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Flavia Azevedo
Publicado em 18 de outubro de 2019 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
Seria inspirador, talvez, mas Ariane não conhecia a frase mais famosa de Simone de Beauvoir, quando - ainda num corpo de menino - assistia aos desenhos da Barbie e se imaginava princesa. Também se identificava com as "esposas" das telenovelas e usava toalhas da cabeça pra fingir cabelos longos. Foi assim que, alguns anos depois do nascimento, viveu um segundo e longo parto. Deste, surgiria a mulher que se tornou. Adequação de gênero é um processo inevitável e cheio de desafios. Para "os fortes", como se diz. Ou para "as fortes". Mulheres como a nossa personagem de hoje, por exemplo. Da prostituição compulsória aos 13 anos à vitória de ser a primeira mulher transexual a se formar em psicologia, em Salvador, foi muita estrada. Atualmente, Ariane estuda "A Solidão da Mulher Trans, Negra e Periférica" e veja que riqueza perceber em quantos lugares ela pode se colocar, nesse recorte. Conheça o olhar dessa pesquisadora que é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto. É preciso construir pontes, sepultar preconceitos, aceitar convites para olhar de outro jeito. Senta aí, portanto. Hoje temos uma boa conversa.
Quanta - O fato de você ser uma mulher trans dificultou a sua trajetória profissional fora da prostituição? Ariane - Sim. Com 18 anos de idade e sem desejar continuar a viver de prostituição, comecei a tentar trabalhar no mercado formal e ao participar de seleções de emprego e não ser selecionada, percebendo ter um currículo básico de ensino médio como os demais candidatos, comecei a entender que o único motivo que me fazia ser exluída das vagas era o preconceito contra travestis e transexuais. Daí em diante, comecei a "me vestir de homem" e passava nas seleções. Aí, tinha minha carteira assinada, mas trabalhava no máximo um ano e era demitida quando, me sentindo segura, começava e vestir roupas mais apertadas e femininas, soltar os cabelos etc. Só depois, dentro da Faculdade de Psicologia, comecei a ter oportunidades de estagiar como eu sou: uma mulher.
Q - Há muitas discussões sobre mulheres trans deverem ou não ocupar os mesmos espaços de mulheres cis como, por exemplo, atendimento na Delegacia da Mulher e banheiros femininos. Qual a sua opinião? A - Mulheres são mulheres e devem ocupar os mesmos lugares independente de serem cis, trans, negras, brancas, magras ou gordas. Essas são apenas especificidades que todas têm, cada uma com a sua. Se assim não for, mulheres transexuais estarão cada vez mais expostas ao preconceito e violências físicas que poderão chegar até a morte. Lembro de uma vez, quando estudava o ensino médio e ainda entrava no banheiro masculino, mesmo já tendo passado por uma transição. Naquela época, lá pelo ínicio dos anos 2000, não se falava muito em direitos de banheiros nas escolas como é assegurado hoje quando muitas trans já podem escolher entrar no feminino. Bom, eu estava num masculino e um grupo de rapazes me prendeu na cabine e com a ajuda da tampa do vaso (minha sorte era que ela era de plástico) batiam em minhas costas e cabeça gritando: "você não é mulherzinha? porque entra aqui? quer p*ca, é?". Depois desse dia, tive a certeza de que não entraria mais no banheiro masculino, preferindo usar os de deficientes ou até mesmo ficar sem fazer minhas necessidades. Da mesma forma, com as Deams. Nem tudo o que sofremos de agressão é transfobia, mas também violência contra a mulher. Também temos companheiros ou somos violentadas dentro do ambiente familiar por pessoas dos gênero masculino. Se as Deams não estiverem preparadas, quem estará? Quem dará conta disso? Ou vamos fingir que violência doméstica e familiar para com as mulheres trans não existem? Eu mesma já vivenciei e conheço outros casos. Se as autoridades apontarem não ter demandas é o discurso confortável para continuar silenciando tais existências.
Q - O que você pensa sobre o fato de algumas vertentes do feminismo não perceberem mulheres trans como mulheres? A - Entendo que esse pensamento fez sentido logo no ínicio das organizações feministas, quando elas temiam a aproximação e boicote de "machos" em suas manifestações e pautas, mas hoje entendemos que não faz mais sentido. Estou falando de um femnismo intitulado como radical e radical vem de raiz, por isso ressalto: foi um pensamento que se inicou com a movimentação de mulheres brancas, de classe média, maioria ou todas heterossexuais o que dificultava se afetar com "os problemas dos outros" como de mulheres trans e negras por exemplo. (...) O transfeminismo ou feminismo trans não vem desfazer as correntes e pautas anteriores, mas sim reescrever, aprender e acrescentar, colocando as nossas pautas que nos ligam às mesmas opressões, por exemplo.
Q - Como esse tipo de decisão (considerar ou não que mulheres trans são mulheres) impacta no dia-a-dia de mulheres trans, em sua opinião? A - Coloca em xeque as nossas identidades e fortalece, ainda mais, o preconceito que exclui e nos adoece dia-a-dia como a negação do uso do nome social e da identidade de gênero feminina, nos direitos que englobam as mulheres, na invisibilização, na sexualização exarcerbada, na falta de cuidados por profissionais das aréas de saúde, educação e segurança pública e tantos outros descuidos que passam a ser legitimados pelo próprio Estado.
Q - O baixo número de mulheres trans em espaços de poder reflete a forma que tratamos essas mulheres? A - Com certeza. Quando estamos em espaços de poder, representamos que estamos incluídas e reconhecidas mesmo que de forma resistente, na sociedade. Por isso, é preciso mais mulheres dentro desses espaços. Principalmente, naqueles em que possam opinar, escrever e reescrever projetos de vida para a nossa população. Hoje, temos pessoas trans em espaços de poder mas, enquanto psicóloga e estudante de gênero e diversidade e logo analista de políticas públicas, percebo que algumas são apenas representação, um corpo de uma mulher trans num espaço mas não há a redistribuição que é a uilização delas para a conversão em redes de desigualdades - e também o reconhecimento mesmo da luta - que faça transformar as coisas. Tenho analisado as relações sociais a cada dia, sobretudo os meus próprios comportamentos e vivo me perguntando: o que eu fiz e estou fazendo para transformar a sociedade? Como resposta, movo projetos que retificam nome e gênero de travestis e transexuais do Estado da Bahia, (...) vou às escolas falar sobre raça e racismo, masculinidades, violência contra a mulher, diversidade sexual e de gênero. Alí, estou desmistificando ideias de normalidade que aprendemos desde cedo com as nossas famílias. Escrevo cartilhas que explicam conceitos e definições que compõe uma diversidade sexual e de gênero para publicar em sites, imprimir e disponibilizar para a sociedade civil, enfim. Não basta ser apenas representação. É preciso ser agente de transformação social, sair mais dos discursos e narrativas de resistência e ir para a prática. Eu tenho feito minha parte, e vocês? Tem feito? É importante!