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Pesquisadora lança coletânea do crítico de cinema Walter da Silveira

Cyntia Nogueira, professora de cinema, reuniu textos de 1943 a 1970

  • Foto do(a) author(a) Roberto  Midlej
  • Roberto Midlej

Publicado em 3 de novembro de 2020 às 05:50

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: .

Durante dois anos, Cyntia Nogueira, professora do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), pesquisou textos e documentos do crítico de cinema  baiano Walter da Silveira (1915-1970).

O resultado desse trabalho está no livro Walter da Silveira e o Cinema Moderno no Brasil, organizado pela professora. A publicação será lançada hoje, às 19h, no YouTube da Fundação Cultural do Estado da Bahia. Amanhã e quinta, no  mesmo horário, acontecem mais dois eventos que marcam os 50 anos da morte do intelectual. 

A publicação reúne críticas, ensaios, teses e cartas que Silveira trocou com colegas como   Glauber Rocha, que também era crítico.  “É um livro-arquivo, que certamente dirige-se a um público mais especializado, com o objetivo de contribuir para o reconhecimento do caráter  pioneiro do pensamento e ação de Walter da Silveira na construção dos caminhos do cinema no Brasil e na Bahia”, diz Cyntia. 

Os textos foram publicados originalmente entre 1943 e 1970, em diversos jornais e em publicações especializadas. Há ainda seis artigos inéditos sobre o crítico, asssinados por especialistas como Luís Alberto Rocha Melo e a própria Cyntia Nogueira.  Izabel de Fátima Cruz Melo assina o artigo sobre o Clube de Cinema da Bahia, criado por Silveira. “O Clube de Cinema foi fundamental para a consolidação de uma cultura cinematográfica em Salvador e para a emergência das primeiras gerações de críticos e realizadores no estado”, diz a organizadora. Em 1951, o Clube de Cinema realizou o I Festival de Cinema da Bahia, com participação de críticos e cineastas do Rio de Janeiro e São Paulo.

Lançamento nesta terça, 3, às 19h, no canal da Fundação Cultural do Estado, no YouTube

Veja abaixo entrevista na íntegra com Cyntia Nogueira Cyntia Nogueira (foto: Marcelo Matos)

1)  Walter da Silveira pode ser considerado um dos mentores do Cinema Novo? Por que? Sim, por algumas razões. Pelo caráter precursor de seu pensamento em defesa de um estilo ou de uma escola estética cinematográfica nacional, ou seja, da construção de um projeto de autonomia artística para o cinema a partir do diálogo com a realidade brasileira e com os projetos modernistas nacionalistas em outros campos artísticos como a literatura, a música, as artes visuais, o teatro, a arquitetura. Pela centralidade, em seus escritos, das ideias de cinema independente e da noção de arte engajada, que será fundamental para o Cinema Novo. Em sua visão, o cinema teria uma responsabilidade humana e social maior que todas as outras artes, pelo poder de se dirigir a grandes plateias, por isso reconhece no cinema uma dimensão estética, mas também ética e política. Pelo papel que atribui à formação, articulando, a partir de sua atuação à frente do Clube de Cinema da Bahia, crítica, teoria e realização, o que será fundamental para o surgimento das primeiras gerações de críticos e realizadores no estado e para a realização de filmes que irão integrar o Cinema Novo a partir de Salvador. Por sua atuação institucional, com a realização e participação em festivais, congressos, jornadas de cineclubes, convenção da crítica, entre outros, o que permite conectar Salvador a uma cena emergente do cinema independente no Rio de Janeiro e em São Paulo que vai dar origem ao movimento. Por fim, pelo diálogo crítico e teórico com Glauber Rocha e pelo papel que atribui à crítica cinematográfica na construção de parâmetros estéticos para o cinema brasileiro a partir do diálogo com outras expressões da cultura nacional, papel que de certa forma o cineasta baiano tomará para si ao escrever o livro Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (1963), que coloca o Cinema Novo como centro para construção de um programa estético para o cinema brasileiro.  Glauber reinterpreta os escritos críticos e históricos de Walter da Silveira para defender um cinema autoral e nacional, ainda que, como afirmará Walter da Silveira em carta para o cineasta, muitas a partir de julgamentos que considera injustos ou, ainda, contrários à visão que tinha em relação aos possíveis itinerários a serem seguidos pelo cinema no país.  

2) Qual o conteúdo das cartas que ele trocava com amigos? O cinema era sempre o assunto ou havia uma diversidade? As cartas são bastante reveladoras das dinâmicas de organização do campo cinematográfico naquele momento, envolvendo uma intensa atividade de articulação política e cultural entre para a realização de festivais, mostras e retrospectivas de filmes; eventos como congressos, jornadas de cineclubes, convenção da crítica, etc; publicação de críticas, artigos, revistas, livros; realização de cursos e pesquisas históricas; entre diversas outras trocas institucionais entre o Clube de Cinema da Bahia e o Centro de Estudos Cinematográficos – CEC no Rio de Janeiro, entre o final e início dos anos 1950 e a Cinemateca Brasileira a partir do final da década. No entanto, as cartas envolvem diversos outros assuntos relacionados tanto às trajetórias profissionais de cada um e ao cenário político do país, quanto às suas vivências pessoais, já que Walter da Silveira manteve com os três relações duradouras e bastante fraternas de amizade. Com Alex Viany e Paulo Emílio, dois outros importantes críticos e historiadores do cinema brasileiro, há uma afinidade também geracional. Com Glauber, trata-se de uma convivência mais próxima, mas ao mesmo tempo de uma relação entre mestre e discípulo, por vezes pai e filho, como ambos se referem em alguns momentos um ao outro.

3) Walter da Silveira é acessível para o público médio ou a escrita dele é hermética, mais acessível a acadêmicos e intelectuais? Não se trata de uma escrita hermética. A maioria de seus textos foi publicada em jornais diários e muitos foram depois reformulados e ampliados para publicação em revistas especializadas ou como capítulos de livros. Mas seus artigos são densos intelectualmente, já que levava em conta, em suas críticas e ensaios, aspectos históricos, teóricos, culturais, técnicos e sociais do cinema, além de desenvolver análises aprofundadas de conjuntura política e econômica sobre a produção de cinema no mundo e no Brasil. No livro, há um capítulo com seus artigos mais teóricos, e outros dois dedicados aos textos sobre o cinema brasileiro e baiano, além das correspondências, de fotografias e documentos, fortuna crítica e artigos acadêmicos inéditos sobre sua ação e pensamento. É um livro-arquivo, que certamente dirige-se a um público mais especializado, com o objetivo de contribuir para o reconhecimento do caráter  pioneiro do pensamento e ação de Walter da Silveira na construção dos caminhos do cinema no Brasil e na Bahia entre anos 1940 e 1960, bem como para a abertura de novas perspectivas de estudos sobre sua obra e atuação como crítico, agente de formação, historiador e intelectual engajado na construção de um campo cultural e artístico para o cinema produzido no país. No entanto, seus artigos são acessíveis ao público interessado em geral.  

4) Os artigos vão de 1943 a 1970. Nesses 27 anos, podemos notar uma evolução nas críticas dele? Que mudanças podemos notar? Sim, é possível notar diversas transformações, e espero que o acesso aos seus artigos, correspondências e outro documentos sobre o cinema brasileiro possam dar origem a estudos comparativos dessa natureza. Ele tinha o hábito de reescrever muitos de seus artigos para republicá-los depois em outros veículos ou apresentá-los como teses em congressos e outros eventos da área, sempre revendo seus argumentos, aprofundando suas abordagens, inserindo novas questões. Localizar as diferentes versões de cada texto e compará-las foi umas das partes mais difíceis da pesquisa. Optamos por publicar, sempre que possível, as primeiras versões, apontando nas notas de fim de cada artigo as outras publicações encontradas. No artigo Depoimento, com auto-crítica, por exemplo, publicado em 1961, ele revê alguns de seus posicionamentos relacionados ao cinema brasileiro, que passa a considerar como idealistas, após participar, como figurante, do set de filmagem de A Grande Feira (1961), de Roberto Pires, e entrar em contato mais direto com a precariedade da realidade de produção de um longa-metragem no país. Em seu artigo inédito publicado no livro, Luís Alberto Rocha Melo (UFJF) aborda essa questão, observando as contradições entre a teoria e a prática em seu pensamento. Por outro lado, questões abordadas por ele no artigo pioneiro Esta é a hora do cinema brasileiro, no jornal O Imparcial, em 1943, no qual discute a necessidade de defender a autonomia política e econômica do cinema brasileiro, infelizmente, ainda continuam atuais, ou seja, não superadas.

5) Walter da Silveira fundou o Clube de Cinema da Bahia. Como funcionava e qual a importância daquele clube para a formação de cinéfilos e estudiosos de cinema? O Clube de Cinema foi fundamental para a consolidação de uma cultura cinematográfica em Salvador e para a emergência das primeiras gerações de críticos e realizadores no estado, com o surgimento de uma produção continuada de filmes ao longo dos anos 1950. Como falei antes, isso se deu a partir da articulação entre formação, crítica e realização. Além de uma escola de cinema, o Clube de Cinema transforma-se também numa plataforma de atuação institucional, conectando Salvador a uma emergente cena da crítica e do cinema independente no país, via festivais, congressos, jornadas de cineclubes, etc. Um dos fatos marcantes nesse sentido foi a realização do I Festival de Cinema da Bahia, em 1951, com participação de críticos e cineastas do Rio de Janeiro e São Paulo. Além de possibilitar o acesso a filmes de arte de uma diversidade enorme de vertentes estéticas e países, as exibições eram acompanhadas das preleções de Walter da Silveira sobre aspectos históricos, estéticos e teóricos dos filmes e de suas respectivas cinematografias, bem como de intensa atividade crítica em jornais e revistas. Foram sócios do Clube de Cinema desde nomes pioneiros do cinema na Bahia com Alexandre Robatto, Guido Araújo, Luiz Paulino dos Santos, Orlando Senna, Glauber Rocha, etc. Depois, com Grupo Experimental de Cinema da UFBA, que abre em 1968 um curso livre de cinema com Walter da Silveira e Guido Araújo, ele forma ainda a geração formada por André Setaro, José Umberto Dias, André Luiz Oliveira. Em 1969, monta com alguns desses nomes a equipe de críticos da editoria de cinema da Tribuna da Bahia em 1969. A professora e pesquisadora Izabel Melo (UNEB) faz uma excelente análise do Clube de Cinema como espaço de formação em seu artigo publicado na seção Artigos Inéditos do livro. As minibios dos co-autores estão no final da seção.

6) Walter da Silveira tinha preferências pessoais por determinados gêneros ou produções de determinados países? Havia para ele uma dicotomia entre "cinema de arte" e "cinema comercial"? Ele tinha um interesse e um conhecimento muito vastos e sólidos sobre cinema, e dedicou muitos de seus artigos teóricos a tentar desmontar essa dicotomia. Se você observar os títulos dos artigos publicados no primeiro capítulo (ver índice de artigos no final do livro), isso fica bem evidente. Via o cinema como arte e indústria, e por isso atribuía grande importância à crítica cinematográfica, que deveria mediar a relação entre obra e público, contribuindo para a elevação artística e cultural dos filmes. Em sua visão, tanto o cinema quanto a crítica tinham uma grande uma responsabilidade social, um sentido ao mesmo tempo estético, ético e político, justamente pelo seu poder de se dirigir ao povo, a grandes plateias. Ou seja, via no caráter industrial do cinema um potencial democratizante da arte, e nesse sentido seria necessário lutar contra os projetos hegemônicos. No artigo Posição do cinema no humanismo moderno, de 1962, ele defende o cinema como expressão do humanismo moderno, analisando diversas formas de realismo a partir da relação entre cinema, homem e sociedade. Tinha grande interesse pelo documentário e pelo realismo e ao mesmo tempo pelo cinema soviético de montagem, bem como por diretores do cinema de autor europeu. Nesse artigo, elege como suas principais referências Charles Chaplin, Robert Flaherty, Eisenstein e Carl-Theodor Dreyer. Reconhece méritos em O Cangaceiro (1954), de Lima Barreto, e engaja-se na campanha em defesa da liberação do filme Rio, 40 graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos, que tem exibição histórica em Salvador. Apoia a realização de Bahia de todos os santos (1960), de Trigueirinho Neto, na capital baiana, embora se decepcione depois com o filme, e entusiasma-se com A Grande Feira (1961), de Roberto Pires, visto como uma possível matriz para um escola nacional. Acompanha a consagração internacional de O pagador de promessas (1962), de Anselmo Duarte, em Cannes, e de Barravento (1962), no Festival de Karlovy Vary, na Thecoslováquia. Mas é apenas com Deus e o Diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, que efetivamente reconhece o surgimento, no país, do que chama de um estilo ou uma escola estética nacional.