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Flavia Azevedo
Publicado em 19 de abril de 2020 às 12:00
- Atualizado há 2 anos
Elas não assinam textos, não fazem lives e, na maioria das vezes, não são ouvidas, sequer dentro das próprias casas. Elas, que viraram "perigo" para os idosos, "estorvo" para as famílias e alvo de toda sorte de queixas e piadas. São elas que "atrapalham" o home office, devoram toda a comida, choram no apartamento ao lado ou demandam atenção de pais e mães, quando estes, simplesmente, não querem se relacionar.
Maternidades (e paternidades) diversas têm diferentes desafios, mas uma coisa é verdade, em qualquer situação: nenhuma criança é problema encarnado. Se você observar direitinho, vai ver que é comum que sejam vítimas das próprias famílias. Ou vítimas junto com as famílias. Mas elas não são algozes de ninguém. Essa distorção da narrativa é de uma perversidade sem fim. Inclusive quando em tom de piada. Ou sou eu que não gosto de bullying disfarçado de bom humor. Não suporto quando chamam crianças de "bênçãos", ironicamente, sugerindo que são justamente o contrário. Isso é engraçado pra quem?
Vamos botar os pontos nos is? A maternidade compulsória e a ausência paterna vieram cobrar seu preço mais alto agora, no isolamento. Crianças que, de repente, não podem mais ser terceirizadas, buscam seus lugares em lares que não lhe cabem. Nunca foram seus, os quartinhos enfeitados. Era tudo exercício egóico, prestação de contas à sociedade, em muitos casos. O mercado de trabalho têm ojeriza às crianças que agora vazam nas videoconferências. "Atrapalham". E só não "atrapalhavam" antes porque, da gravidez à adolescência, sempre foram negadas, escondidas, no máximo administradas. As mães bem sabem (pais menos, porque normalmente se eximem) o quanto custa andar nessa corda bamba, no fio dessa espada. Agora, não dá pro chefe ignorar a maternidade. Uma baita oportunidade. Seria lindo rever essas relações em vez de apenas reforçar a ideia perversa de que "criança atrapalha".
E o estudo em casa? Fora todas as questões pedagógicas e sociais (capítulos a parte, claro), vejo muito da mais pura falta de saco, em casa. Rolou um texto na internet que era "piada", óbvio, mas falava do quanto era tedioso, para pais e mães, ter que lidar com assuntos que pareciam "coisa de retardado". Deve ter gerado muitas gargalhadas. Provavelmente, nas mesmas pessoas que acham "coisa de letrado" as lives de sete horas e meia com "ícones" da música sertaneja se embriagando e cantando desafinado. Tem gosto pra tudo e respeito. Até assisti umas, bebendo e dando risada. Mas acho estranho que se tenha tempo pra isso e não se encontre prazer em ler com um filho ou filha, em participar intensamente desse aprendizado.
Quem atrapalha é você, cara pálida. Coletivamente ou individualmente, somos nós os problemas das crianças e não o contrário. Somos nós e nossas escolhas erradas, nós e nossos traumas, nós e nossa estrutura que terceiriza, entrega, desampara, agride, violenta a infância. Normalmente, já não têm voz, imagine agora. Para cada pai ou mãe que se queixa do "peso" de estar com as crianças em casa, me vem tristeza por saber desse desamparo. Enquanto pessoas adultas têm acesso a terapia online, chats com amigos/as e desabafos, como têm vivido, o que têm sentido os/as pequenos/as "estorvos", nos porões das "famílias tradicionais"? Quais serão as futuras marcas?
Agora, alguns querem que voltem às aulas. Por uma falsa sensação de normalidade, pretendem amontoar as crianças, no meio do caos. Voltarão infectadas. Muitas delas assintomáticas, mas quem vai abraçá-las? Que professora vai dar colo, que avós vão deitar junto pra ver um filme, que adulto - além dos que são obrigados - vai querer essa intimidade? Vão infectar pessoas e carregar essa culpa pela eternidade. O que a maioria das crianças vive agora é um massacre dentro do massacre. Simbólico, mas com requintes de crueldade. De repente, descobriu-se que crianças são crianças e, portanto, precisam de cuidados. Então, decidiram que a existência delas "atrapalha". Se voltarem às aulas, como alguns desejam, deixarão de "atrapalhar" suas famílias para formar um triste exército de intocáveis.