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Da Redação
Publicado em 21 de agosto de 2021 às 05:10
- Atualizado há 2 anos
Imagine como seria estranha a literatura baiana se Dona Flor, a maior cozinheira dos romances de Jorge Amado, abdicasse do prazer de ver Vadinho “lambendo os lábios amarelos de dendê”, pois resolveu moderar no azeite da moqueca de siri-mole para não provocar um piriri nos seus dois maridos. Recusar uma moqueca lambuzada de azeite é um pecado na Bahia, salvo se você é filho de Oxalá. Mesmo assim, o dendê continua com fama de vilão para alguns que ainda culpam o óleo de palma pelas azias e dores de barriga alheias. Surgiu até um novo dendê, o Unaué, que saiu do tubinho de ensaio diretamente para satisfazer a turma mais nutella. O dendê Unaué promete acidez de 1%. Os demais chegam a 5% (Foto: Sora Maia/CORREIO) O Unaué é nascido na Bahia, mas com descendência paraense. Desenvolvido na Estação Experimental Lemos Maiano, no município baiano de Una, no Baixo Sul, este novo dendê é quase desprovido de acidez. “Além da baixa acidez, trata-se de um óleo de altíssimo valor alimentar. Ele apresenta menor teor de ácidos graxos saturados e maior em ácido oleico, em relação ao azeite de dendê de origem africana”, descreve o pesquisador da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac), José Inácio Lacerda, líder do projeto.
O problema é que tanta promessa desencadeou um show de preconceito com o dendê tradicional. Um portal de notícias, de âmbito nacional, falou sobre o Unaué estampando a manchete “Dendê sem dor de barriga”. A Embrapa, que também participa do projeto, definiu a nova descoberta como “a solução que impacta diretamente a culinária baiana, visto que a alta acidez do dendê é tida como responsável por distúrbios gastrointestinais, o que afasta muitos apreciadores”. A definição gerou revolta em alguns profissionais especializados em comida baiana.
“É um absurdo o tratamento que foi dado ao dendê nesta questão. É preconceituoso achar que dor de barriga é sinônimo de dendê. Eu trabalho com dendê, como dendê e tomo banho de dendê feito na Bahia para cuidar da pele. Uma moqueca pode ter diversos componentes que levam a problemas gástricos, como um peixe ruim ou tempero industrializado. Já vi gente colocar até queijo para engrossar caldo de moqueca. Como a culpa pode ser do dendê?”, disse Tereza Paim, dona do tradicional restaurante Casa de Tereza, no Rio Vermelho.
Vale lembrar que até uma salada crua e mal lavada pode dar piriri. A dor da barriga é uma irritação no intestino que gera a diarreia. O motivo é variado, como uma alergia a camarão por exemplo. Mas não é a acidez que vai fazer isso.
Acidez e preconceito Segundo a Ceplac, o Unaué tem uma acidez de 1%, enquanto um azeite artesanal tem 5%, a depender da qualidade na produção. Caso você não resolva beber um litro de azeite na garrafa, dificilmente vai ter um paladar apurado para sentir diferença entre os azeites, inclusive entre o dendê e o oliva. Um extravirgem da oliveira tem uma acidez de 0.8%. Contudo, a versão virgem, destas que encontramos em boa parte dos restaurantes, chega a 3%. A diferença não é tão absurda entre estes óleos, mas mesmo assim você acha que está esbanjando saúde quando enche sua salada de oliva, mas fica com um pé atrás com a moqueca.“A oliveira está relacionada ao Mediterrâneo, tido como berço da cozinha. A oliveira nos remete à Grécia, a Atenas, enquanto o dendê ao Continente Africano. Temos sim, uma questão cultural”, resume o doutor Vilson Caetano, babalorixá, professor da Ufba e com doutorado em antropologia. Uma das especialidades dele é a antropologia da alimentação.“O azeite de dendê é um dos símbolos identitários das religiões de matrizes africanas. Por exemplo, há Orixás que não comem dendê. O dendê passou por um processo de demonização porque é um dos elementos do orixá Exu, que foi transformado, de forma equivocada, no diabo”, lembra Vilson. “Na Nigéria, o processo de demonização do azeite de dendê foi semelhante. A gente não imagina um acarajé sem azeite de dendê, mas encontrei vários na Nigéria. Quando eu perguntei, me explicaram que o dendê também foi demonizado por lá”, completa. Na Nigéria, já estão fritando o acarajé em óleo de soja para tirar o dendê do cardápio e dos costumes do país. Isso, sim, dá embrulho na barriga. Dona Solange prepara o fogo para a fritada de acarajé (Foto: Sora Maia/CORREIO) No meio destes impasses, um questionamento. Como um dendê consegue ser menos ácido que o outro? Mais uma vez a culpa não é do fruto, mas o jeito que ele é colhido. É assim que o novo dendê leva vantagem. O Unaué é derivado do fruto de um dendezeiro híbrido conhecido como HIE OxG, criado a partir do cruzamento das espécies de origem africana (Elaeis guineensis), predominante aqui na Bahia, e o Caiaué, de procedência americana (Elaeis oleífera). Entre as características peculiares está sua estatura baixa. “Existem diversos fatores para a acidez, mas o que contribui muito é a forma de colheita. Como os dendezeiros daqui da Bahia são muito altos, chegando até 30 metros de altura, estes cachos caem de forma inadequada no chão, fazendo com que se rompa o fruto e comece o processo de oxidação e hidrólise daquele fruto, o que influencia num azeite de dendê com maior acidez”, explica a nutricionista e doutoranda em Alimentos, Nutrição e Saúde da Ufba, Rafaela Santos.O HIE OxG é uma palmeira que cresce lentamente, cerca de 10 centímetros ao ano, facilitando na colheita e evitando estas quedas.
O Unaué não é achado em qualquer supermercado. Ainda de fabricação experimental, este tipo de dendê é encontrado apenas em Una. A própria Ceplac, que tem uma fábrica modelo na região, comercializa o produto. Localizada na praia de Comandatuba, o restaurante Porto Real é o único da região que já substituiu o dendê tradicional pelo novo nos seus pratos.
"O resultado que tivemos na troca do dendê tradicional, feito no fundo de quintal, para o Unaué foi muito bom. Antigamente tínhamos reclamações de clientes, que pediam pouco dendê. Hoje, quando alguém pede para colocar pouco dendê, digo que vou colocar a quantidade necessária e eles não vão se arrepender. O cliente, após degustar, fica surpreendido. Eles pedem para levar um pouco pra casa", garante Weldo Dantas, dono do lugar. Uma garrafinha custa, em média, R$ 15.
Para a nutricionista Deusdélia Teixeira de Almeida, professora titular aposentada da Escola de Nutrição da Ufba, o azeite que atende todo o processamento adequado terá uma acidez menor que 5%. "A qualidade de um dendê de pilão pode ter, por exemplo, 2% de acidez. Até menos. É preciso evitar a fermentação dos frutos, manter a limpeza e o processamento adequados, assim que o fruto é retirado do pé. O Unaué, por ter um dendezeiro de baixa estatura, facilita este processo rápido. Se não tem um cuidado na elaboração do dendê, ele pode ter uma acidez acima do permitido, que é de 10%. Aí, sim, é possível sentir problemas digestivos". Ou seja, tudo depende de como é fabricado o dendê. É inevitável encontrar aquele feito sem o cuidado merecido, como em qualquer produto. Contudo, dendê artesanal não é sinônimo de algo sem qualidade e com acidez elevada.
“Nosso dendê não faz mal à saúde. Pelo contrário. O dendê é rico em vitamina A e E na forma de tocotrienóis (reduz o colesterol), que é excelente e encontrada apenas no dendê e no óleo de arroz. Também tem o ácido oleico, bom para a saúde. Nosso dendê é extraordinário. Dele se faz tudo que imaginar. São 145 produtos na indústria que utiliza o óleo de palma de alguma forma”, completa a nutricionista Deusdélia Teixeira. Cleide de Lemba sentindo o aroma do Unaué (Foto: Sora Maia/CORREIO) E o sabor? Para não dizerem que este texto está mais ácido que o azeite de dendê, resolvemos testar, na prática, o Unaué. Trocamos o tubo de ensaio pela panela de barro de dona Solange Borges, perita na culinária baiana e que aceitou o desafio. No menu, uma moqueca de ovo com mamão verde, além de uma fritada de acarajé.
Cercada de dendezeiros com mais de 20 metros de altura, a baiana Solange aguardava ansiosamente no seu laboratório a chegada do Unaué. Laboratório ou cozinha, dá no mesmo. Quando o assunto é dendê, pode-se afirmar que ela é uma cientista no assunto. No lugar do tradicional jaleco, porém, ela opta por batas rendadas, turbante e um pano da costa dourado amarrado na cintura.
Na sua roça, na zona rural de Camaçari, seus pratos são feitos com tudo que é plantado no local, incluindo o azeite, que ela mesma produz por meio artesanal, conhecido como dendê de pilão. Ela inclusive ensina a fazer um azeite de dendê caseiro, no seu Instagram (@culinariadeterreiro). Levamos dois tipos de amostra do dendê, cedido gentilmente pelo doutor José Inácio Lacerda. Um com apenas oleína, que é o óleo propriamente dito, para fazermos a moqueca. O outro foi com oleína e esteriana, aquela parte grossa que fica no fundo do dendê, indicada para fritura do acarajé.“Logo de cara percebemos cores diferentes entre o dendê de pilão e o Unaué, que tem uma tonalidade mais escura e uniforme. Percebe-se que é um dendê prensado, que consegue obter mais óleo que o de forma de pilão. Vamos ver na panela, né?”, disse Solange.Enquanto fazia a moqueca, nossa chef percebeu pontos positivos no Unaué. “A cor é viva, transformou a cebola em ouro. O cheiro também é bom, gostei”, resume Solange, que estava na companhia de sua filha e mãe de santo Cleide de Lemba, do terreiro Unzo N'Ganga Kuatelesa Ninza. Hora do primeiro teste. Como Cleide é mãe de santo, o cargo mais alto do terreiro, ela foi a primeira a comer a moqueca. Só depois dela se servir, os demais se servem. “Não existe candomblé sem dendê. É o sangue que corre nas veias da religião. O sabor é diferente do dendê de pilão, mais consistente e um gosto mais aprumado. Porém, sabemos que é difícil encontrar este tipo de dendê artesanal no mercado. Para o comércio de escala maior, o Unaué é uma boa opção, sim”, disse Cleide.
Solange também teve uma opinião parecida. “Senti uma diferença, pois estou acostumada ao dendê que fazemos aqui, na minha visão mais saboroso. Porém, não significa que o Unaué é ruim. Não vi diferença na acidez, mas é um dendê está aprovado para ser utilizado". A grata surpresa ficou por conta do acarajé. “Olha, uma dica para a turma da Ceplac. Invistam neste azeite para as baianas de acarajé. É perfeito. A cor, o cheiro e a crocância. Este óleo foi feito para fritar acarajé”, disse Solange, enquanto este pobre repórter comia sete acarajés. Solange também investe no dendê. “Aqui tem muito dendezeiro, mas pouca produção. Chegamos para abrir nosso terreiro e olhamos que poderíamos fazer nosso próprio dendê para comer, vender e ofertar para nossos santos. Quando chegamos, produzimos 30 litros com a comunidade. Este ano foram 300 litros”, disse Solange, que cobra R$ 40, o litro. Um bom vinho é caro assim mesmo...
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Por que Oxalá não recebe comida com dendê?
Perdeu a criação - Oxalá recebeu a missão de Olodumaré, o ser supremo entre os orixás, para criar o mundo. Ele pegou o saco da criação e se picou para fazer o trabalho dele. Quando estava passando pelos portões do além, avistou Exu, que pediu uma oferenda para Oxalá seguir viagem. O homem de branco recusou. Exu, irritado com a recusa, fez com que Oxalá tivesse uma sede sem fim. No caminho, estava um dendezeiro, onde o orixá bebeu o líquido desta palmeira para matar a sede. Bebeu tanto que ficou bêbado, perdeu o GPS e adormeceu. O saco da criação foi roubado e Oxalá não conseguiu criar a terra. Para não dizer que não gostava de Oxalá, Olodumaré então deu outra missão: criar o homem. A condição era não mais beber do dendezeiro.
Mancha de dendê não sai - Em outra passagem, Oxalufã, o Oxalá velho, resolveu fazer uma visitinha a Xangô. Antes, porém, consultou um babalaô sobre sua viagem. Foi aconselhado a não ir, mas negou o conselho. Recebeu, então, algumas instruções. Que não negasse pedido de ajuda, levasse três roupas brancas e sabão. Com passos lentos, ele foi. No caminho, encontrou quem? Ele mesmo. Exu estava sentado no caminho, com um galão de azeite de dendê. Pediu ajuda para carregar, Oxalá prontamente atendeu. Porém, Exu manchou a roupa branca do orixá, de propósito. Já sabe para quê serviu as roupas e o sabão, né? A mesma "brincadeira" aconteceu ao longo do caminho. E o orixá velho, coitado, se lavava e trocava de roupa sem reclamar. Oxalá não tem boas lembranças com dendê, né?
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Receitas da reportagem
Moqueca de ovo com mamão verdeIngredientes 9 ovos 1 mamão verde (médio) 1 cebola 1 tomate 1 litro de leite de coco Sal a gosto Coentro largo Dendê a gosto
Preparo: Após cortar os temperos, esquente o dendê na panela de barro. Em seguida, refogue a cebola no dendê. Depois, despeje o leite de coco e deixe cozinhar. Coloque o mamão verde e o restante do tempero, assim como os ovos. Use sal a gosto. Lembre-se: o mamão verde não deve estar com semente ou casca. Ele precisa ser cozido na pressão durante 5 minutos antes de ser inserido na moqueca.
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Fritada de acarajé Ingredientes 1 kg de feijão fradinho quebrado 300 g de cebola 1 colher de chá de gengibre ralado 1 dente de alho 1 colher de sobremesa de sal 1 l de dendê para fritar
Preparo: Lave o feijão diversas vezes até que tire toda a casca. Depois, deixe-o de molho por 3 horas. Finalizado este processo, bata tudo no liquidificador até virar uma pasta. Coloque o dendê esquentando com uma cebola inteira dentro. A quantidade do dendê deve ser suficiente para que o bolinho fique boiando nele. Bata a massa com uma colher de pau até que fique fofinha. Uma dica: em casa, dá pra utilizar a batedeira. Molde o bolinho com a colher e coloque para fritar no azeite bem quente.