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Fernanda Santana
Publicado em 26 de junho de 2021 às 05:15
- Atualizado há 2 anos
Todos os dias, a ex-advogada Laura* tinha que cumprir o decoro para ir ao trabalho. Sempre calçava salto alto e usava roupas caras, que custavam parte do salário dela, em média R$ 1,5 mil. No caminho para o escritório, ela tinha vontade de chorar, mas não importava. Todos os dias, era preciso vestir as aparências para ser chamada de “Dra. Laura”. A frustração com um trabalho mecanizado, a pressão em escritórios, o salário abaixo do esperado e o descumprimento de direitos trabalhistas levam advogados como Laura a adoecer e abandonar a profissão. Desiludidos com a promessa não cumprida de um emprego dos sonhos, alimentada pelo imaginário popular, são profissionais que entendem ter sido enganados por um folclore - aquele do advogado rico, envolto em glamour. Nos últimos três anos, 620 advogados pediram licenciamento na Ordem dos Advogados do Brasil, seção Bahia (OAB-BA). De 2019 para 2020 o número saiu de 184 para 301. O licenciamento serve para afastamentos temporários. Uma das três justicativas para pedir a licença é sofrer “doença mental considerada curável”.
As outros duas são ter “motivo justificado”, como ir estudar no exterior, e ter “atividade incompatível com a advocacia”, como ocupar cargo político. Dos 43 vereadores eleitos em Salvador no ano passado, sete são advogados.
Houve, ainda, desde 2019, 458 cancelamentos de registro. Quando o advogado cancela o registro por vontade própria, ele só pode voltar a advogar se fizer um novo exame da ordem, exigido para bacharéis em Direito advogarem.
A ex-doutora Laura abandonou a advocacia aos 28 anos, com seis de formada e experiência em dois escritórios. Como ela, quatro amigas deixaram o setor. Uma delas virou blogueira. Outra saiu do país. Todas passaram “a detestar advogar”. Nos intervalos para buscar café na copa do escritório onde trabalhou de 2016 a 2018 ou no happy-hour, não dava outra - a pauta era o escritório.
O Ministério Público do Trabalho mostra que, de 2012 a 2020, na Bahia, três a cada dez afastamentos de advogados foram por transtornos mentais ou comportamentais, como a depressão e a ansiedade. A média de afastamentos por esse motivo cai para 4% na média de todas as profissões.
O antigo escritório onde Laura trabalhava fica na Avenida Tancredo Neves, meca dos escritórios de advocacia de Salvador, e é um dos maiores do Brasil. Na recepção, há um imponente lustre de vidro. O dono do escritório é conhecido como admirador das artes, decorando seus escritórios com quadros de grandes artistas brasileiros e estrangeiros. Aquele era o cenário onde Laura passava a maior parte do dia, vidrada no computador.
O salário do mês dependia de “bater meta”, o que, por sua vez, exigia dela até 12 horas de serviço. “Era uma coisa insana, entrava cedo e às vezes tinha que sair 22h”, recorda. Hoje, Laura tem outra profissão sem conexão com o judiciário, mas que será preservada para evitar a identificação dela. Um em cada cinco advogados ganha até R$ 1 mil Nos dois anos que passou no antigo escritório, Laura migrava de função, assim como os colegas, conforme as demandas. Lá, são atendidas 14 especialidades. Na maior parte do tempo, ela exerceu funções que considera “robotizadas”. Uma delas consistia em analisar apenas uma parte do processo e enviar as demais para outros setores. Cada um deles cuidava de uma porção do todo.
Quanto mais processos ela despachasse, maior era considerada sua produtividade e, por isso, melhor o salário. Houve meses que Laura ganhou R$ 4 mil, “a muito custo”, recorda.“Funcionava como uma linha de produção. O serviço não tinha nada a ver com o de um advogado”.Existem dois tipos de escritório: o boutique, com clientes estratégicos, e o de massa, que avançou no Brasil em 1990, com as privatizações de empresas. Nesses últimos escritórios, são atendidas causas de menor valor, como aquelas relacionadas ao Direito do Consumidor e do Trabalho, e, pela demanda alta de processos, é preciso ter mão de obra. Os dois modelos de escritórios contratam os profissionais sob o regime de “associados”. Sobre os dois, liderados por sobrenomes tradicionais no Direito baiano, recaem críticas.
Na teoria, o advogado associado se reúne a uma sociedade para, sem subordinação, atuar em causas específicas e partilhar resultados. Na prática, essa é “uma estratégia para camuflar relações de trabalho”, afirmam advogados e ex-advogados ouvidos pelo CORREIO. Em todo o estado, há 4.549 sociedades de advogados para 52.077 advogados, metade deles homens, metade mulheres, segundo a OAB. Deles, 2.116 têm carteira assinada, calculou o Ministério da Economia e Trabalho. Movimentação no Fórum Ruy Barbosa, com atividades suspensas durante a pandemia (Foto: Marina Silva/CORREIO) Laura era contratada como advogada associada, mas não lembra de ter uma relação insubordinada. A maioria dos advogados baianos - 27.737 - tem um perfil semelhante ao dela, com idade entre 26 e 40 anos. Em 2018, Laura iniciou um novo curso para mudar de área. Sentia-se desestimulada. Não se via mais como advogada, embora se camuflasse todos os dias como uma, com vestido sobre o joelho e blazer ou saia midi, blusa de botão e blazer - nos pés, sempre o salto.
No horário de almoço, na vizinhança da Tancredo Neves antes da pandemia, esse, acompanhado do terno para os homens, é o dress-code mais visto.
A OAB aprovou, em 2015, um piso salarial de R$ 3,5 mil para a categoria, mas ele serviria às pessoas celetistas - ou seja, 4% dos advogados. O anteprojeto foi enviado ao governador Rui Costa (PT). Apesar da cobrança feita pela OAB para a formulação de um projeto de lei, o governo ainda não enviou a proposta à Assembleia Legislativa, onde precisará ser votada.
Mais de 63% dos advogados ganham até R$ 4 mil. Deles, 18,95% recebem até R$ 1 mil, mostra o Advocacia em Números da OAB, que chamou os dados de "preocupantes", em 2019, quando realizou o levantamento. Advogados esbarram na 'herança familiar' Os associados raramente ascendem à condição de sócios. Não basta ter aptidão para chegar a essa posição. O caminho mais comum é o da herança familiar. Em resumo, os advogados que analisam até 150 processos por dia, como fazia Laura, não sabem se crescerão profissionalmente, com o tempo, pela produtividade que apresentarem. O crescimento é mais determinado pelo sobrenome que se tem e os contatos na agenda.
Desde o primeiro ano de formada, em 2016, Isis* quer mudar de carreira. A carga de trabalho e a impossibilidade de crescer ou abrir o próprio escritório, pela falta de dinheiro e a concorrência, são as principais causas. O estado sempre em alerta, por demandas que podem surgir em horas de lazer, desecandeou nela um quadro de ansiedade. Ela não é herdeira e pensa em estudar para concurso público ou em cursar Medicina, “só para sair da advocacia”.“Conheço seis pessoas que largaram a advocacia. Três fazem Medicina, três empreendem. Fora aqueles que estudam para concurso porque não querem advogar de jeito nenhum”, conta.O presidente da OAB na Bahia, Fabrício Castro, cita três questões que, na avaliação dele, impactam no campo profissional dos advogados. A primeira, de ordem educacional, com o surgimento exacerbado de cursos de Direito, saturou o mercado. A segunda, de ordem de crise econômica, é que o mercado não contemplou todos os formados. A terceira, a demora no andamento de processos na primeira instância e a repercussão disso na rotina da advocacia.
No cotidiano de Isis, por exemplo, ela afirma que já chegou a aguardar por quatro horas para falar com um juiz no Fórum, sem sequer saber se ele iria aparecer no serviço naquele dia. Durante a pandemia, as atividades presenciais estão suspensas. Sobre os impactos da pressão no ambiente de trabalho, Castro afirma que a OAB estimula a valorização dos advogados.“Situações como a apontada [pressão e infração de direitos trabalhistas], precisam vir ao conhecimento da OAB, para que a Ordem faça o acompanhamento correspondente”, diz.O Tribunal de Ética pode receber reclamações, mas são sigilosas.
De curso do poder à falta de perspectiva Desde o Brasil Colônia, o Direito é visto como uma profissão das elites. Os herdeiros das famílias ricas eram enviados para Coimbra, em Portugal, de onde retornavam, com pompa, para trabalhar como profissionais liberais. Eram os "doutores". “O Direito tem uma intimidade muito grande com o poder”, afirma Vander Costa, advogado e professor em cinco faculdades que estuda o mercado de trabalho da advocacia.
De tão íntima a relação entre Direito e Brasil, que esse curso é parte constitutiva da história brasileira, e se consolida, no país, como uma certeza de sucesso. No futuro, essas imagens se tornariam decalques da realidade. Até os anos 2000, advogar era, de fato, uma profissão das elites ou daqueles que conseguiam furar a bolha e se inserir no mercado. Isso porque, até a virada do século, existiam sete cursos de Direito na Bahia, o que fazia dele um dos mais concorridos, junto a Medicina. Durante quase quatro décadas, o curso era ofertado, em Salvador, apenas pela Universidade Federal da Bahia e a Universidade Católica. Com a expansão privada, isso mudou. Depois dos anos 2000, foram abertos 104 cursos na Bahia, mostra o Ministério da Educação. Hoje, há 111 deles em funcionamento - 95 privados e nove públicos. São 19.615 mil vagas a cada semestre, o que resulta numa média de 176 alunos por faculdade a cada semestre. Essa expansão encontrou uma demanda reprimida de quem queria entrar no Direito. A democratização do acesso, no entanto, não foi acompanhada de um planejamento. “Abriram-se cursos assustadoramente. E esse boom, que democratizou o acesso ao ensino superior, também nos levou a mais de um milhão de advogados sem que fosse feita uma projeção adequada do mercado”, opina Vander. O mercado, então, ficou saturado. “São pessoas que não podem se dar o luxo de falar que vão abrir um escritório e se rendem ao que aparecem. Geralmente, elas estão fora da rede de negócios e não possuem network”, avalia Vander.
"Elas" são geralmente as pessoas sem herança familiar ou dinheiro para abrir um escritório. Na Bahia, os escritórios ainda não refletem a diversidade dos formandos. Em 2019, 72% dos advogados empregados em escritórios baianos eram brancos e 28% negros.
Entre 2018 e 2019, o pesquisador, professor e advogado Carlos Henrique Silva dos Santos investigou os efeitos do trabalho precarizado sobre a saúde de jovens advogados, aqueles com até cinco anos de profissão, em Feira de Santana. O que ele encontrou foram pessoas que se viam na condição de ter alcançado o objetivo de ter um emprego em um escritório, mas não estavam satisfeitas, nem tinham perspectivas.“Com toda certeza, esse glamour que envolve a profissão é impeditivo para assumir certos problemas”, acredita.Na novela, “o advogado é rico, tem o melhor carro, a melhor casa”, compara Carlos. “Por que eu não sou assim?”, perguntam-se “esses jovens que têm necessidade de dar retorno a todos”. Durante a faculdade, Carlos se lembra de ter ouvido de um professor o conselho de comprar um carro para ir ao trabalho e evitar olhares tortos. O advogado não é um sujeito rico? Depois de formado, Carlos parou de advogar, fragilizado pelo cenário que encontrou, mas retornou após o mestrado. Dos sete entrevistados que aparecem na dissertação de Carlos, quatro queriam largar a advocacia. Uma das entrevistadas, chamada por ele de Silvia, lembrou de um dia que tinha feito 96 audiências. Trabalhou das 7h às 18h, e, quando chegou em casa, desabou sobre o sofá. Quando acordou, não lembrava de nada. No dia seguinte, o ritual foi repetido, e ela fez dezenas de audiências. Silvia foi uma das que disseram que queriam deixar a advocacia no passado. Como ainda não conseguiu, é preciso vestir as aparências todos os dias.
*Nomes foram modificados a pedido das entrevistadas.