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Marcela Vilar
Publicado em 2 de fevereiro de 2021 às 06:02
- Atualizado há 2 anos
As águas já previam que a festa de Iemanjá não teria o mesmo movimento como nos outros anos. Além da pandemia do novo coronavírus, a prefeitura de Salvador impôs uma série de medidas restritivas para evitar aglomerações na tão consagrada festa da Rainha do Mar. A muvuca na areia, a batucada dos atabaques e as flores no mar não puderam acontecer em 2021 na praia do Rio Vermelho. O respeito aos protocolos sanitários foi tanto que quase ninguém saiu de casa. Ate às 4h30, só se via às ruas funcionários da prefeitura e viaturas da Polícia Militar (PM).
O tradicional presente para a orixá Janaína, como também é conhecida, saiu do Terreiro Ilê Axé Awa Ngy, no Engenho Velho da Federação, por volta das 00h30 e chegou ao Dique do Tororó em torno de 1h da manhã. O responsável pela confecção este ano foi o Babalorixá Pai Ducho de Ogum. Todos os anos, a colônia de pescadores do Rio Vermelho escolhe um terreiro diferente para fazer o presente. Movimento foi mais tranquilo no Dique do Tororó neste ano (Foto: Tiago Caldas/CORREIO) O pedreiro Ananias, 54 anos, disse que a movimentação no Dique foi bem fraca. Ele estava no momento em que os fiéis entregaram a oferenda à Oxum, que acontece antes da entrega do presente à Iemanjá. “A movimentação foi fraquinha esse ano. Quem veio trazer o presente, veio mais cedo, para evitar aglomeração. Teve uma batucadazinha, foi maneiro, mas não demorou muito não”, narra Ananias. Tapumes interditam acesso às praias no Rio Vermelho (Foto: Marcela Villar/CORREIO) Já no Rio Vermelho, o primeiro a chegar foi o aposentado Isaías Conceição da Silva, 61 anos. Desde os 18 anos que ele não deixa de entregar as flores à orixá. Esse ano, não foi diferente. Mesmo com as barreiras físicas que não permitiam as pessoas irem à areia, ele não deixou de trazer as flores brancas. Com a promessa realizada, ele só veio agradecer este ano. “Iemanjá e Oxum já me deram tudo que eu queria, graças a Deus. Só vim agradecer mesmo. Todo ano eu venho, só não quando estou doente”, conta Silva.
A promessa que ele pediu à dona das águas se realizou, mas ele disse não poder contar. Sua relação com a divindade também é um mistério, nem ele sabe definir. Isso porque Isaías é “meio de Umbanda” e também frequentador de igrejas católicas. Porém, há cerca de cinco anos, o santo bateu. “A verdade é que a gente é escolhido. Sou de Oxalá e Oxum, mas, para entrar no azeite, tenho que pedir licença ao mel”, brinca o aposentado. Ele se define, portanto, como “mensageiro”. “Quando chega o recado, eu passo e pronto, fico na minha”, explica.
A médica Rosélia dos Santos, 57 anos, moradora do Rio Vermelho, vai sentir falta é da cervejinha no final de tarde. Ela divide a festa em dois momentos: de manhã, quando faz a oração e entrega o presente no mar, e pela tarde. “Venho mais cedo, às 4h, pego a fila, boto meu presente, faço minha oração, desço na praia, faço uma oração de novo, boto uma ajuda na casa de Iemanjá porque eles precisam pra manter a casa e depois vou em casa. Descanso um pouco para mais tarde descer, tomar uma cervejinha e apreciar a festa”, conta Rosélia. Desde 2004 que ela não perde o 2 de fevereiro.
“Tenho uma simpatia muito grande pelas religiões de matriz africana por causa da adoração aos elementos da natureza. Salvador é uma cidade onde você tem isso muito forte. Então você vai lendo, se encantando, passa a acreditar, a ter fé e aí você vem”, explica a médica. Diferente da festa que estava acostumada a encontrar, Rosélia ficou só de longe apreciando a vista e não deixou presentes. “Vim com essa intenção, mas, hoje, infelizmente não vai dar e não quero criar problema [com a fiscalização da prefeitura]. Só vim fazer minha oração e pedir a ela que dê força para gente, mais empatia, um pouco de humanidade e respeito. Quem conhece a festa, fica, num primeiro momento triste, mas, faz parte, a coisa vai melhorar. Ano que vem tenho certeza que ai ser diferente”, deseja.
No caso de Rita dos Santos, 47 anos, o kit com a oferenda para Iemanjá estava todo incrementado, com alfazema, vela e flores. Do axé, ela não deixa de homenagear a orixá. “É uma tradição de família. Todo ano, há 10 anos, eu estou aqui. É uma coisa que me deixa muito feliz na data dela oferecer”, conta Rita, que veio acompanhada da filha. Nascida em Feira de Santana, ela conta que reduziu o tamanho dos mimos por conta da pandemia. “Normalmente eu faço maior, mas, por causa da pandemia, vim com um pé atrás e outro na frente. Quando cheguei aqui, fui barrada com o presente dela, mas ela vai dar uma solução”, relata. A feirense espera entregar a oferenda em outra praia, como a de Ondina ou da Barra. Rita dos Santos, de Feira de Santana, preparou uma oferenda para entregar à Iemanjá, como faz há 10 anos. Crédito: Marcela Villar/CORREIO Turistas também vieram prestar homenagem Alguns turistas vieram a Salvador só por causa de Iemanjá, mesmo na pandemia. Foi o caso da advogada Andreia Vasconcelos, 35 anos. É a segunda vez que ela veio à festa. “É triste ver a casa dela fechada, mas é essencial que esteja, por um bem coletivo e um bem maior. Mas, isso não impede que as pessoas venham aqui prestar suas homenagens”, avalia Andreia. Ela fez uma promessa em 2020, que se realizou. Por isso, voltou este ano.
Sem flores dessa vez, ela se considera uma curiosa das religiões de matriz africana. Daí que nasceu a relação com a Rainha do Mar. “Quando fui morar em Campo Grande, que tem uma comunidade muito grande da Umbanda e do Candomblé, comecei a frequentar os terreiros e fui me aproximando cada vez mais de religiões afro. Comecei a gostar muito, sou uma curiosa”, narra a advogada, que volta para capital paulista hoje à tarde. A advogada Andreia Vasconcelos, de São Paulo, veio à festa de Iemanjá pela segunda vez consecutiva. Crédito: Marcela Villar/CORREIO Outros paulistas, só que de primeira viagem, marcaram presença na manhã de hoje no Rio Vermelho. A produtora de eventos Mariana Pavani, 38 anos, é umbandista há 32 anos: “Sou nascida no candomblé”. Ela veio com dois amigos, também devotos de Umbanda – Tatiana Cortiz, 43, e Rodrigo Zuche, 31. Precavidos, o trio deixou o presente para Iemanjá na praia de Amaralina, às 5h da manhã, antes de vir para o Rio Vermelho. A trupe aproveitou para molhar a cabeça na água salgada.
A oferenda foi um barquinho com rosas e pulseiras de igbá, que pertencia à mãe de Mariana, também devota da mãe de Oxum. “Fizemos um barquinho com flores com nossos pedidos, agradecimento e muito amor. Foi isso que a gente mandou”, narra Mariana. Foi a primeira vez que os três vieram à Bahia. O passeio foi um presente surpresa do marido da produtora. “Viemos para o 2 de fevereiro agradecer muita coisa. Esperávamos um pouco de festa, que, felizmente, não vai ter, mas, só de estar aqui, já valeu a pena. Foi para realizar um sonho nosso”, declara Zuche. Paulistas de Umbanda vieram à primeira vez para a Bahia para o 2 de fevereiro (da esq. para a dir.: Tatiana Cortiz, Mariana Pavani e Rodrigo Luche). Crédito: Marcela Villar/CORREIO. Pescadores impedidos de trabalhar Com as barreiras físicas implantadas pela prefeitura, nem os pescadores puderam descer para os barcos e ir trabalhar – muito menos entregar o presente. “A gente só queria pescar, mas não tá podendo. A gente tá emperrado aqui sem poder trabalhar. Nem passar eles estão deixando”, critica o pescador Jair Doria, 52 anos. Apelidado de “vovô”, ele pesca desde os 11 anos e sempre coloca um presente no mar para a Iemanjá. Esse ano, por conta das barreiras, não vai ter oferenda. “Esse ano a gente não vai poder botar, a gente não vai sair daqui para botar em outra praia”, esclarece.
O pescador Antônio Alves dos Santos, 72, faz parte da colônia de pescadores do Rio Vermelho há 60 anos, e também reclama do impedimento. Contudo, entende que esse ano tem que ser diferente, por conta da covid-19. “A gente não pode fazer nada, está tudo fechado, a casa [de Iemanjá] fechada também. Uma hora dessa a gente já estava movimentando. Mas, tem que ser isso aí mesmo, por causa da doença, tá certo”, pondera o pescador. Para ele, a orixá é como uma família. “É praticamente uma família, porque quando a gente está precisando de um pão, qualquer meio quilômetro de água a gente pega um peixe e já ganha um dinheirinho”, agradece Antônio, pai de sete filhos. Sobre o presente, ele disse que assim que chegar, vão colocar no mar, sem deixá-lo exposto para ser apreciado. Mariana entregou a oferenda na praia de Amaralina com pulseiras de igbá que pertenciam à mãe, também devota de Iemanjá. Crédito: Acervo Pessoal/CORREIO Restrições da prefeitura Para conter aglomerações, a prefeitura interditou todos acessos à praia do Rio Vermelho, desde a praia do Buracão até o restaurante Sukiyaki. Os tapumes ficam no local até meia-noite de quarta-feira (3). As festas também não devem acontecer. O decreto estadual que suspende shows e festas, públicas ou privadas, em toda a Bahia foi estendido até 7 de fevereiro de 2021. Por isso, esses eventos não podem ocorrer independentemente do número de participantes.
Os bares e restaurantes do bairro também só podem abrir a partir das 19h. Todos os depósitos de bebidas estão fechados e está suspensa a venda de bebidas alcoólicas em lojas de conveniências dos postos de combustível, delicatessens, padarias e similares. Além disso, os food trucks, o comércio informal, os ambulantes e os carros de som estão proibidos. O trânsito de veículos, no entanto, está liberado, sem barreiras da Transalvador.
*Sob supervisão da subchefe de reportagem Monique Lôbo