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Fernanda Santana
Publicado em 18 de março de 2019 às 14:35
- Atualizado há 2 anos
A primeira vez que o Multytrio, apelidado de Navio Pirata, desfilou no Carnaval foi em 2014, com a Baiana System. Chamou atenção pelo formato diferente, bem menor que o tradicional. Normalmente, o trio tem 18 metros de comprimento e quatro de largura. O Navio não passa dos 10, com uma largura de apenas dois metros. Também com as caixas de som para fora e uma cobertura metálica, representou uma tentativa de inovação na folia. Agora, por dificuldades de manutenção, o Multytrio deixará de existir. Enquanto isso, outros trios batalham por um fim diferente.
A decisão do músico Chico Gomes em criar, junto ao pai, Valter de Freitas, um trio elétrico surgiu em 2012. Queriam colocar nos circuitos um ponto fora da curva num ambiente de quase completa semelhança entre os outros caminhões eletrizados. O projeto, depois de dois anos e R$ 350 mil investidos, despertou curiosidade da produção da Baiana System. Desde então, a banda começou a alugar a estrutura para desfilar nos carnavais. Como haviam identificado no trio uma semelhança com um barco, a banda e os fãs começaram a chamá-lo Navio Pirata. Ou seja, algo fora da ordem.
Mas, os gastos com a manutenção comparados aos lucros obtidos com alugueis e possibilidades de financiamento começaram a prejudicar a sobrevivência do trio. Por mês, os 40 trios elétricos existentes em Salvador, segundo estimativa da Associação Baiana de Trios Independentes (ABTI), pagam uma média de R$ 1 mil mensal para estacionar em depósitos. Há também os custos de reparação com a estrutura e, no Carnaval, pagamento a técnicos de som. Na matemática, também é acrescentado a falta de reconhecimento dos trios elétricos. Um cálculo, às vezes, insustentável. “Eu, com minha banda [Banda Marana], não consigo bancar. Só quem consegue é uma galera como a Baiana System, bandas maiores. Rapaz, está cada vez mais insustentável para quem tem trio. Sair com o trio acaba sendo só uma oportunidade de vitrine”, comenta Chico Gomes. O mais provável é que o Multytrio seja transformado em uma estrutura completamente diferente, mais similar ao modelo Pranchão.“Parece a opção mais tranquila, transformar num carro menor, sem a cobertura com custos menores. É preciso deixar mais sustentável”, complementa.As mudanças futuras acontecem também como resultado de mudanças no próprio Carnaval de Salvador.
O número escasso de micaretas, por exemplo, é também um fator considerado. Somado aos poucos carnavais fora de época, o fato de os trios elétricos serem raramente lembrados por sua estrutura no momento da contratação.“O custo de tudo isso disparou. O artista recebe um cachê muito, muito maior que a diária do trio elétrico. Essa inversão prejudicou o equipamento que faz a festa. Porque, veja, a festa em Salvador depende do trio elétrico”, pontua Paulo Leal, presidente da ABTI. No relato de Paulo, um proprietário de trio chega a aceitar R$ 10 mil para alugar um trio elétrico para micareta. No Carnaval, o aluguel pelo poder público é orçado, em média, em R$ 20 mil. Neste Carnaval, foram 169 trios sem corda patrocinados pela Prefeitura, e 50 pelo Governo do Estado. Os acordos privados não são regidos por nenhuma regra quanto ao valor. Navegando no meio do mar de gente: Navio Pirata deve virar 'pranchão' (Foto: Evandro Veiga/ARQUIVO CORREIO) A pesquisadora do Carnaval de Salvador, Carol Fantinel, explica que é justamente o poder público quem passa a “fomentar a permanência dos trios na festa a partir da crise dos blocos”.
O construtor de trios elétricos, ex-empresário de Luiz Gonzaga e discípulo de Orlando Tapajós, fala de uma realidade insustentável.“Já cheguei a fazer quatro trios elétricos por ano. Nos últimos sete anos, não fiz nenhum. Antes, os blocos e artistas tinham seus próprios trios. Alguns blocos faliram e nós dos trios independentes ficamos restritos ao financiamento público”, acrescenta. Os custos O construtor faz um cálculo básico: suponhamos que a construção de um trio custe R$ 1 milhão e a manutenção anual R$ 20 mil. Se não há eventos ao decorrer do ano, apenas as diárias do Carnaval, como sobreviver? “Diria que é no mínimo humanamente impossível. A questão do Navio Pirata é apenas uma entre tantas outras”, responde o próprio Waldemar.
Hoje, o que ocorre com os trios elétricos é resultado de transformações no próprio modelo de negócio do Axé. É o que acredita Carol Fantinel. “[É] o declínio do modelo de negócio que deu as cartas por quase 30 anos – esse vinculado ao axé music e aos blocos de Carnaval. A partir disso a festa vem sendo reconfigurada e, por consequência, a forma como o trio elétrico aparece na festa também sofre alterações”.
Nem mesmo a Família Macedo, de um dos inventores do trio elétrico, Osmar, conseguiu manter uma estrutura própria. Desde 1995, com o fim da circulação do Trio Espacial, criação de 1988, Armandinho conta que preferem o aluguel.“É muito difícil e dispendioso manter um trio elétrico. É preciso ser um grande empresário que alugue e mantenha essas estruturas”.De 1999 a 2000, o grupo Armandinho, Dodô e Osmar até tentou adquirir um trio elétrico. Mas desistiram quando repensaram os gastos. A produção de um trio chega a custar R$ 2 milhões, a depender da complexidade. Sem contar os gastos pós-construção. Decidiram, então, recorrer à decoração do trio para manter a inventividade. O caminhão do Fobicão, por exemplo, é trazido de Aracaju para desfilar no Carnaval de Salvador.
Na opinião de Armandinho, o problema também dificulta as tentativas de inovação.“Não há como dispor de mais dinheiro para uma modificação estética. Antigamente, havia arredondado, a nave, era um apego ao formato. Depois dos anos 90, isso muda muito”, acredita.As barreiras são rompidas por poucas iniciativas, embora a memória do antigo Carnaval remonte para outra realidade.
Lá vem o Tapajós! Quando regressou de Londres, depois do exílio, em 1972, Caetano Veloso conta, no livro Verdade Tropical, ter ficado abismado ao avistar a chegada da Caetanave à Praça Castro Alves. A criação de Orlando Tapajós, homenagem ao músico recém-chegado, era apenas uma das que deixavam admirado não apenas Caetano. Os trios elétricos eram protagonistas. A inversão começa a partir de 1986, com o estouro do Axé Music, opina Paulo Leal.“Antes as pessoas se referiam aos trios elétricos. Lá vem o Tapajós, lá vem a Caetanave... Depois, os artistas ficaram maiores. O trio elétrico é o Carnaval, mas também não é considerado. Hoje, nego diz: ‘Lá vem, Ivete’. Quem é que quer ter trio?”. A pergunta fica sem resposta. O que existem, na verdade, são exceções. O construtor Waldemar acredita que qualquer criação de trio elétrico, que dirá um trio elétrico inventivo, é quase impossível. A invenção do Pranchão, em 2013, pelo movimento musical Mudei de Nome é uma dessas exceções. A ideia era justamente, como conta o músico Ricardo Chaves, “mudar algo na morosidade do Carnaval”. “Identificamos que o trio elétrico, que é uma grande invenção da Bahia, ao mesmo tempo que era fundamental estava distanciado do público. Então, trouxemos a prancha sem perder a noção de trio elétrico. Dizemos que é a nossa Fobica”, brinca Ricardo. Trio no formato 'Pranchão' da banda Mudei de Nome (Foto: Evandro Veiga/ARQUIVO CORREIO) A invenção é basicamente utilizada para as ações do movimento. E Ricardo acredita poder se tratar de um possível novo modelo num contexto de tantas dificuldades para os construtores independentes. “Um trio é muito grande e existe uma dificuldade de manter essa estrutura. O trio crescia para abrigar mais convidado. Às vezes com mais gente do que embaixo. O objetivo não é encher de gente”, acrescenta Ricardo.
A criação do pranchão sinaliza, também, outra realidade. “Não acredito que o trio elétrico deixará de ocupar o lugar de protagonista da festa. [Acontece que] a festa vem sendo reconfigurada e, por consequência, a forma como o trio elétrico aparece na festa também sofre alterações”, avalia a pesquisadora Carol Fantinel. É o contexto que, ao mesmo tempo que ameaçador, possibilita a adesão popular a novos formatos de trio. Como o Navio Pirata e o Pranchão, acrescenta Carol.
O modelo atual dos trios elétricos é mesmo colocado em dúvida.“Diria que é um filho que perdeu o poder de locomoção? Cometemos um erro, mas porque os artistas começaram a querer demais. Para isso, aumentamos muito tudo. Porque, se não fizéssemos, não iríamos tocar”, pontua Waldemar.A ABTI, inclusive, pretende juntar os 33 associados para discutir como é possível tornar os trios mais sustentáveis. A intenção é garantir, sustentavelmente, não só a sobrevivência dos trios, mas o seu protagonismo e inventividade.
*Com supervisão da editora Mariana Rios