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Bruno Wendel
Publicado em 2 de agosto de 2015 às 08:09
- Atualizado há 2 anos
É terça-feira, 14 de julho, e policiais da 3ª Companhia Independente da Polícia Militar (CIPM) realizam incursão em uma localidade de Cajazeiras. Um homem, morador do bairro vizinho de Águas Claras, é abordado pelos policiais. Leandro Santos Moreira leva consigo munições, mas o que chama a atenção é um documento de quatro folhas com 11 tópicos e um pequeno texto de introdução, de três parágrafos, dobrado em um dos bolsos da bermuda. O título, Estatuto da Katiara, é o mesmo que aparece em algumas imagens que circulam através do aplicativo WhatsApp e que já chegaram às mãos de PMs e delegados. “Comparei o documento que via circulando nas redes sociais com o que estava em poder de Leandro e é o mesmo”, contou o tenente Josuel Lopes, comandante interino da 3ª CIPM (Cajazeiras).Para marcar território, traficantes picham paredes com nome de facção(Foto: Evandro Veiga / Arquivo Correio)O estatuto estabelece diversas diretrizes que devem ser seguidas pelos membros da facção - desde critérios para novos membros até regras para empréstimos, luto, caixinha mensal e até ajuda às famílias (ver quadro no rodapé). São as determinações que regem o tráfico de drogas em vários municípios do Recôncavo e que vêm ganhando espaço em Salvador. >
A Katiara é liderada por Adílson Souza Lima, o Roceirinho, que está preso desde 2012, mas, segundo a polícia, controlava, de dentro do presídio de Serrinha, no Centro-Norte do estado, o tráfico em Maragojipe, Salinas da Margarida, Itaparica, Nazaré das Farinhas, Vera Cruz, Santo Antônio de Jesus e Santo Amaro, no Recôncavo. Desde maio, o traficante se encontra no presídio federal de Campo Grande (MS). >
CapitalEm Salvador, Roceirinho domina parte do bairro de Valéria, Águas Claras e Lobato. No último dia 24, uma chacina deixou quatro mortos – entre eles, o policial militar Osvaldo Costa da Conceição Filho, 49 anos, e o filho dele, Railander, 24, em uma chacina na localidade de Nova Brasília de Valéria, próxima à Lagoa da Paixão, antigo território do traficante Cebola, morto este ano, supostamente a mando de Roceirinho. Nas redes sociais, comenta-se que a autoria das mortes seria de indivíduos conhecidos como Pinha, Tarugo e Tcheca, da Katiara, o que não foi confirmado pela Polícia Civil. Luiz Cláudio Sena dos Santos, 27 anos, conhecido como Tarugo, morreu na madrugada de sexta-feira em um confronto com a Rondesp. A Polícia Civil confirmou que ele era um dos suspeitos, mas não atribui o ataque à facção.>
No entanto, o delegado Nilton Borba, titular da 5ª Delegacia (Periperi), disse que a chacina tinha relação com a disputa por território do tráfico de drogas entre os bairros de Valéria e Fazenda Coutos.Roceirinho seria um dos três fundadores da facção: está preso no Mato Grosso do Sul(Foto: Polícia Civil)Afirmação Para o tenente Josuel Lopes, da 3ª CIPM, o estatuto é uma forma de estabelecer alguma organização. “São grupos que, para se autointitular como grupo organizado, estabelecem regras que garantem que as quadrilhas existam de fato”, diz. O juiz Flávio Oliveira Lucas, titular da 18ª Vara Federal do Rio de Janeiro e autor de artigos sobre organizações criminosas e Poder Judiciário, analisou o documento a pedido do CORREIO. Para ele, “os princípios parecem ter sido quase copiados dos que são divulgados e atribuídos ao PCC (facção com base em São Paulo)”. Mas, segundo ele, estatutos escritos são a marca de organizações criminosas primárias. “Somente as organizações mais primárias, como as que normalmente temos aqui, é que possuem códigos de ética escritos”, aponta ele.>
O juiz explica que essas organizações não possuem uma estrutura verdadeiramente consolidada e rígida, o que leva tempo, e que os valores e regras ficam à mercê da vontade do líder. “Tome-se como base a Máfia ou a Camorra, organizações que já atuam há mais de um século e que, por terem se formado em vilarejos, acabam incorporando os valores locais e tendo-os como regras. Nelas, não há sequer necessidade de se escrever o que vale ali, pois os princípios já estão incorporados às mentalidades”, exemplifica. O diretor do Departamento de Repressão e Combate ao Crime Organizado (Draco), delegado Jorge Figueiredo, reconhece a existência do estatuto, mas pondera. “Não é uma prova de que eles estão se organizando. As pessoas no mundo virtual estão copiando a realidade de outros estados e países e tentando avocar para suas cidades”, declara ele.>
Origens O texto de introdução do Estatuto da Katiara diz que o documento foi idealizado por três integrantes, chamados de “irmãos 33, 01, 35” e que o já criado Primeiro Comando do Recôncavo passava a se chamar Katiara a partir de 16 de outubro de 2013, em “prol de trazer uma nova imagem com transparência e verdade para fortalecer o crime no estado da Bahia”. A todo momento, o grupo de criminosos se intitula uma facção e segue os moldes de outras organizações criminosas do país, com quem mantém laços estreitos: a A.D.A (Amigos dos Amigos), a maior do Rio de Janeiro, e o PCC (Primeiro Comando da Capital), em São Paulo. O juiz federal Flávio de Oliveira Lucas, que analisou o estatuto a pedido do CORREIO, disse chamar a atenção as ligações que a Katiara afirma ter com outras facções. Ele chamou de “preocupante” a notícia de que a facção vem estabelecendo contatos e parcerias com as de outros estados. Terceiro fundador da Katiara, Mamano foi achado morto em novembro do ano passado(Foto: Polícia Civil)Organizados? Apesar da existência do documento, há delegados que consideram a Katiara um grupo desorganizado. Roberto Alves, que substitui a titular Olveranda Oliveira na 13ª Delegacia (Cajazeiras), pontuou que é complicado falar em conduta de qualquer organização criminosa. No entanto, se posiciona ao considerar improvável que o grupo tenha uma coordenação eficiente diante do quadro social em que os envolvidos estão inseridos. “Eles são desorganizados, não conhecem sobre planejamento administrativo, sobre dirigir e controlar qualquer tipo de ação. É um lugar onde a pobreza é extrema e há uma exclusão das pessoas de tudo da sociedade. Fica difícil imaginar uma organização desse tipo”, analisa. >
Para o delegado Jorge Figueiredo, na Bahia não há facções, e sim quadrilhas, grupos criminosos menos organizadas. “Temos quadrilhas que tentam robustecer sua imagen, para ostentar poder, ganhar conceito. Já as facções propriamente ditas, no Rio e São Paulo, têm um estatuto onde diz a forma de atuação, um sistema bem mais complexo do que este (Katiara)”, sugere Figueiredo. A delegada de Salinas da Margarida, Isabel Sento Sé, concorda com o colega. Ela desconhecia o estatuto, embora diga que em uma ocasião, três integrantes da quadrilha foram presos na cidade e, em determinados momentos, cantavam uma música sobre a facção. “Nem sei se posso considerar a Katiara uma organização, porque eles são tão desorganizados. Mas todos esses grupos têm um código de honra e uma simbologia”, admite.>
Já o delegado titular de Nazaré das Farinhas, Marcos Maia, conta que a Katiara é fundada a partir do estatuto e que essas regras são comuns entre facções. “Começou no Rio de Janeiro, com o Comando Vermelho, depois foi o PCC, liderado por um cara que está preso e depois vieram as daqui da Bahia, com Perna, Cláudio Campanha, Ravengar, que foram criadas lá na (Penitenciária) Lemos Brito”, relata. Para Maia, chama a atenção a organização do grupo. “Quando você cria um grupo de elementos voltado exclusivamente para o crime, isso afeta o Estado de Direito. Isso chama a atenção da Secretaria da Segurança Pública porque ela sabe que existe um grupo voltado exclusivamente para as práticas criminais”, aponta.>
Reduto da Katiara, Águas Claras virou campo de guerra do tráficoAs marcas da violência vão além dos olhos assustados e desconfiados dos moradores de Águas Claras. Estão nas casas pichadas e com marcas de tiros e nas cicatrizes deixadas em inocentes, vítimas de balas perdidas da guerra entre as facções Katiara e Caveira. Desde dezembro, a região virou uma praça de guerra, onde os traficantes dos dois grupos buscam o controle total do comércio de drogas na área. Os confrontos não têm dia nem horário e há locais que a polícia não entra, segundo moradores. A zona limite entre os domínios dos bandos é a Rua Presidente Médici. O QG da Katiara é a Rua Ulisses Guimarães, diz a polícia.Duas das mortes atribuídas a essa disputa ocorreram em 4 de maio, quando os irmãos Uelder, 22 anos, e Uelbert de Jesus, 23, foram executados, com vários tiros, na Travessa Alecrim. O crime é atribuído a membros da Katiara. Uelbert seria da Caveira.>
Estatuto menciona fundadores: um morreu e outro está presoUm dos tópicos do Estatuto da Katiara faz referência à morte de um dos fundadores da facção, o 35, no dia 19 de dezembro de 2014. Os outros dois fundadores, 01 e 33, pedem que a data seja lembrada com respeito pelos integrantes. O número 35 seria o traficante Rodrigo Ferreira dos Santos, o Mamano, que era gerente de Roceirinho, encontrado carbonizado no dia 15 de novembro de 2014. Na época, com a morte de Mamano, bandidos puseram fogo em ônibus no bairro de Valéria. Segundo o delegado Lúcio Ubiracê, de Itaparica, o bandido seria o responsável pelo paiol de armas e de coletes da Katiara. Outro trecho relata que um dos idealizadores do estatuto, o 33, esteve em março de 2014 no presídio federal de Campo Grande (MS). Assim, tudo indica que o 33 seja o próprio Roceirinho, que foi transferido de Serrinha para lá em maio passado. Os advogados tentavam trazê-lo de volta para Serrinha, mas o desembargador federal André Nekatschalow negou o pedido, alegando que ele poderia reincidir em crimes. Os delegados de Maragojipe, Salinas da Margarida, Nazaré, Vera Cruz, Itaparica e dos bairros de Cajazeiras e Plataforma disseram não saber quem são os irmãos 33 e 01. Questionado sobre a identidade dos líderes, o delegado de Santo Amaro, José Antônio Costa Teixeira Alves, disse que esse era um “sigilo de investigação” e que, independente disso, o objetivo da Polícia Civil é “capturar” os envolvidos “pelos diversos crimes, que vão desde tráfico, homicídio, roubo, até organização criminosa”.Suposto “irmão 33” da Katiara, Roceirinho já teve R$ 2,5 milhões em imóveis, veículos e dinheiro bloqueados e sequestrados pela Justiça. Entre os bens estão uma casa em Jacuípe, apartamentos em Lauro de Freitas e em Aracaju, uma fazenda e diversos veículos. Em setembro de 2012, ele foi flagrado num hotel de luxo, em Ondina, com R$ 168 mil, em espécie. Também é atribuída a ele uma chacina que matou cinco pessoas da mesma família, em Barra do Gil, na Ilha de Itaparica, em 2010. >