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Alexandre Lyrio
Publicado em 15 de janeiro de 2020 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
A edição número 1 do Correio da Bahia, publicada no dia 15 de janeiro de 1979, denunciava a descaracterização da Lavagem do Bonfim. Até o refrão final do tradicional hino seria alvo das profanidades que ameaçavam a face religiosa da festa. “Dai-nos a cachaça divina: Pitú, Baiúca e Saborooooosa”, entoavam os bêbados, citando as marcas de bebidas preferidas há exatos 40 anos.
Como se vê, nada daquilo conseguiu derrubar a força da tradição. Como se vê também, desde sempre o CORREIO traz em suas páginas um olhar diferenciado e curioso sobre a maior festa popular do mundo depois do Carnaval. Não por acaso, o Bonfim sempre ganhou grandes coberturas em nossas páginas.
Mas, o que mudou no Bonfim de 1979 para cá? De que forma o CORREIO mostrou isso? Ouvimos desde o primeiro editor-chefe do jornal, Sérgio Tonielo, à atual editora-chefe, Linda Bezerra, passando pelo Padre Edson e pelo juiz da devoção ao Senhor do Bonfim.
Aquele primeiro número já trazia muitas questões, alguma atuais. Além de discussões sobre a descaracterização, questionamentos sobre o sincretismo religioso e a abertura ou não da igreja nos dias de lavagem. O desafio sempre foi cobrir de forma inventiva um evento que acontece todos os anos.
Mas, diz Linda Bezerra, o CORREIO sempre conseguiu manter “uma ligação estreita com as coisas da Bahia”.“Para as pessoas que não têm um olhar cuidadoso, parece que é uma festa sempre igual. Mas, todos os anos, o Bonfim é diferente. Para cobrir bem o Bonfim, é preciso ter uma relação umbilical com as coisas da Bahia”, ensina Linda.Lá atrás, também era assim. Para o primeiro editor-chefe do jornal, o gaúcho Sérgio Tonielo, não tinha como não tratar a Lavagem do Bonfim de forma especial. “A gente sempre tinha uma ou duas cartas na manga. Era possível antecipar algum tema de acordo com o que estava acontecendo no ambiente político ou religioso. Sempre era possível descobrir algo novo e pensar novas pautas. O Bonfim é um momento muito rico”.
O que rouba a cena De fato, ano após ano, sempre há um fato novo, uma nova discussão, um novo protesto, um fato político que rouba a cena. Em 1998, após muita discussão, os trios elétricos, que em algum momento se incorporaram ao cortejo, foram definitivamente proibidos. Trios como o Jóia não podiam mais tocar na lavagem, que a essa altura era considerada a abertura do Carnaval. Trios ainda faziam parte da festa em 1993; em 1998, foram proibidos (Foto: Arquivo CORREIO) Em 2011, o Bonfim perdeu uma de suas características mais tradicionais: a presença das carroças, dos jegues e outros equídeos. Uma ação cautelar foi ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil-Bahia (OAB-BA) e pelas ONGs Terra Verde Viva, Animal Viva e Célula Mãe contra a presença dos animais. Entre as provas apresentadas está o documentário Os Animais da Terra da Felicidade, sobre maus-tratos e falta de fiscalização.“Não pode haver cultura ou tradição sobre a crueldade e a ilegalidade”, defendeu, à época, a presidente da Comissão de Proteção dos Direitos dos Animais da OAB-BA, Alessandra Brandão.Além dos donos de jegues e proprietários de carroças, artistas, devotos e até o pároco da Igreja do Bonfim se colocaram contra a ação. O dono do jegue Pagode e criador do bloco Levada do Jegue, Moisés Cafezeiro, ainda se articulou para barrar a ação na Justiça, mas os jegues e suas carroças continuaram de fora. Jegues e carroças saíram de cena em 2011, após ação na Justiça (Foto: Luiz Hermano/Arquivo CORREIO) Santo superstar Se o Bonfim historicamente sempre foi fonte de novidades, imagina depois que o padre Edson Menezes assumiu a Basílica, em 2009. Sempre inventivo, o padre é um dos responsáveis por reaproximar a Igreja Católica da maior festa de largo que existe. Historicamente, no dia da lavagem das escadarias – um ato que remonta o povão e as escravas obrigadas a fazer a lavagem –, a igreja sempre permaneceu fechada.
A imagem do Senhor do Bonfim sempre descansou dentro do templo, resguardada da multidão. Eis que, na segunda quinta-feira de 2008, o padre Edson Menezes abriu uma janela no alto do templo e mostrou a imagem. O povo ovacionou o ato e Senhor do Bonfim mostrava que ainda era um “superstar”, como mostrou a nossa edição do dia 12 de janeiro daquele ano. A primeira vez que a imagem do Senhor do Bonfim foi exibida na janela da Basílica foi em 2008 (Foto: Robson Mendes/Arquivo CORREIO) No ano seguinte, Padre Edson resolveu inovar. Em vez da aparição no alto da Basílica, pela primeira vez na história, em 266 anos de devoção, a imagem de Senhor do Bonfim participou diretamente da festa. Do início ao fim, uma réplica menor que a original foi levada nos braços do povo. Desde as 7h, a imagem estava exposta na Igreja da Nossa Senhora da Conceição da Praia. Saiu em procissão, conduzida pelos fiéis, até a Colina Sagrada.
Esse ano, quando a chegada da imagem do Senhor do Bonfim na Bahia completa 275 anos, Padre Edson providenciou um carro alegórico representando uma caravela, já que Bonfim chegou por via marítima. O carro levará a chamada imagem peregrina de Senhor do Bonfim da Conceição até a Colina Sagrada. Mas, o padre quer muito mais.“Nosso objetivo é voltar a abrir a igreja para o povo no dia da lavagem. Pouco a pouco nós vamos conseguir isso. Tenho fé”, diz o padre Edson.Popularidade O crescimento da popularidade da festa teria coincidido com os primeiros anos do jornal, diz o antigo editor-chefe do CORREIO, Demóstenes Teixeira. No final dos anos 1970 e início dos anos 1980, a lavagem passou a atrair gente de todo o país quando foi transformada num evento do calendário turístico de Salvador. “Isso aconteceu no governo de Antonio Carlos Magalhães. O responsável? Paulo Guadenzi, que foi presidente da Bahiatursa”, lembra Demóstenes. A fé que une: baiana dá banho de água de cheiro em freira na Lavagem do Bonfim de 2014 (Foto: Marina Silva/Arquivo CORREIO) A política sempre esteve muito presente nas páginas que tinham como foco a lavagem. Demóstenes, que diz ser “do tempo em que muita gente andava pelas ruas ‘mais enfeitada que jegue na Lavagem do Bonfim’", afirma que nos anos de eleição ou de apresentação de candidatos, muito da cobertura girava em torno desse tema. A redemocratização do país, à época, teria tido um papel fundamental para transformar a festa e a forma com que os jornais a tratavam.“Todos os que imaginavam ter votos para disputar de fato o cargo almejado tinham obrigação de cumprir o ritual da caminhada ao Bonfim. Fosse devoto ou não. Os jornais, na cobertura jornalística do evento, sempre deram destaque à popularidade deste ou daquele candidato ao longo do trajeto”, lembra Demóstenes, que comandou a redação do CORREIO de 1990 a 2007.O projeto Correio 40 Anos tem oferecimento Bradesco, patrocínio Hapvida e Sotero Ambiental, apoio institucional Prefeitura de Salvador, apoio Vinci AirPorts, Sesi, Salvador Shopping, Unijorge, Claro, Sebrae, Itaipava Arena Fonte Nova, Santa Casa da Bahia e Coelba.
Momentos e mudanças na Lavagem do Bonfim:
1745 – Em 18 de abril daquele ano, as imagens do Senhor do Bonfim e de Nossa Senhora da Guia, procedentes da cidade de Setúbal, Portugal, chegavam a Salvador trazidas pelo Capitão de Mar e Guerra Theodósio Rodrigues de Farias.
1754 – Igreja levou nove anos para ser construída. Basílica foi inaugurada no dia de São João, 24 de junho de 1754.
1889 – Dom Antônio Luís Santos manda publicar uma portaria que proibia as lavagens das igrejas em dias de festa em homenagem aos santos. A população insiste na continuidade da tradição e passa a fazer a lavagem do lado de fora, nas escadarias.
2009 – Padre Edson Menezes abre uma janela no alto da igreja e mostra a imagem de Senhor do Bonfim para a multidão. O povo ovacionou o ato e Senhor do Bonfim mostrava que ainda era um “superstar”.
2010 – Pela primeira vez na história, em 266 anos de devoção, a imagem de Senhor do Bonfim (réplica em menor tamanho) participou diretamente da festa. Do início ao fim, foi levada em um andor nos braços do povo.
2011 – Uma ação cautelar ajuizada pela OAB-BA e ONGs de ativistas do meio ambiente contra a presença de jegues e outros equídeos na festa fez o Bonfim perder uma de suas principais tradições: as carroças enfeitadas puxadas pelos animais foram proibidas.