Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Wendel de Novais
Publicado em 17 de novembro de 2020 às 07:00
- Atualizado há 2 anos
Um cidadão baiano que é hipertenso e diabético, além de sofrer de dores crônicas causadas por hérnias de disco, entrou na justiça e ganhou o direito de ter seu tratamento à base de cannabidiol, extrato de cannabis, custeado pelo seu plano de saúde. O medicamento é o único capaz de amenizar as dores que atormentam o paciente, que prefere não se identificar, há 20 anos.
O plano Golden Cross se recusava a pagar o medicamento extraído da Cannabis Sativa (planta da maconha), com a justificativa de que o medicamento não possuía registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que já permite a aquisição e importação de outros remédios com princípios ativos da erva.
Leia nosso especial sobre pessoas que usam maconha medicinal no tratamento
Gustavo Alvarenga, advogado que defendeu os interesses do paciente baiano junto ao Tribunal de Justiça da Bahia explica que o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de que as operadoras só são responsáveis por pagar medicamentos registrados pela Anvisa, no caso de remédios oriundos da maconha, está em mitigação, o que facilitou o parecer positivo da justiça para sua petição. "Há um processo de mitigação desse entendimento do STJ. Hoje, considerando que a própria Anvisa permite e fornece autorização para a aquisição e importação de medicamentos com base na cannabis, não há motivação para que se proíba o uso do extrato de cannabis, que era o medicamento que o meu cliente necessitava", afirma. Gustavo é o autor da petição que obrigou plano a pagar medicamento (Foto: Acervo Pessoal) A decisão favorável ao paciente baiano foi do juiz Rilton Góes Ribeiro, da Sétima Vara do Consumidor. Ele levou em consideração a indicação da médica que acompanha o paciente, através da Cannab Bahia, entidade que, atualmente, atende 700 cidadãos, sendo que 80% são da Bahia, que necessitam dos medicamentos à base de cannabis para tratamento de problemas crônicos de saúde como dores persistentes, epilepsia, depressão e outras síndromes.
Mais casos
Como a indicação de medicamentos oriundos da maconha ainda é algo incomum no estado, não é raro encontrar outros baianos que precisaram entrar na justiça. No caso daqueles de baixa renda, o bloqueio do medicamento alternativo, em muitos casos, vem do próprio Estado que nega o custeio de medicamentos fora dos registros da Anvisa, mesmo que eles sejam oriundos da mesma matéria prima de remédios permitidos pela agência.
Esse foi o caso da pequena Rafaela Belém, 8 anos, que sofre com Encefalopatia Crônica e precisava do extrato de cannabis e teve o custeio negado pelo governo baianao. A situação fez com que Inaína Belém, 35, desempregada e mãe de Rafaela, realizasse campanha solidária para pagar o medicamento da filha. Só depois de muita luta na justiça, Inaína conseguiu, através de alvará, que o Estado pagasse os remédios necessários para que Rafaela tivesse acesso ao tratamento.
De acordo com Inaína, após o começo do tratamento, o quadro de sua filha, que usa os medicamentos há cinco anos, melhorou muito: "O medicamento fez uma diferença enorme na vida de Rafinha. Antes, ela tinha três ou quatro crises convulsivas por mês. Hoje, ela já chegou a ficar sete meses sem convulsionar. Foi uma salvação na vida dela. Sem usar esse remédio, ela teria morrido. O cannabidiol evita que ela sofra tanto como sofria e permite que ela leve uma vida de qualidade", conta O extrato de cannabis tranformou o quadro de Rafaela (Foto: Acervo Pessoal) Quem também viu a vida da filha ser transformada pelo uso do cannabidiol foi Fernanda Silva, 35, vendedora e mãe de Kelly Silva, 7, que tem Síndrome de West, uma das encefalopatias epiléticas. Fernanda foi à justiça para que o estado pagasse o extrato de cannabis para Kelly, que, há quatro anos - seis meses após começar a usar o medicamento - parou de ter convulsões que, anteriormente, chegavam a acontecer mais de quatro vezes por mês e colocavam em risco a vida da menina. "Com o tratamento feito à base de cannabidiol, depois de seis meses de uso, as convulsões pararam. Há quatro anos que ela não convulsiona mais, o que foi fundamental para que ela continuasse viva, já que as convulsões eram muito agressivas. Sem esse tratamento, acho que ela não estaria mais com a gente. Hoje, ela já anda, brinca e se sente muito bem", relata.Fernanda acrescenta que o valor do um frasco do extrato importado chega a custar US$ 250,00, o que, no Brasil, na cotação de ontem, sairia por R$ 1.357, 50. Em território brasileiro, é possível encontrar o remédio por R$ 200,00. Kelly não tem convulsões há quatro anos (Foto: Acervo Pessoal) Precedente aberto
O advogado Gustavo Alvarenga defende que o acesso aos medicamentos à base de cannabis seja facilitado para os casos em que a substância é a única esperança de tratamento para o paciente. Ele também acredita que quanto mais pessoas conseguem autorização judicial para o uso do remédio, mais precedentes favoráveis são abertos.
"O precedente é uma decisão que serve como parâmetro para deliberações futuras, em prol da luta de milhares de famílias que tentam obter na Justiça o direito ao tratamento alternativo", diz.
O advogado cita ainda a situação no Tribunal de Justiça de São Paulo, onde já existe uma súmula que garante a cobertura desses medicamentos pelo Estado e pelos planos de saúde independente do registro na Anvisa.
"A súmula que trata desse ponto define que, existindo prescrição médica para uso de qualquer medicamento extraído da cannabis sativa e existindo cobertura contratual para a doença, em tese, ele estaria obrigado a cobrir esse tratamento com base em remédios oriundos da cannabis sativa", explica.
Uso no Brasil
O uso de medicamentos à base de cannabidiol vem crescendo no Brasil. Hoje, a medicação é comprovadamente benéfica para cerca de 20 doenças, segundo pesquisas citadas por Leandro Stelitano presidente da Cannab Bahia."Hoje, no Brasil, tem mais de 10 milhões de pessoas que poderiam ser beneficiadas com esse medicamento , só considerando quem tem dor crônica. Quando você analisa que a Cannabis ajuda em mais de 20 patologias reconhecidas pela Anvisa, é só somar a quantidade de brasileiros com essa patologia que você chega em um número expressivo", argumenta.Na Bahia, mais de 500 pessoas já são beneficiadas com os serviços da Cannab Bahia que, graças a parcerias com médicos especialistas, concede consultas gratuitas para pacientes que necessitem do tratamento com remédios originados da maconha. Leandro explica que o responsável pelo abastecimento de remédios para esses pacientes é a Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança, a Abrace Esperança, localizada na Paraíba.
"A Abrace é, hoje, a única associação autorizada pela Anvisa a produzir esses medicamentos para o tratamento das pessoas com os problemas que mais demandam remédios com o cannabidiol. É com ela que fazemos parceria para indicar os pacientes, que compram por um preço muito mais acessível que o valor do extrato importado para cá", informa.
Doenças com indicação de tratamento à base de Cannabidiol:Dores crônicas:: Epilepsia Refratária; Síndrome de West; Autismo; Síndrome de Tourette; Doença de Crohn; Esclerose Múltipla; *Com a orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro