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Mãe do silêncio: 'O terreiro deve manter esse respeito', diz nova ialorixá do Opô Afonjá

Na primeira entrevista, Mãe Ana fala de temas como sua missão no Afonjá e intolerância religiosa

  • Foto do(a) author(a) Fernanda Santana
  • Fernanda Santana

Publicado em 4 de janeiro de 2020 às 05:45

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: .

Silêncio. Mãe Ana de Xangô entra quietamente na Casa de Xangô, no Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, pouco depois do meio-dia, apenas esboça um sorriso, deseja boa tarde e senta-se na cabeceira da mesa. Ao seu lado, estão quatro obás, os ministros de Xangô, responsáveis por auxiliar as ialorixás nas suas atividades e ajudar na administração do terreiro. A reportagem pergunta se pode começar a entrevista e, só então, Mãe Ana rompe o silêncio pelo qual tanto preza. “Por que é interessante que nós falemos a quem é de fora coisas da nossa Casa?”, questiona a nova ialorixá, sem elevar o tom ou mudar a expressão.

A pedagoga Ana Verônica Bispo dos Santos, 53 anos, é, agora, Mãe Ana de Xangô, escolhida pelo orixá regente da Casa para assumir a liderança depois de uma interrupção forçada nas atividades religiosas do templo. Primeiro, o terreiro estampou os jornais quando a última ialorixá, Mãe Stella de Oxóssi, deixou, em vida, o Afonjá para viver em Nazaré das Farinhas, no Recôncavo Baiano.

Depois, veio a morte da mãe de santo, no dia 27 de dezembro de 2018, e o axexê, quando o terreiro foi fechado e ficou de luto por um ano. “As pessoas querem conhecer a nova líder do Opô Afonjá depois de um período tão conturbado”, justifica a reportagem à pergunta de Mãe Ana. 

A ialorixá decidiu falar e o fez no primeiro dia de 2020, ano que, para o Candomblé, será regido por Xangô, dono do “ori” da nova mãe de santo, regente do Opô Afonjá e considerado o orixá da Justiça. Mas, às perguntas, sucedem intervalos de silêncio e, com igual naturalidade, Mãe Ana responde ou declina das questões. As respostas são objetivas, como parece agir a nova ialorixá, iniciada na religião por Mãe Stella aos 23 anos.“Minha preocupação é realmente sobre o que será divulgado. O terreiro deve manter esse respeito. Nem tudo se divulga”, diz, quando questionada sobre os desafios da Casa. Mãe Ana prefere discrição ao falar do Candomblé. Escolhe, por exemplo, não comentar o passado do afastamento de Mãe Stella, nem detalhar os desafios do Candomblé ou disputas internas. “Têm coisas que só agregam à nossa comunidade”, justifica. A própria Ana sequer planejava ser filha de santo, embora filha de um babalorixá e uma iyamorô, Deyse Bispo Santos, falecida em 2017, quando era uma das mais antigas filhas do terreiro.“Não esperava, mas por obediência e necessidade me tornei filha de santo”, conta a ialorixá sobre sua trajetória pessoal.Durante pouco menos de meia hora de entrevista, Mãe Ana parece escolher precisamente as palavras antes de responder. O terreiro tem mais de 300 filhos, enquanto Mãe Ana é mãe biológica apenas de um filho e avó de duas crianças que vivem no Rio de Janeiro.

Desde a fundação por Mãe Aninha, em 1910, o Afonjá é um dos principais e mais antigos terreiros do Brasil. Por isso, quem assume a cadeira de ialorixá no Candomblé do São Gonçalo do Retiro assume também a responsabilidade, até o fim da vida, pelo resgate de uma história da ancestralidade e da própria imagem do Afonjá fora dos limites da roça.  

No terreiro, Mãe Ana já circula com a liderança de quem foi escolhida por Xangô, num jogo de búzios interpretado por Pai Daniel Balbino de Paulo, o Obarayi, no dia 28 de dezembro. Resta observar o comportamento entre seus novos filhos e Mãe Ana para conhecer minimamente a nova ialorixá – já que ela própria prefere o silêncio.

Antes da confirmação como ialorixá, Mãe Ana era Otun Ogalá, substituta da responsável por cantar os cânticos de Candomblé nos rituais. “É só olhar para ela. Olha o carinho que as pessoas têm”, aponta o Otum Oba Olugbon (cargo substituto de oba), Diego Silva de Oliveira, 20, quando perguntado sobre quem é Mãe Ana no terreiro. Na primeira quarta-feira do ano, na entrega de Amalá para Xangô, ao final da conversa e antes de deixar a casa do orixá, Mãe Ana repousa as mãos sobre a saia vermelha e dourada, abaixa a cabeça como se para ouvir melhor os pensamentos e as ordens de Xangô e responde sobre o futuro: “As principais [sementes que quero plantar] são a conscientização e o discernimento. Acredito que irei semear isso”. 

CORREIO: Queria que a senhora contasse um pouco da sua história com o Opô Afonjá. Mãe Ana: A minha história aqui sucedeu-se com a geração da minha mãe biológica, Deyse Bispo Santos, e meu tio, Ivan de Ogum. Com isso, foi sendo construído o alicerce da minha história. Vim para cá para o Afonjá ainda pré-adolescente. Participei das atividades sociais, do coral do terreiro, sempre dando uma força, que é uma palavra forte na nossa religião. E com isso a história foi se desenhando. 

Nesse momento não esperava ser feita por um orixá. Eu esperava somar nas atividades que já existiam, não ser filha de santo. Eu interagia com esse projeto de atividades sociais. Como as coisas vão acontecendo sem que a gente consiga determinar, com o tempo chegou o momento que eu atendi ao chamado da minha ialorixá [Mãe Stella Oxóssi]. Eu vim e escutei Mãe Stella com toda obediência. Tínhamos um elo de respeito.

Ela me dizia: “Você precisa se cuidar”. Mas não dei muita atenção – mas sempre demonstrando respeito. O tempo passou e chegou a hora de eu ser iniciada. Não esperava, mas por obediência e necessidade me tornei filha de santo. Fui iniciada por ela, quando tinha, na época, 23 anos de idade. (Foto: Sora Maia/CORREIO) O que estava acontecendo na sua vida quando a senhora foi iniciada ainda jovem? Eu estava com minha vida de estudo para ter minha formação profissional, mas pela necessidade que tive fiz o orixá. Mas não foi por isso que deixei de estudar. Sou pedagoga. Mesmo porque o estudo é tudo na vida de uma pessoa. Fiz santo porque isso se afirmou pela ialorixá através de uma determinação de Xangô. 

Mas e agora, Mãe Ana, o que muda? A senhora pretende continuar como pedagoga? A vida muda completamente e eu sempre vou ouvir os conselhos da minha ialorixá. Sei também que estudar é tudo na vida de uma pessoa. Sem cultura não temos nada. Mas é Xangô quem vai determinar o que eu farei da minha vida. Tanto sim que ele determinou isso, que eu fosse ialorixá. Nesse momento estou à espera da resposta dele.

E como foi essa escolha de Xangô para a senhora?  Foi caloroso, todo mundo celebrou. Um momento muito feliz pela escolha de Xangô. Nunca imaginaria me tornar mãe de santo, porque o Afonjá aqui é um ilê milenar, com muita história. No meio de tantas Egbomis [pessoas que já cumpriram os sete anos do período de iniciação e já são mais velhas, de idade e ou permanência, na casa], eu nunca me colocaria nessa posição de mãe de santo. Mas se ele [Xangô] delegou isso para mim, quem sou eu?

O que a senhora sentiu e está sentindo hoje? Emoção, a emoção me tomou, e eu não acreditava que eu tinha sido mesmo escolhida por ele. Xangô me deu uma grande surpresa porque nunca poderia esperar que eu seria sucessora de Mãe Stella, uma mulher de tamanha vida, tanto legado, e que me iniciou na religião.

A senhora assume o Afonjá depois do ano fúnebre pela morte de Mãe Stella, mas também depois de um momento conturbado no Afonjá, depois do afastamento dela. Quais a senhora acredita que serão seus principais desafios? [Silêncio] Os desafios são coisas particulares e coisas que jamais podem sair daqui de dentro do Afonjá. Esses questionamentos só quem está dentro da casa pode saber. As minhas propostas e ações estarão voltadas para eles. Minha preocupação é realmente sobre o que será divulgado. O terreiro deve manter esse respeito. Nem tudo se divulga.  (Foto: Sora Maia/CORREIO) Desde sempre, o Candomblé é vítima de preconceito. Recentemente, nos deparamos com muitos ataques a terreiros. Como a senhora tem acompanhado e enxerga os recentes casos de intolerância religiosa?  Eu vejo isso muito pela parte da conscientização. Ninguém é obrigado a seguir uma religião única, o mundo é eclético. Por isso, é uma questão de conscientização. Quando as pessoas aprenderem, quando as pessoas aprenderem a respeitar, isso será minimizado.

Mas como a senhora percebe isso no dia a dia? Na sala de aula, por exemplo?  Os alunos têm uma visão muito ampla. Eu dialogo com eles muito tranquilamente. São questões que precisam ser divulgadas. Minha função sempre foi essa, formar alunos questionadores. Tenho certeza que em alguns deles eu planto sementinhas. Alguns não mudam, continuam pensando as mesmas coisas. Mas tenho certeza que, em alguns, eu consegui distorcer a imagem [preconceituosa] que tinham do Candomblé.

E quais são as sementinhas que a senhora pretende continuar plantando lá e, agora, aqui no Afonjá? [Silêncio] As principais são a conscientização e o discernimento. Acredito que irei semear isso.

Hoje, a senhora acredita que quais são os principais desafios do Candomblé?  Tem coisas que só agrega à nossa comunidade e cada Casa tem suas particularidades. Cada casa tem uma diretriz, uma política, não tenho nada a opinar. O que vai acontecer aqui dentro, a partir de agora, diz respeito a quem é daqui de dentro. (Foto: Sora Maia/CORREIO) O que tem sentido como nova ialorixá? [Silêncio] Tranquilidade e paz. Espero a todos discernimento. É a palavra chave para seguir essa caminhada.

Quem é a nova ialorixá  Nome: Ana Verônica Bispo dos SantosIdade: 53 anosIdade de iniciação: 23 anos Profissão: PedagogaOrixá: XangôCargo anterior ao de ialorixá: Otun Ogalá (Subsituta da responsável por cantar cânticos do Candomblé)