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O crime é de José Dumont, mas a confusão é de todo mundo

É característica do pedófilo ser "confiável". Seja por laços sanguíneos, por vínculos afetivos ou pelo prestígio social que uma carreira de sucesso traz

  • Foto do(a) author(a) Flavia Azevedo
  • Flavia Azevedo

Publicado em 24 de setembro de 2022 às 11:00

. Crédito: .

Como você imagina um pedófilo? Pergunto isso porque toda vez que descobrem um, as pessoas se dizem "surpresas" pelo fato de aquela pessoa ser capaz de cometer esse tipo de crime. Qual é o motivo da surpresa? Como seria um pedófilo que não causasse surpresa? Eu não sei. Ou até sei, mas é um raciocínio já tão contradito que me espanta o fato de ainda ser tão comum. Para não causar surpresa, pedófilos deveriam ser desconhecidos, estranhos, esquisitos, viver escondidos e solitários, com cara e jeito de gente perigosa. Coisas que quase nunca fazem ou são. Você não aprendeu ainda não?

É característica do pedófilo ser "confiável". Seja por laços sanguíneos, por vínculos afetivos ou pelo prestígio social que uma carreira de sucesso traz. Pais, padrastos, irmãos, primos, amigos da família, pais de coleguinhas. "Líderes" espirituais, pediatras, professores, treinadores. Pedófilos estão entre nós, justamente pelo salvo conduto da intimidade ou admiração. Contra essas pessoas, não vale a regra "não fale com estranhos". Mais do que isso, se os adultos de referência da criança admiram aquele homem, se aquele homem é, ele mesmo, um adulto de referência ou se todos confiam, riem juntos e se abraçam, como é que algo que ele faça poderá ser criminoso? É nessa brecha, na incredulidade da criança, que a violência, tão corriqueira, se concretiza.

O crime - se terminarem de confirmar - é de José Dumont, mas a confusão é de todo mundo. Ao tecer loas à inegável competência do artista, em contraposição à atuação criminosa, o que cada colega e fã faz é apenas reforçar a ideia de que gente "bem-sucedida", "bacana", "talentosa" e "boa praça" está acima de qualquer suspeita. Só que não está. Uma coisa não exclui a outra. Pelo contrário, inclusive. O que se precisa entender é que esses são os melhores disfarces. E bem comuns. É necessário, portanto, falar de comportamentos adequados e inadequados, seja quem for o autor. Todos nós somos o modo como nos comportamos, numa construção contínua. Ninguém é confiável, a priori. Crianças e adolescentes precisam ser informados disso. Todos os dias.

Aqui em casa, quanto mais um "professor", "treinador", "líder" ou "tio" é "popular" entre adolescentes e crianças, mais alto soa meu sinal de alerta me dizendo "esse cabra tem poder e tá confortável demais". Aí é que observo cada detalhe. E converso. E pergunto. E explico, ao meu filho, exatamente o motivo pelo qual ando "desconfiada". Mais ainda, repito incansavelmente que a "liderança" ou o "saber" daquela pessoa está circunscrita a determinada área. Apenas. Que não diz nada sobre o todo e o caráter. Também que pessoas nem sempre se mostram inteiras, logo de cara. Que aquela pode ser uma pessoa confiável ou não. Coisa a ser cuidadosamente testada.

Assim, professor de capoeira apita sobre capoeira. Nada mais. O pediatra sabe de pediatria. O treinador de futebol ajuda com o futebol. O "tio" que conta boas piadas é pra gente dar risada. O artista tá lá pra oferecer aquela arte e só. Principalmente, explico ao meu filho que o fechamento é entre nós - eu e ele -, em 100% das vezes, seja quem for o terceiro elemento. Que nada vai me "surpreender" ao ponto de me fazer não acreditar no que ele me diga. Mesmo que seja sobre o tio mais querido, o pai do amiguinho ou o namorado de mamãe. Meu filho sabe que minha confiança é nele, esteja quem estiver no outro prato da balança. Também sabe que ninguém está acima de qualquer suspeita e que sensações estranhas podem e devem ser comentadas.

Pedófilos são criminosos que transitam livremente no território do impensável. Todos com o passaporte do "ninguém poderia imaginar". Crianças e adolescentes calam pelo "indizível" do que têm a dizer. Sempre é "inacreditável". O nosso explícito espanto aumenta a distância entre o fato e a luz, consegue perceber? Aqui, faço, exatamente, o exercício contrário. Naturalizo a desconfiança, por mais rodriguiano e perverso que isso possa parecer. O mundo é mais, já tenho idade pra saber.

Quando um caso "inimaginável" desses aparece - um "religioso", alguém famoso, muito íntimo da vítima ou de uma "bondade" imensa - e alguém se diz surpreso, aí que repito: "disfarce mais comum". Primeiro porque é mesmo. Segundo que contando com a possibilidade é que a gente consegue se defender. O tempo ensina que todo mundo é suspeito, até que se prove confiável. Em muitos aspectos, mas, principalmente, do que julgamos inconcebível e impensável. Como diria Suassuna, "a mim ninguém me engana mais". Dumont é um excelente ator. Também um criminoso, pelo jeito. Nesse caso, o crime se sobrepõe à arte e é o que define esse homem, a partir de agora. Não o contrário. Ele é um criminoso que conseguiu ser ator de sucesso e não um ator de sucesso que cometeu um crime. Percebe?