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Publicado em 1 de novembro de 2020 às 11:00
- Atualizado há 2 anos
A caminhada é curta - apenas 150 metros. Já o encontro, diante do mar no Bonfim, improvável. Se andassem juntos, José do Patrocínio e Antonio Moniz chegariam rapidamente à Avenida Beira Mar. Mas, entre um e outro, vai uma distância grande: o primeiro, abolicionista, não seria companheiro de caminhada do segundo, ex-governador da Bahia e neto de um dos grandes proprietários de escravos do século XVIII. As diferenças não param por aí. José do Patrocínio dá nome a uma travessa estreita com casas de reboco. Já Antonio Moniz é o nome de uma rua larga, que parte da Avenida Porto dos Mastros, atravessa o Largo do Papagaio, cruza a Visconde de Caravelas e chega à Beira Mar. Travessa José do Patrocínio (esq.) e Rua Antonio Moniz (dir.), no Bonfim, têm o mesmo destino: a Avenida Beira Mar (Fotos: Marina Silva/CORREIO) As marcas do passado escravista de Salvador estão em toda parte, mas nem sempre quem mora nestes locais sabe quem são as figuras que dão nome aos logradouros. Ao longo de novembro, mês da Consciência Negra, o projeto Salvador Escravista, que recebeu, esta semana, o selo de reconhecimento da Unesco (leia mais abaixo), vai lançar uma série de verbetes contando a história de parte destas pessoas: desta vez, estão sendo preparados textos sobre os ícones da resistência - entre eles, José do Patrocínio.“A gente vai ter essas histórias da resistência, quer trazer personagens como André Rebouças, José do Patrocínio, Zumbi dos Palmares, e também outras ações, como o verbete do Quilombo do Buraco do Tatu, em Itapuã, e do próprio Palmares, com Zumbi”, explica o historiador Carlos da Silva Jr., professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs) e membro do conselho científico do Salvador Escravista.“A ideia é que os verbetes sejam de fácil acesso ao público, que tenham uma leitura que possa ser usada no ensino fundamental, médio. É uma escrita diferente dessa que a gente faz na academia, mas com uma certificação documental”, completa Cândido Domingues, historiador, professor da Universidade do Estado da bahia (Uneb), em Jacobina, e também membro do projeto.
Geografia As homenagens em nomes de ruas, praças, travessas, avenidas e monumentos marcam a geografia da cidade. De acordo com Carlos da Silva Jr., é principalmente na região do Subúrbio e nas periferias que estão as homenagens a ícones da resistência, como José do Patrocínio, André Rebouças, Luiz Gama e Zumbi dos Palmares.
Patrocínio, além do Bonfim, também está em Fazenda Coutos. Os irmãos André e Antônio Rebouças figuram na Ribeira e em Águas Claras. Luiz Gama, outro abolicionista, tem um busto na Liberdade, um dos bairros onde há uma Rua Treze de Maio, data da assinatura da Lei Áurea. Há outras ruas Treze de Maio em Paripe, Campinas de Pirajá, Pau da Lima e Sussuarana - todos bairros periféricos.
[[galeria]]“O que a gente percebeu durante o trabalho de pesquisa é que há uma concentração escravagista no Centro ou no antigo Centro de Salvador. As homenagens a figuras que defenderam a escravidão até o último momento se concentram na região do que é a Barra, Avenida Sete, Campo Grande, Comércio, enquanto que as reparadoras se concentram mais na periferia”, aponta Carlos da Silva Jr.Filóloga, a professora Lívia Borges Souza Magalhães, que é doutora em língua e cultura e desenvolve pesquisas em acervos históricos baianos, fala um pouco sobre como a constituição da cidade é um reflexo de sua história. Luiz Gama tem um busto em sua homenagem no Largo do Tanque (Foto: Marina Silva/CORREIO) “O Centro Antigo, que recebe nomes de pessoas controversas, foi por muito tempo o centro do poder hegemônico, europeu, branco e rico da cidade e essas pessoas homenageiam os seus”, explica. Lívia, que também estudou a toponímia - o estudos dos nomes dos lugares - lembra que muitos dos homenageados moravam nestas regiões.“É um processo toponímico que encontramos em Salvador. A periferia, com negros, pobres, marginalizados pelo centro hegemônico, vai buscar homenagear os seus ou os que lutam por seus ideais”, aponta.A lei municipal que regulamenta os nomes dos logradouros de Salvador é de 1979 e diz, entre outras coisas, que se deve evitar nomes de pessoas sem referência histórica. Os novos nomes, a partir dali, deveriam destacar brasileiros com serviços prestados ao município, estado ou país; por sua cultura e projeção; e pela prática de atos heroicos e edificantes.
Doutora em Linguística Histórica, a também filóloga e professora do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Eliana Brandão, destaca que a nomeação de lugares ocupa um espaço sociocultural histórico e segue questões ideológicas. Daí a importância de estudar os nomes dos lugares, não só mostrando como alguns escondem uma violência no contexto da escravatura, mas também denunciam silêncio.“Muitos nomes de origem africana foram subtituídos por nomes de origem portuguesa. Para nós, esse silêncio ecoa muito grande também. A substituição desses nomes é um pouco uma tentativa de apagamento”, declara Eliana, que é coordenadora do Grupo de Estudos Filológicos e Lexicais (Gefill/Ufba).Encontros As homenagens - controversas ou reparadoras - seguem uma lógica de distribuição na cidade - inclusive de importância viária. Mas há encontros ‘inusitados’, como o de José do Patrocínio e Antônio Moniz, e o Bonfim não é o único bairro a testemunhá-los.
Bem no meio da Praça da Sé, centro do poder colonial na cidade, uma estátua do Zumbi dos Palmares ocupa lugar de destaque ao lado do Palácio Arquiepiscopal, por muitos anos sede da Igreja Católica no Brasil. E, hoje, Zumbi olha para a costas do bispo Pero Fernandes Sardinha, o primeiro do Brasil, que tem um busto no mesmo endereço.
Cândido Domingues chama a atenção para o fato de Zumbi dos Palmares ser homenageado no Centro - por aqui, não é comum.“A localização da estátua de Zumbi é bem interessante, porque ela está no centro do poder colonial. O bispo Sardinha tem um busto ali e agora Zumbi fica olhando para as costas dele", aponta.“Em São Paulo e no Rio de Janeiro, os Rebouças (André e Antônio, engenheiros abolicionistas) têm grandes avenidas, túneis, mas não têm grande destaque em Salvador”, observa Domingues. Nomes de abolicionistas como José do Patrocínio e André Rebouças aparecem em ruas com menor importância viária na cidade (Foto: Marina Silva/CORREIO) Demarcações Salvador foi o segundo maior porto escravista da América, como observa a historiadora Ana Lucia Araujo, professora da Howard University, nos Estados Unidos. Mas, quando o Centro Histórico da cidade foi inscrito como patrimônio mundial, não havia, segundo ela, menções à importância da escravidão e do comércio de escravos na região."Não há no Centro Histórico marcadores oficiais (placas, monumentos, memoriais) homenageando homens e mulheres que foram escravizados e seus descendentes, exceto uma estátua de Zumbi dos Palmares inaugurada em 2008. Enquanto esse passado doloroso tem sido escamoteado, a cidade celebra suas raízes africanas sem mencionar esse crime contra a humanidade”, avalia Ana Lucia.Estimular o poder público a incluir estes marcadores nos locais de memória é um dos objetivos do Salvador Escravista. Para a historiadora, que é membro do Projeto A Rota do Escravo, da Unesco, que reconheceu a iniciativa baiana, o grupo é pioneiro nisso.
No Rio de Janeiro, as placas com nomes de ruas contêm duas ou três linhas sobre o homenageado. Em Lisboa, Portugal, há marcações em lugares de memória. Na capital baiana, é a Secretaria Municipal de Urbanismo (Sedur) a responsável pelas placas dos logradouros. Procurada, a pasta disse não haver, no momento, nenhum projeto voltado a estas demarcações.
Presidente da Fundação Gregório de Mattos, que cuida do patrimônio da cidade, Fernando Guerreiro disse não existir um projeto, mas gostou da ideia:“A gente chegou a discutir na época das estátuas e pensamos em colocar nos monumentos, mas não nos nomes das ruas. Acho a ideia bem interessante, mas não tenho o projeto. Vou deixar como sugestão”, afirma Guerreiro. Conde Pereira Marinho, traficante de escravos, foi benfeitor da Santa Casa de Misericórdia e tem estátua no Hospital Santa Izabel (Foto: Nara Gentil/Arquivo CORREIO) Projeto da Unesco apoia o Salvador Escravista No início da semana, o projeto Salvador Escravista, liderado por historiadores de seis universidades brasileiras, sendo quatro na Bahia, recebeu o reconhecimento da Unesco - escritório das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
O selo inclui o Salvador Escravista, uma ferramenta de pesquisa sobre a história de Salvador relacionada ao impacto da escravidão, na lista dos reconhecidos pelo projeto A Rota do Escravo: Resistência, Liberdade, Patrimônio.
O projeto da Unesco foi lançado em 1994 em Ouidah, na República do Benim, o segundo maior porto negreiro da África na era do tráfico. O comitê científico conta com dois brasileiros: a historiadora Ana Lucia Araujo (Howard University) e o antropólogo Milton Guran, da Universidade Federal Fluminense (UFF).“A Unesco apoia vários projetos inclusive colóquios e congressos sobre o assunto. Vários projetos, inclusive sítios históricos, foram reconhecidos como sítios do Projeto Rota do Escravo. Esse foi o caso do Valongo em 2013, antes de ser inscrito na lista do patrimônio mundial da humanidade da Unesco”, explica Ana Lucia Araujo.Já o Salvador Escravista tem em seu conselho científico pesquisadores da Ufba - Felipe Azevedo e Souza, Iacy Maia Mata, João José Reis, Moreno Pacheco e Wlamyra Albuquerque -, da UFRB - Luciana Brito -, da Universidade Estadual de Feira de Santana - Carlos da Silva Jr.- , da Uneb - Cândido Domingues -, da Universidade Federal do Piauí - Érica Lôpo de Araújo -, e da Universidade de Brasília - Ana Flávia Magalhães Pinto.