Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Da Redação
Publicado em 16 de abril de 2019 às 08:36
- Atualizado há 2 anos
Para Alexandra Dumas
Ainda estou sob o impacto do espetáculo Pele Negra, Máscaras Brancas, que o Departamento de Fundamentos de Teatro escolheu para montar esse ano na Escola de Teatro da UFBa. O texto é do grande teatrólogo negro baiano Aldri Anunciação e a direção (ma-ra-vi-lho-sa!) é da não menos competente Fernanda Júlia Onisajé. Escrevo à quente (sai há pouco do espetáculo e ainda tenho no rosto a lembrança das muita lágrimas que rolaram).
Como bem diz o título da peça, trata-se de uma releitura da obra homônima do intelectual negro martinicano Frantz Fanon, e que foi escrito por este aos 25 anos para ser apresentado com tese de doutorado na Universidade de Lion. Mas a banca recusa, terminantemente, a cientificidade e importância da investigação original desse pensador negro genial, obrigando-o a escrever uma outra tese “bem acadêmica”, com o qual recebeu o título de doutor em psiquiatria.
A bem pensada montagem da peça teatral parte deste mote, mas não esgota-se nele. Se a banca de doutorado exigiu que Fanon vestisse uma “máscara branca" para ser reconhecido intelectualmente, a obstinação deste em pensar o negro na sociedade colonial não deixou de ser o tema desse grande pensador, que morreu de leucemia com apenas 34 anos. Inspirado pela pensamento de Sartre e de Simone de Beauvoir -Fanon utiliza a ideia de “outro” que Simone cria para se pensar a mulher na sociedade para se pensar o negro também. A obra de Fanon constitui uma verdadeira sociogênese. Para ele, a sociedade colonial não pode ser pensada apenas como uma experiência econômica. Ele formata uma forma de sociedade singular, demonstra a relação intrínseca entre escravidão moderna e capitalismo e como essa grande engrenagem cria subjetividades estruturadas pelo racismo. A acumulação primitiva de capital, para o salto do capitalismo comercial para o capitalismo industrial se deu pelos lucros oriundos dessa torpe exploração. A escravidão e o mundo colonial, responde pela divisão do mundo em primeiro, segundo e terceiro mundo.
Assim como Simone, Fanon escreve uma filosofia da práxis, uma filosofia que fizesse do negro um “sujeito da ação”.
Mesmo reconhecido há tempos nos EUA e na América Latina, Fanon amargou um ostracismo nojento nas universidades brasileiras. Fanon era um perigo para a nossa tese de democracia racial, inventada com um pé na Antropologia Cultural americana, por brasilianista e por Gilberto Freyre, e que passou a ser hegemônica e mercadoria turística da nossa brasilidade. Para se ter uma ideia, a obra de Fanon só foi traduzida em 2008, por Renatinho da Silveira. E não à toa, haja vista que nos anos 2000 a ideia de democracia racial brasileira já está refutada por A+B e o racismo cordial brasileiro passou a ser reconhecido pelos acadêmicos das terra brasilis - mesmo que alguns ainda resmunguem um choro de viúva.
Mas voltemos ao espetáculo, que é um espetáculo com pegada afrofuturista. O afrofuturismo é uma forma de pensar, potencialmente potente na ficção, que tem como premissa que no passado pré-colonial africano estão as chaves do futuro da humanidade. A linha de tempo da montagem não segue a cronologia linear ocidental. Ele se remete à África pré-colonial, à década de 1950, quando viveu oi intelectual que escreveu o texto, ao nosso tempo presente (século 21) e ao século 29, onde o mundo se fecha e as alternativas possíveis para um mundo novo é aprender com o pensamento africano pré-colonial. O capitalismo, o colonialismo, o racismo, como expressão da supremacia branca da cultura ocidental estava, no século 29, em seus estertores e a única possibilidade é rever a sabedoria africana pré-colonial. A noção de fronteira nômade, de identidades, o protagonismo das mulher na história africana são alternativas para a sinuca de bico que o próprio capitalismo branco se auto enfiou.
A peça coloca uma intimação antirracista ao espectador e a nós negros: ou nos fazemos sujeitos do desejo, da autonomia e da ação ou estamos condenados não somente a eterna subalternidade colonialista, mas ao próprio desaparecimento enquanto raça humana. A única alternativa para o mundo é afrofuturista, é empretecer sujeitos e saberes. Compreender que saber é poder e que os “lugares” da verdade dos saberes acadêmicos hegemônicos têm explícito interesse político. Tornar-se negro, isso é, romper com a máscara branca colonialista, mesmo reconhecendo a importância de muitos saberes ocidentais, é saber-se senhor do desejo e da ação. E isso é empoderamento. O que quer uma mulher preta, o que quer um homem preto? Pergunta o coro. A revolução é negra, e protagonizada por mulheres, nos ensina essa bem pensada montagem.
Domingo (14 de abril de 2019)foi o último dia da temporada. Assisti a sessao extra das 16h. Mas espero que o espetáculo volte. Espero que ele vá às escolas, ocupe as ruas, corra trecho. Longa, longa, longuíssima vida ao espetáculo Pele Negra, Máscaras Brancas. Fernanda Júlia Onisajé, Aldrin Anunciação, maior respeito, tô aqui vos reverenciando-os de joelhos.
Texto original publicado no Facebook e reproduzido com autorização do autor