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Da Redação
Publicado em 11 de abril de 2021 às 06:30
- Atualizado há 2 anos
Calçadão de Jardim Armação, orla de Salvador (Foto: Nara Gentil/Arquivo CORREIO) Houve um tempo no qual a enorme embocadura da baía de Todos os Santos era uma porta frequente de entrada para enormes mamíferos marinhos.>
Entre os meses de junho a setembro, as baleias despontavam em nossa enseada. De Salvador mesmo dava pra avistar o espetáculo de esguichos e os saltos eufóricos na dança do acasalamento. As águas mornas atraíam os cetáceos para a reprodução e nascimento dos filhotes – exatamente como ocorre hoje no santuário de Abrolhos, no extremo sul do estado.>
No entanto, a mortandade por aqui foi tamanha, durante dois séculos de pesca predatória, que as baleias nunca mais voltaram. Nossa costa se tornou um calvário das jubartes e desse extermínio levantou-se prédios, fez-se a iluminação pública da cidade e resultou no povoamento de parte da Ilha de Itaparica e surgimento de bairros em Salvador.O escritor e antropólogo Antônio Risério descreve que os índios tupinambás, residentes desta porção de terra antes da chegada dos portugueses, já eram excelentes pescadores. Usavam tanto o arco e flecha, quanto o anzol. Além de técnicas de envenenamento, com linhas de tucum, para capturar os peixes – aos quais, chamavam de pirá.As enormes baleias, eles admiravam. Mas não tinham instrumentos suficientes para alcançá-las com suas gamboas de pesca. Chamavam-nas de pirapuama, pois acreditavam serem peixes gigantescos.>
Baleias na mira Em 1602, tudo começa a mudar. Dois espanhóis, da região basca, ganham uma concessão de dez anos para realizar a pesca de baleias na Baía de Todos os Santos. Nesta época, Portugal e Espanha estavam ligados pela União Ibérica, no reinado de Felipe III. Pêro de Urecha e Julião Miguel, seu sócio, iniciam a pesca das baleias para comercialização do azeite, extraído a partir do animal, alimentando o mercado da capital da colônia e do Recôncavo Baiano.>
As técnicas com embarcações leves a vela, perseguindo os dóceis animais até farpeá-los, foram rapidamente aprendidos pelos habitantes da cidade. Em pouco tempo, começaram a surgir feitorias em muitos pontos da Ilha de Itaparica, como Amoreiras, Ponta de Areia e Gameleira.>
As feitorias passaram a ser tantas que, no ano de 1614, a Coroa instituiu a pesca de baleia como monopólio real, embora o decreto fosse flagrantemente desrespeitado por estes mares. >
Do animal passou-se a aproveitar quase tudo, embora o óleo ainda fosse o principal produto.O historiador Wellington Castelluci Junior escreve que o ingrediente era “usado como ligante na argamassa destinada à construção de prédios, igrejas, fortalezas e casas. Da ossada construíam-se cercas para os quintais, objetos de decoração e assentos de banquinhos, comumente comercializados em praças como a de Salvador”.Já a carne da baleia não era considerada apetitosa. E, geralmente, era “destinada a alimentar os escravos, trabalhadores das armações, além de serem distribuídas gratuitamente entre a gente pobre do lugar, como caridade”, pontua o historiador.>
Muito do povoamento de Itaparica tem relação direta com a pesca das baleias e a extração do óleo. No romance histórico “Viva o Povo Brasileiro”, o escritor João Ubaldo Ribeiro (1941-2014), filho da ilha, narra a saga do Barão de Pirapuama e sua riqueza a partir da pesca dos cetáceos, das tramoias com a corte e da exploração escrava – uma alegoria direta na formação da elite econômica brasileira.>
Virou Armação Já no século XIX, em Salvador, o grande barão no negócio de baleias era Manuel Ignácio da Cunha Menezes, também chamado de Visconde do Rio Vermelho. Ele passou a dominar a pesca dos animais já em mar aberto, fora da baía, numa área compreendida da Pituba até a praia de Itapuã.>
Exatamente onde era o antigo Aeroclube Plaza Show, e onde hoje fica o novo Centro de Convenções de Salvador, o visconde mantinha sua gigantesca mansão, referência na cidade, tanto pela imponência, quanto pela beleza e elegância. Aquela região, por meio do trabalho escravizado, possuía várias armações de pesca de baleias – o que acabou exatamente batizando o nome do bairro: Armação, atual Jardim Armação.>
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Também por ali, uma outra cercania ficaria bem famosa: a praia do Chega-Nego, assim chamada por ser um local de desembarque clandestino de africanos, muitos dos quais levados para trabalhar justamente nas armações de pesca.>
Em 1814, os escravizados, em sua maioria mulçumana, iniciam uma revolta e destroem algumas propriedades do Visconde do Rio Vermelho. Segundo o historiador João José Reis, os manifestantes “mataram um feitor e membros de sua família, incendiaram casas e instrumentos de trabalho, como redes e cordas. Em seguida, atacaram outras armações, fazendas e a vila de Itapuã, onde mataram moradores e incendiaram casas”. Este levante de 1814 teria relação direta com o movimento de 1835, chamado de Revolta dos Malês.>
Embora bela e encantadora, em seus 472 anos, a história de Salvador também se conta pelo sangue derramado. Tanto na terra, quanto no mar.>