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Fernanda Santana
Publicado em 8 de fevereiro de 2020 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
Ele chegou e encontrou seu terreiro, no Lobato, marcado para cair. O número 92 pintado na calçada seria, como o babalorixá Márcio de Ayrá descobriu em novembro passado, o código de demolição do templo. Sem qualquer aviso prévio do governo do estado, o espaço dará lugar a um trecho do sistema que substituirá os trens do Subúrbio de Salvador, inicialmente projetado como Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), mas alterado para Monotrilho.
Hoje, duas obras estaduais na capital - a construção da Avenida 29 de Março e a do VLT/Monotrilho, ainda não iniciada - demolem e desapropriam terreiros e destroem vegetações sagradas do Candomblé. Três já foram para o chão; outros três devem ter o mesmo destino. Mas o povo de santo resiste.
A passagem dos trens é ouvida no terreiro Ilê Axé Obá Logun Silé, aberto há 11 anos. A estimativa do Ministério Público da Bahia (MP) é que 374 famílias sejam afetadas. As casas da Rua Voluntários da Pátria, no Lobato, também estão marcadas desde março de 2019 - lá, 23 famílias serão desapropriadas. “Estão dizendo que sairemos em fevereiro. Não sei o que fazer. Se fosse uma igreja, não sei se seria assim”, lamenta o babalorixá.Naquela rua, uma sede Igreja Adventista do Sétimo Dia teve 15 metros de terreno desapropriados, mas não será demolida.
As obras que colocaram terreiros ameaçados em rota de colisão com o governo estadual abrangem áreas extensas da cidade. O Subúrbio Ferroviário - por onde passará a linha férrea de 19,2 quilômetros entre os bairros do Comércio, em Salvador, e a Ilha de São João, em Simões Filho - e a Avenida 29 de Março, que conecta a BR-324, na altura de Águas Claras, com Piatã, na orla da capital. Área sagrada de terreiro vira canteiro de obras (Foto: Tiago Caldas/ CORREIO) As duas regiões têm a maior concentração de terreiros da capital, aponta o último levantamento do Centro de Estudos Afro-Orientais, de 2006. Só no Lobato eram 29. Desde 2014, quando a obra da 29 de Março começou, dois terreiros foram demolidos. Outro, parcialmente. Ainda restam dois, segundo a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Bahia (Conder).
A Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Estado (Sedur) não apresentou à reportagem o traçado previsto para o futuro sistema de transporte. Alegou que o plano passava por ajustes. Então, não há como estimar se há outros terreiros sob ameaça de demolição.“As obras não estão levando em conta a presença de comunidades tradicionais e que precisam do meio ambiente preservado para continuar existindo”, opina o presidente Leonel Monteiro, presidente da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro-Ameríndia (AFA).O MP instaurou, em julho de 2019, um inquérito civil para apurar os impactos urbanos e ambientais causados pela substituição dos quatro trens do Subúrbio pelo VLT/Monotrilho. Até o fechamento desta edição, o órgão não havia fornecido detalhes sobre o andamento da investigação.
Márcio de Ayrá – orixá que, no Candomblé, é controlador dos ventos e tem a missão de estabelecer a paz – não sabe o que fazer. Assim com ele, outras lideranças religiosas temem o futuro.
‘Terreiro não é imóvel’, reagem lideranças do Candomblé Um terreiro começa com a plantação do axé, fundamento sagrado composto por minerais, vegetais e animais que é assentado sob o solo. Antes, um jogo de búzios, chamado ifá, diz se aquele endereço é ideal. O orixá também pode confirmar ou negar manifestado em algum filho de santo.
Pai Valtinho é babalorixá de um dos terreiros mais antigos da Via Regional, o Ilê Axé Oyia Oji Oke, fundado há 20 anos. No lugar do Oji Oke, passará uma ligação viária da 29 de Março. “Para mim foi um choque. Ainda não sei quando sairei nem para onde vou”, conta Valtinho, que foi comunicado sobre a demolição do terreiro em dezembro. Pai Valtinho sobre demolição do seu terreiro, comunicada em dezembro: 'Não sei para onde vou' (Foto: Tiago Caldas/CORREIO) Desde 2014, a AFA encaminhou ao MP quatro ofícios em que cobra respostas do governo sobre os impactos das obras aos terreiros. Os sacerdotes garantem que não querem impedir o progresso. Desejam apenas que ele não chegue às custas da destruição de templos do Candomblé.
Também se preocupam com o valor da indenização, que pode ser insuficiente para recomeçar do zero em outro lugar. A Sedur e a Conder não responderam ao CORREIO sobre a soma paga pelos terrenos. “Terreiro não é imóvel. Ali tem energia”, afirma Leonel Monteiro. Não existem dados de quantos já foram demolidos em Salvador.
Destruição de espaços sagrados começou em 2014
Em 2014, caiu o primeiro deles: o Ilê Axé Obákweran, em Águas Claras. Antes, a vegetação sagrada já havia sido destruída. O líder do terreiro foi procurado, mas não quis falar com a reportagem. O templo foi reaberto, em Lauro de Freitas, no ano seguinte.
O Ilê Axé Ayrá, também em Águas Claras e quase vizinho ao de Pai Valtinho, já perdeu árvores e plantas sagradas. As obras ocuparam o quintal e espalham dejetos pelo espaço verde chamado de Euê Sisi, que representa a força e energia de um terreiro, explica Pai Cica, babalorixá do templo criado em 1986.
Não há mais muro de separação entre os dois mundos. “Cada verde tirado é como se tirassem uma parte minha. Já conversei com eles (representantes do governo do estado). Disseram que não podiam fazer nada”, lamenta. No bairro vizinho de Cajazeiras, o terreiro Ilê Ibirin Omi Axé Ayira, conhecido como Vintém de Prata, também passa por problemas.“Cada verde que tiram, é como se tirassem uma parte de mim. O que estou podendo fazer é replantar. Já conversei com eles [Governo]. Disseram que não podia fazer nada”, lamenta. Desde dezembro, ele está literalmente à beira do precipício de barro criado pela escavação e terraplanagem da área onde passará uma pista de ligação da Avenida 29 de Março. O templo existe há 31 anos. “Se tiver chuvas, a probabilidade de deslizamento é grande. Nossos espaços sagrados estão em risco”, lamenta Lúcio André Andrade, que exerce o cargo de asogbá no Vintém de Prata. Área sagrada de terreiro liderado por Pai Cica foi parcialmente destruída (Foto: Tiago Caldas/CORREIO) Antropólogo alerta para danos à religiosidade
Ao logo da história, os terreiros passaram por problemas como demolições e destruições de áreas verdes sagradas. O Oxumarê e a Casa Branca, por exemplo, tiveram pontos sagrados destruídos para a construção da Avenida Vasco da Gama, na década de 50. O antropólogo Ordep Serra acredita que há pelo menos três pontos a ser pensados em casos de demolições de terreiro: o religioso, o territorial e o social.
A demolição de um terreiro, significa, avalia Ordep, na quebra de laços, numa sensação de perda de pertencimento e de referências religiosas.“É preciso pensar na cultura, porque se perdemos um terreiro, perdemos a riqueza que é alimentada por eles”, explicou Ordep. No dia 27 de fevereiro 2008, o terreiro Oyá Onipó Neto, na Avenida Jorge Amado, foi demolido por ondem da extinta Superintendência de Controle do uso do Solo do Município. A secretaria Kátia Carmelo – da gestão do então prefeito João Henrique – disse que o templo, então com 30 anos, tinha problemas de escritura. Os tratores simplesmente passaram por cima de tudo.
O templo foi reconstruído no mesmo lugar, em um mês, e a secretária exonerada depois da repercussão do caso. Naquele ano, Mãe Rosa foi diagnosticada com depressão e lutou para reerguer o terreiro, o que vai além de erguer paredes. Para equilibrar o Oya Onipó – espiritualmente e estruturalmente – foi preciso um ano.“Os filhos de santo ficaram torturados. Muita gente se desencontrou espiritualmente. Foi uma perda emocional, espiritual, psicológica. Um terreiro não é para ser demolido. Iansã quem disse que era para estarmos aqui”, diz Mãe Rosa, no barracão reconstruído. A administração municipal chegou a oferecer outro terreno. Iansã, interpretada por um jogo de búzios, ordenou que o terreiro permanecesse ali. “Eu desejo que Xangô faça justiça e diria que se pensasse duas vezes antes de destruir um terreiro, onde cultuamos nossa ancestralidade”, afirmou, quando soube das demolições.
Mãe Rosa acredita que é uma “ferida que não se cura”.
Tombamento é saída para preservação de espaços
Uma das estratégias dos candomblecistas para preservar templos de ações como a que foi enfrentada pela ialorixá é tentar o tombamento de terreiros, afirma o antropólogo Ordep Serra.
Hoje, há oito tombados pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac), sete pelo Iphan, órgão federal de preservação, e dois pela Fundação Gregório de Mattos, ligada à prefeitura.
Nenhum terreiro das regiões afetadas pelas obras do governo estadual entrou com pedido de tombamento, cujo processo demora, em média, 13 anos para ser concluído. Em 2016, o prefeito ACM Neto (DEM) baixou um decreto que isenta os terreiros de pagar IPTU. A capital baiana tem aproximadamente dois mil deles, segundo a AFA.
É possível cadastrar um terreiro na sede do Conselho Municipal das Comunidades Negras, na Rua Carlos Gomes, no prédio do Clube de Engenharia. “Terreiros mais tradicionais lograram algum tipo de proteção. Mas isso não quer dizer que os outros não sejam importantes. Eles não podem ser desconsiderados”, diz Ordep.
As lideranças ouvidas pelo CORREIO não pensam em iniciar, agora, um processo de tombamento. Mas querem ter o direito de ficar onde estão. "Vou lutar para continuar aqui", disse, na entrada do terreiro, Pai Márcio de Ayrá. Ao seu lado, estava o quarto de Exu, que, no Candomblé, é o orixá da comunicação e o guardião das coisas do Axé.
Projeto de VLT/Monotrilho é marcado por imbróglios judiciais
A licitação do VLT chegou a ser suspensa por quatro vezes a partir de 2017. O contrato só foi assinado em fevereiro de 2019, sob liminar concedida pela Justiça. Na última delas, em 2018, o Tribunal de Contas do Estado suspendeu o processo por indícios de irregularidades. Entre as quais, a mudança de VLT para Monotrilho. O contrato está mantido sub judice.