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Thais Borges
Publicado em 21 de fevereiro de 2021 às 06:00
- Atualizado há 2 anos
“É um autocentramento que sobra grandão”. “A dor de uma mulher fenotipicamente branca mobilizou a casa acionando sentimentos de compaixão, compreensão e acolhimento em detrimento da dor de uma mulher negra”. “Vai se revisitar, minha filha”. “Não consigo identificar, nos meus itinerários com ela, jornadas que de fato transcendam à mediocridade".
Se você não entendeu ou reconheceu nenhuma dessas frases, é possível que tenha estado em algum lugar sem internet ou televisão nas últimas semanas. Mas elas não foram escolhidas aleatoriamente. Todas foram ditas pela psicóloga e DJ Lumena Aleluia, a participante baiana do Big Brother Brasil (BBB) 21, desde que entrou no programa.
Lumena não autorizou esta reportagem, mas o CORREIO buscou especialistas em linguagem para tentar entender a forma como ela se comunica - e por quais razões ela fala de um jeito tão complicado. E, sim: se virou meme essa história de que “Lumena não autorizou”, é porque isso também diz muito sobre essa comunicação.
Nas redes sociais, não precisa de muito esforço para encontrar usuários que questionam as palavras escolhidas pela sister. “Lá vem Lumena falando difícil”, diriam alguns. Mas, afinal, o que seria falar difícil?
Academicismo Por algumas das frases, já dá para perceber que Lumena está engajada em alguma causa ou em algum grupo. Com frequência, ela discursa sobre racismo e sobre a experiência de mulheres negras.
Mas um comentário que se tornou comum entre espectadores nas redes sociais é de que as falas dela são carregadas de "academicismo". Ou seja: são frases cheias de jargões do universo acadêmico, especialmente de ambientes de pesquisa. O problema é que, no BBB, elas ficariam deslocadas.
Um dos exemplos é quando ela disse que a atriz Carla Diaz deveria "se revisitar" e ainda diz que tem "se revisitado" no programa. Para a pesquisadora Rita Queiroz, doutora em Filologia e Língua Portuguesa e professora da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), esse é um exemplo clássico do que pode ser visto como academicismo. "Tem algumas coisas como dizer que vai 'revisitar' determinado autor para contestá-lo ou corroborá-lo. Uma pessoa pode revistar a obra de Monteiro Lobato, por exemplo, porque existem muitas críticas hoje de que (a obra dele) tenha sido preconceituosa", explica. O vocabulário de alguém é construído justamente a partir do desejo de se comunicar. Ele se molda com os fluxos históricos, sociais e culturais. É por isso que as palavras podem mudar de conotação ao longo do tempo. Como lembra a professora Rita, 'lava-jato', no passado, já foi apenas o local onde se lavam carros. Hoje, tem um sentido de operação investigativa. O pau de arara, que era um caminhão que transportava pessoas de forma irregular, passou a chamar também um tipo de tortura física na ditadura militar.
"Ali, no BBB, cada um representa um papel. E o vocabulário vai se formando para uma causa. As escolhas lexicais vão marcar aquilo que eu penso, que desejo, que eu quero chamar atenção do espectador", diz.
Mistura Contudo, não é só um vocabulário rebuscado, como ressalta a professora Carla de Quadros, doutora em Letras. No caso de Lumena, há uma mistura de categorias teóricas. Para ela, não é necessariamente 'falar difícil', já que, às vezes, dá até para forçar um entendimento."É uma mistura de tudo, que não constrói sentido porque os companheiros acabam não querendo dialogar com ela pela postura de comunicação agressiva. Eu brincaria, de forma bem nordestina, que ela faz um ajuntamento 'inconsistente' de categorias teóricas", analisa Carla, que é professora titular da área de Letras e de Direito da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Para que a comunicação exista, é preciso estar em comunhão. Numa revista científica, por exemplo, é comum escutar que o autor escreve para "seus pares". Isso acontece porque são pessoas da mesma área, que estão debruçadas sobre os mesmos temas e conhecem os jargões daquele meio.
É daí que vêm palavras como atravessamento, itinerários narrativos, transcendência de mediocridades e egocentrismo. Algumas são mesmo da área da Psicologia. Outras, por sua vez, lembram bordões de militância política - especialmente quando estão acompanhados de uma postura gestual bem específica, como o dedo apontado para alguém.
A comunicação pode se tornar violenta e até afastar quem teria interesse em ouvir. Não se trata, portanto, do tipo de assunto abordado por alguém, mas da forma como se expressa.
"São questões importantes sendo discutidas ali dentro. A gente precisa do assunto, precisa da intencionalidade, mas não consegue perceber isso com as escolhas que faz", explica Carla.
Mas não é apenas o tal academicismo que pode gerar barreiras na comunicação. Na casa do BBB, alguns participantes passam pelo efeito contrário: mesmo sem falar 'difícil', não conseguem se comunicar tão bem. No fundo, a linguagem precisa cumprir um efeito, que é o de dar sentido às palavras. O caso da participante Thaís Braz chama atenção para isso. O caso de Thaís também exemplifica as dificuldades de comunicação (Foto: Reprodução/TV Globo) "Ela (Thaís) não sabia dizer da dor dela, não sabia terminar o pensamento. Por isso, a língua é extremamente significativa, porque ela nos revela e nos reúne"Para as pesquisadoras ouvidas pelo CORREIO, o academicismo pode mesmo afastar as pessoas. É uma forma de criar distância - ou de entender que alguém sabe muito e que, por isso, se torna grande. Só que isso é um mito. Se for para usar um termo do próprio vocabulário de Lumena, poderíamos dizer que linguagem "grandona" - potente, firme - é aquela que cumpre o seu objetivo, que pode ser sensibilizar, alcançar, fazer-se compreendido.
"A linguagem nos afasta ou nos reúne enquanto grupo. A adequação ao contexto faz parte de um processo de entendimento, de sensibilidade. A linguagem do convite para o nascimento de uma criança é diferente da de um velório", exemplifica a professora Carla.
Essa capacidade de adequação pode ser vista como uma habilidade. Nos políticos, é muito comum. Às vezes, uma autoridade pode ter doutorado em economia, mas, enquanto candidato a um cargo público, muda a linguagem para se comunicar com a população de forma geral.
"Me parece que, em determinados momentos, ela (Lumena) esquece onde está. É como se ela estivesse na militância, o tempo inteiro tentando convencer as pessoas de que sabe. Não virou a chave de que ela está em um programa de massa para ser entendida", pondera.
Generosidade Não é raro que o academicismo seja uma armadilha para quem entra na universidade. Há uma disputa entre se comunicar e marcar o seu espaço de formação, como explica a linguista Lisana Sampaio, doutora em Linguística Histórica e professora de História da Língua na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
O vocabulário de Lumena é até uma espécie de contraponto ao do participante Gilberto Nogueira, que é doutorando em Economia. Ainda que seja pesquisador também, Gilberto não tem as mesmas marcas de academicismo que a psicóloga baiana.
A pesquisadora cita exemplos como a situação em que Lumena afirmou que algumas pessoas da casa "pegam uma discussão social e trazem para um processo egocentrado". Em outros contextos, ela já usou palavras como 'egoico' ou mesmo 'interlocução'.
Mas quem assiste a um reality show como Big Brother Brasil pode não ter tido acesso à escrita ou ao ensino acadêmico ainda que a maioria dos espectadores fale a língua portuguesa. "O que tem acontecido com muitos falantes do português brasileiro é que eles têm lançado mão das normas cultas para excluir. Isso também é um exercício político. Quando eu preciso perguntar o que é egoico ou interlocução a uma pessoa que teve mais acessos, isso faz com que eu me sinta menos valorizada enquanto falante", analisa. Em outra situação, a psicóloga diz ao participante Lucas Penteado que "não seria palco para a performance dele". Quando Lucas pergunta o que significa ser palco, ela não diz. Para a pesquisadora, faltou, portanto, generosidade para explicar do que se tratava nesse contexto.
"A generosidade comunicativa começa com a vontade de se comunicar e de se entender. Se não há vontade de se entender, o que vem disso é violento, é silenciador. É preciso entender o fato de que você tem determinados acessos que o outro não tem", diz.
Para ela, a história de colonização do Brasil está diretamente ligada ao poder de violência da linguagem. É o que acontece, por exemplo, ao dizer a uma pessoa que ela não sabe falar ou que fala errado.
“Por isso, na construção de uma sociedade mais plural e democrática o que vale é a generosidade e o exercício constante de empatia, valores que deveriam fazer parte da nossa formação como sujeitos bem antes de adentrarmos os espaços de ensino”, completa. Glossário com expressões de Lumena Acionar sentimentos - O verbo acionar pode ter significados como fazer, gesticular, colocar em prática, ligar. Nesse caso, a expressão pode ser entendida como “gerando/provocando sentimentos de compaixão, compreensão e acolhimento” - ou, de forma mais resumida, “gerando/provocando compaixão, compreensão e acolhimento”.
Afeto - A participante costuma usar muito a palavra no sentido de carinho, camaradagem, acolhimento, ou mesmo de uma relação de amizade.
Agenciar - É um termo que vem das relações comerciais e pode indicar uma negociação. Na casa, ela já disse que Lucas estava 'agenciando uma pauta coletiva', ou seja, negociando ou construindo uma demanda com objetivos pessoais.
Autocentramento - Uma pessoa ‘autocentrada’ é aquela que está voltada para si mesma, para seus próprios interesses. O autocentramento, portanto, seria um tipo de egoísmo, em que a pessoa só pensa e olha para si.
Egoico - Conceito vem da Psicologia e está relacionado ao ego, a parte nuclear da personalidade de uma pessoa.
Fenotipicamente branca - O conceito de ‘fenótipo’ vem da Biologia e se refere às características observáveis de alguém - ou seja, à aparência física. Dizer que uma mulher é “fenotipicamente branca” significa que a mulher é vista como branca. De forma mais simples, que é uma mulher branca.
Itinerário - Um itinerário é um percurso, um roteiro. Geralmente, Lumena usa para falar sobre o caminho que a relação com algum participante tomou.
Interlocução - Comum nos estudos da linguagem, pode ser entendida como uma conversa ou diálogo.
Jornada - Também pode significar percurso, caminho. Em alguns contextos, ela se refere à relação com outros participantes; em outros, ao percurso de vida.
Narrativa - É uma história. Nos contextos usados pela participante, costumam indicar também uma ‘versão’ da história de alguém.
Pauta coletiva - A ‘pauta’ nesse sentido, é diferente do significado que tem para o jornalismo, por exemplo. Aqui, a pauta é uma demanda política. Nesse caso, ela é ‘coletiva’ porque pode se referir a uma reivindicação de um grupo específico, a exemplo de mulheres, negros e pessoas LGBT+.
Revisitar - Esse verbo poderia ser entendido como visitar novamente um lugar ou alguém. Quando ela diz que alguém deve ‘se revisitar’, tem sentido de repensar, reavaliar ou reconsiderar as próprias atitudes.
Transcender à mediocridade - Transcender pode ser entendido como superar limites, enquanto ‘mediocridade’ não necessariamente é algo ruim. Alguém medíocre é uma pessoa mediana, banal, comum. No caso, a expressão significaria ir além de uma relação mediana, superficial.
Vivência - É um termo muito comum na Psicologia e não necessariamente pode ser traduzida apenas como uma experiência. Para alguns teóricos das Ciências Humanas, a vivência tem referências no subjetivo, na experiência que deixa marcas em alguém de uma forma duradoura.