista e reivindica o protagonismo negro na cena teatral e artística baiana. Em 18 tópicos, a moção cobra medidas antirracistas. A maior parte delas pedagógicas, como a criação de linhas de pesquisa que tratem de questões étnico-raciais nas artes cênicas, a realização de eventos científicos e artísticos sobre a temática negra, além da aquisição de livros e formação de arquivo sobre a história e memória do teatro negro.
Ao receber o documento, a pró-reitora Cássia Maciel reconheceu que existe racismo na instituição. “Os pontos levantas pela frente são legítimos! Há hoje um conjunto de atitudes que nós consideramos racistas. Desde a escolha de um conteúdo até a forma de abordar os temas nas diversas disciplinas. Por isso, as ações afirmativas exigem políticas amplas de caráter pedagógico e preventivo que atuem nos cursos e nos currículos, mas também medidas para combater o racismo explícito e criminoso”.
A pró-reitora se manifestou também sobre os funcionários terceirizados. “Temos dificuldade de fazer essa capacitação porque as empresas não são obrigadas a aceitá-las. Mas, estamos vendo uma forma de colocar isso em contrato”. Após o ato de entrega da moção, a pró-reitora disse que encaminharia o documento ao reitor João Carlos Salles, ouviria a comunidade e apoiaria a criação do Grupo de Trabalho e do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). Por meio de sua assessoria de comunicação, a Ufba explicou que o repúdio ao racismo é um dos seus princípios fundantes, norteador de sua política de ações afirmativas, traduzido nos últimos anos em um conjunto de ações.
Movimento antirracista quer atingir toda a Ufba
A frente de apoio à Dandara Gusmão defende uma transversalização das ações de combate ao racismo, ou seja, que as iniciativas anti-racistas sejam levadas para toda a universidade. “Isso está em Teatro, em Dança, em Música, em Medicina, Belas Artes, Biologia, todos os cursos. Chegou a hora da universidade parar para discutir o racismo nessa instituição. Esse é um problema de todas as comunidades. Basta!”, disse a professora Edileuza Santos, da Escola de Dança e do Coletivo Luíza Bairros, que defende a atitude da Dandara Gusmão. “Dialogar nem sempre resolve. A intervenção deles interrompeu um ato de racismo”.
A professora Denise Carrascosa, do Instituto de Letras, chamou de performance de intervenção o protesto realizado pela Dandara Gusmão. E disse que a Ufba tem uma equação racial complicada para resolver. “O racismo na Ufba se tornou mais visível depois de uma série de ações realizadas após o processo de enegrecimeto estabelecido com as cotas. Mas o enegrecimento do corpo discente (estudantes) não é compatível com o corpo docente (professores), que 90% branco. Então você tem aí uma equação complicada, com professores despreparados para as demandas teóricas e estéticas do corpo discente cada vez mais negro”, analisou a professora.
Baiana, ex-aluna da Ufba e professora aposentada pela Universidade Federal de Alagoas, a experiente militante negra Nadir Nóbrega fez questão de apoiar a frente. Ela diz sentir na pele o racismo na Ufba desde 1975, quando entrou na Escola de Dança. “Eu antecedo esse período porque vivo isso há muito tempo. Desde 1975 percebo o quanto nossos cospos negros incomodam. Está entranhado nos cursos de artes, inclusive. A formação é eurocêntrica. Essa briga é histórica”.
Para ela, o palco não é algo sagrado como algumas pessoas querem crer. “Em cima de um palco tem os atores e as atrizes. E tem algo escrito ali. Aquilo que tá escrito está incomodando quem?”, questiona. O próprio Bando de Teatro Olodum, que na reunião na Reitoria foi representado pelo ator Sérgio Laurentino, também assina a moção. “Eu vi que estavam criminalizando os meninos e vim aqui repudiar isso. Os próprios professores criminalizando quem estava contrário ao racismo. Queremos nos tornar visíveis no teatro e estamos colados com eles”, avisou Laurentino.
Professores negros elaboraram carta aberta
Em carta aberta publicada após o ato da Dandara Gusmão, quatro professores negros da Escola de Teatro afirmaram que o espetáculo Sob as Tetas da Loba “causou em parte do público um profundo incômodo com a representação do negro e da negra”. A declaração é assinada pelos professores doutores Alexandra Gouvêa Dumas, Érico José Souza de Oliveira, Licko Turle e Stênio José Paulino Soares.
Os professores afirmam que o espetáculo reforça estereótipos de representação dos negros, “já sinalizada na própria história do teatro brasileiro, como a empregada doméstica que serve sexualmente ao filho branco dos patrões; o negro assassino, estuprador e violento; a colega negra desbocada e sem modos de uma moça branca e educada; a prostituta negra lasciva, sexualizada e violenta”. Por outro lado, a professora Deolinda Vilhena registrou Boletim de Ocorrência na Polícia Federal contra Dêvid Gonçalves, um dos membros da Dandara Gusmão. Deolinda afirma ter sido atingida no rosto ao ter o celular puxado por Dêvid durante o protesto. Procurada pessoalmente pelo CORREIO, Deolinda afirmou que consultaria o seu advogado antes de conceder qualquer entrevista.
No dia seguinte, também preferiu o silêncio. “Não, não farei a entrevista! Nesse momento o melhor a fazer é esperar a ação da justiça!”, respondeu pelo WhattsApp. “A mesma professora que tenta criminalizar o Dandara Gusmão estava em aulas anteriores dizendo que baiano é preguiçoso e só chega atrasado. Vez ou outra, essa mesma professora desqualifica trabalhos de autores brasileiros reproduzidos na Escola em detrimento de trabalhos europeus”, afirma Ronald Vaz, aluno da pós-graduação.
"O debate é saudável e deve ser permanente", diz reitoria
1 - Como a reitoria está tratando a questão racial que eclodiu na Escola de Teatro da Ufba após a interrupção do espetáculo Sob as Tetas da Loba?
A reitoria vem acompanhando com atenção os desdobramentos do episódio ocorrido na Escola de Teatro, acolhendo as manifestações de todos os envolvidos e confia que a solução virá através do diálogo franco, horizontal e democrático, guiado pelos ritos e mecanismos institucionais de autorregulação da Universidade. Nesse sentido, a reitoria entende que a questão específica deva ser debatida nas instâncias deliberativas da Escola de Teatro, na convicção de que o grupo de trabalho criado com essa finalidade na unidade, com representação de todos os envolvidos no episódio, chegará a um entendimento.
2 - Para além da Escola de Teatro, ouvimos muitos estudantes e professores que apontaram um racismo institucional histórico na universidade e dentro dos cursos da Ufba. A Ufba se reconhece racista na sua estrutura? Quais medidas foram tomadas nos últimos anos para desfazer esse processo histórico?
O racismo, enquanto mácula histórica estruturante da sociedade brasileira, deve ser firmemente combatido, e suas manifestações devem ser repudiadas, dentro ou fora de qualquer instituição, pública ou privada. Esse é um dos princípios fundantes da administração da UFBA, norteador de sua política de ações afirmativas, e que vem se traduzindo, nos últimos anos, em um conjunto de ações. Entre as de maior destaque estão a implementação de cotas para pessoas negras em concursos públicos para contratação de docentes e em processos seletivos de alunos dos cursos de pós-graduação; a significativa quantidade de reformas curriculares em cursos de graduação, incluindo, como componentes obrigatórios, debates sobre questão racial e africanidade; a implementação da verificação de auto declaração de pessoas negras aprovadas pelo Enem; o fortalecimento do programa Permanecer, que oferece 8.086 benefícios no valor de R$ 400 por mês a estudantes em situação de vulnerabilidade social; a campanha "Não deixe a violência passar de boa", que estimula a comunidade a denunciar casos de racismo e outros tipos de violência; e a promoção e/ou acolhimento de debates sobre racismo e igualdade racial, que oxigenam a discussão e as ações tomadas pela Universidade - instituição que, em diálogo permanente com a sociedade, tem, por natureza, a capacidade de se autorregular. 3 - Passados 14 anos da instauração do sistema de cotas, os estudantes acreditam que hoje começam a enxergar melhor a questão racial na Ufba. Eles afirmam que passaram a se incomodar com escolhas pedagógicas de professores, por exemplo. A equação é complicada, já que as cotas foram destinadas aos alunos e não aos professores. Como resolver essa equação?
A UFBA considera o sistema de cotas bem-sucedido, e celebra o fato de que, hoje, a população estudantil que se autodeclara preta, indígena e parda, da ordem de 75%, praticamente iguala a composição racial do Estado. Cotas para a pós-graduação e para a seleção de professores foram implementadas recentemente, e terão consequências gradativamente mais visíveis. O debate sobre escolhas pedagógicas é saudável e deve ser permanente, sempre nos marcos institucionais que regulam a definição de diretrizes curriculares.
4 - Alguns estudantes relataram atitudes racistas especificamente de funcionários terceirizados, principalmente vigilantes. A Ufba já submeteu seus seguranças a algum tipo de reciclagem nesse sentido?
A UFBA convoca periodicamente os coordenadores de equipes de vigilância para explicar-lhes a natureza peculiar da Universidade, buscando sedimentar um modelo de segurança em que ninguém seja tratado como suspeito ou penetra por sua aparência, cor de pele, vestimenta ou quaisquer outras marcas.