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Da Redação
Publicado em 16 de julho de 2022 às 11:00
“É de costume achar que podem fazer o que quiser com a Irmandade, afinal, somos mulheres e negras, e sabemos o país onde vivemos”. Joselita Sampaio Alves, a Irmã Zelita, uma das integrantes mais velhas da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, não está nada contente. A bronca é com a escola de samba Unidos de Padre Miguel, que decidiu usar a confraria baiana secular como tema do Carnaval do próximo ano, no Rio de Janeiro. Começou, assim, um imbróglio que parece fora do tom.
No dia 06 de julho, a agremiação carioca, comandada pelo carnavalesco Edson Pereira, postou em suas redes sociais um vídeo no qual anunciava: “‘Ave Maria Olorum - A Corte da Boa Morte’ é o enredo que levaremos para a Marquês de Sapucaí em 2023, em busca do nosso tão sonhado título”. Apesar do apelo emocional e das imagens bonitas, o registro não agradou, sendo considerado folclórico e mesmo desrespeitoso: “...o referido vídeo nos trouxe preocupação, pois diverge de como ocorrem as tradicionais manifestações da Irmandade, caracterizando falta de preocupação, responsabilidade e até respeito a nossa bissecular Irmandade”, informou, em carta aberta divulgada na última terça-feira (12).
E, se era para ser uma homenagem, também faltou combinar com a Velha Guarda. Além do registro audiovisual considerado equivocado, as senhoras afirmam que não foram sequer consultadas pela escola de samba. “Não sabemos como nossa história será contada, se nada nos foi perguntado, e sem a devida proteção às nossas tradições, não há possibilidade de consentirmos”, segue a carta.
Apesar da insatisfação demonstrada pela Irmandade, a Unidos de Padre Miguel ainda não retirou o vídeo do ar. Em nota enviada para o jornal Correio antes da carta aberta da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, a assessoria de imprensa da escola da Vila Vintém avisou: “Estamos em contato com a Irmandade esclarecendo dúvidas e alinhando a ida de nossa equipe de criação e a direção da escola, para os últimos ajustes sobre o projeto, e para conhecer o município de Cachoeira”.
Depois do documento, a assessoria da Unidos de Padre Miguel não confirmou o encontro e informou que a escola se manifestará em breve. Ainda assim, a escola de samba que faz parte da Série Ouro (segunda divisão) do Carnaval carioca, se diz esperançosa: “Estamos confiantes de que tudo será resolvido da melhor forma possível, com a certeza de que possamos fazer um lindo espetáculo na Marquês de Sapucaí, em 2023”.
Se depender das Irmãs, é melhor a agremiação carnavalesca pensar em outro tema. Quando estudar direitinho a história da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, a escola de samba vai saber que essas mulheres negras, empoderadas, descendentes de escravizados, são boas de luta.
História da Irmandade Atualmente formada por 30 mulheres negras, a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte é uma confraria feminina formada há mais de 200 anos. A instituição, cujo embrião se deu na Igreja da Barroquinha, em Salvador, muito provavelmente deslocou-se para Cachoeira em função da forte repressão aos africanos, estabelecida após a Revolta dos Malês. Conhecida como uma das primeiras representantes do feminismo negro no Brasil, a Irmandade da Boa Morte formou-se, desde o início, como força de resistência ao escravismo. Servia de capoio aos injustiçados fornecendo empréstimos para obtenção de alforrias, ajudando na fuga dos negros e negras, além de providenciar funerais dignos para sua gente. Daí, o nome "boa morte". A instituição mantém a tradição de reverência a Nossa Senhora da Boa Morte. Todos os meses de agosto, repete-se em Cachoeira a Festa da Boa Morte, na qual as Irmãs, durante três dias, prestam homenagens à padroeira, com suas roupas e cantos característicos, além de comidas típicas. Fonte: Livro ‘Bahia de Todos os Negros - As Rebeliões Escravas do Século XIX’, de Fernando Granato.
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Confira um bate-papo exclusivo com Joselita Sampaio Alves, conhecida como Irmã Zelita, uma das mais velhas integrantes da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte.
“Carnaval é festa profana”
Na carta aberta, as senhoras informam que não foram consultadas sobre a homenagem. A senhora achou desrespeitoso a falta de diálogo com a Irmandade, antes do anúncio da Unidos de Padre Miguel?
Achamos desrespeitoso, sim, e, por isso, entramos em contato com a escola de Samba.
Se tivessem sido consultadas, a senhora acredita que haveria alguma possibilidade de aceitar a homenagem?
Não é o caso ser ou ser consultada, nossa Irmandade é Religiosa e religião não tem nada haver com o profano. Seguimos tradições de mais de 200 anos, conduzidas pelas nossas Ancestrais.
O que, em específico, as preocupou no vídeo postado pela Unidos de Padre Miguel?
A falta de compromisso com as tradições das Irmandade. Sem preocupação em pesquisar e nem perguntar a quem direito.
Em nota, a assessoria de imprensa da Unidos de Padre Miguel informou ao Correio que enviará uma comissão para dialogar e apresentar a ideia da homenagem. Eles já entraram em contato com a senhora ou alguma outra representante da Irmandade? Já tem alguma reunião marcada? A senhora vai recebê-los?
As portas da irmandade estão abertas para qualquer pessoa. Eu liguei e procurei a escola, para entender como fazer uma homenagem sem nos consultar, marcamos uma reunião para uma conversa e não para acertar homenagem alguma.
A Irmandade já havia sido homenageada em algum outro momento ou já havia sido procurada para ser tema do Carnaval carioca?
Já fomos procuradas pelo Bloco Ilú Obá, de São Paulo, e, com muito respeito, para sermos homenageadas no carnaval. Já houve, no Rio do Janeiro, uma (outra) escola que colocou uma ala que falava da Boa Morte, mas não pediram nenhuma autorização. Quando vimos, foi passando na televisão, mas, com internet, no mesmo dia muitas pessoas me procuraram para perguntar se sabíamos. Pois é de costume achar que pode fazer o que quer com a irmandade, afinal somos mulheres e negras e sabemos o país onde vivemos.
A senhora acha que existe incompatibilidade entre o Carnaval e o que a Irmandade da Boa Morte representa?
Claro que sim. Representamos uma tradição de mais 200 de anos. A Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte é religião e fé, é o que sustentou por muitas décadas a dor da escravidão. O Carnaval é festa profana.
*Dona Zelita é uma das Irmãs mais antigas da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte