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Gabriel Galo
Publicado em 2 de novembro de 2020 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
Não é que Aymoré, o técnico mais que setentão, era alheio às modernidades do futebol. Aceitou com naturalidade as evoluções táticas, embora nunca se entregasse ao vocabulário moderno. Sabia do poder das redes sociais, mesmo que não as utilizasse. Diante de tanto novo, preservava poucas manias. Uma delas comunicativa que, com o tempo, se transformou em filosofia de jogo. Em toda explicação tática, orientação, motivação, soltava o seu bordão que selava seu raciocínio de maneira irrefutável: “noves fora o quê? Noves fora, nada.”
Os recém-chegados, que geralmente pouco captavam a referência matemática, mesmo com auxílio dos veteranos, demoravam uns dias para entrar em sintonia com o técnico. Logo tudo entrava nos eixos, e a equipe vagava em campo como se fosse uma máquina de engrenagem perfeita, acumulando vitórias e boas exibições. E assim seguiu até a esperada classificação à final da Copa Nacional.
O empate na primeira partida, no campo adversário, provocou efeitos devastadores para a cabeça de Aymoré. Não pelo placar, que o deixava em vantagem para a volta em seu estádio, mas porque Haroldo, seu 9 artilheiro, saiu machucado ainda no primeiro, para depois ver Humberto, seu 9 reserva imediato, ser expulso numa confusão de fim de jogo.
Tanto azar era coisa demais para Aymoré. O que haveria de ser de seu time com seus dois noves fora, senão nada?
O trabalho correu tenso na semana de preparação. Por mais que tentasse, sem opção de substituição direta, a improvisação quebrava a máquina. Por mais que escondesse, Aymoré temia, como jamais temeu, um revés para o destino.
Recorreu, desesperado, a seu amigo-irmão Zezé, homem de fé inabalável, para que apelasse a instâncias superiores. Zezé, então, se apressou para encaixar novena em período encurtado, temendo a ira divina pela gambiarra do rito em 7 dias. Organizou encontros de oração, dedicou altares, e estabeleceu rotina que colocava a fé sobre todas as coisas.
No domingo da final, Aymoré despertou calmo. Manteve seu passo-a-passo como de costume, ajustado às indicações de Zezé. O coração sem desassossego indicava desfecho a que se habituara.
Cumprimentou os atletas com carinho. Manteve-se até mais calado que de costume. Cumpriram todos o rito de Zezé e saíram da concentração ao estádio no horário programado. A paz imperava no ambiente, sem batucada nem sobressaltos.
Na preleção, hora antes do jogo, a salvação. O jovem técnico adversário, moderno ao extremo nos entendimentos do futebol, decidiu por espelhar sua equipe à de Aymoré. Para tanto, sacou o seu centroavante de campo e improvisou um falso 9 para importunar a sólida zaga de Aymoré, que sorriu a Zezé em agradecimento.
Tomou o centro da sala onde, no quadro branco, em vez dos usuais esquemas táticos, liam-se somente dois números 9.
- Se vocês tiverem prestado atenção ao que sempre fazemos, sabem que noves fora, nada. Pois muito bem. Sem Haroldo e Humberto, vamos com o Afonsinho improvisado. E, confesso, duvidei. Sem meus noves, o que haveria de ser, senão nada? Mas tem muito mais entre o céu e a terra do que julga nossa vã filosofia. E o time adversário vem espelhando nosso esquema, sem centroavante. Aí é matemática pura. Se nada temos de cá, os “noves fora, nada” de lá igualam tudo. E o zero a zero é nosso. Só confia.
Subiram ao campo apenas aguardando o apito final para que se sacramentasse a verdade universal de Aymoré, Zezé, e mais tantos que, mesmo atualizados, não se atrevem a simplificar o futebol ao que se pode explicar.
Gabriel Galo é escritor