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Alexandre Lyrio
Publicado em 1 de agosto de 2020 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
Bolinho frito no dendê garante o sustento de 2 mil baianas em Salvador (Foto: Nara Gentil/CORREIO) Um pequeno esforço e qualquer um é capaz de imaginar a praia de Jaguaribe lotada em um domingo de sol. Enquanto as pessoas usufruem do mais querido lazer do soteropolitano, a baiana de acarajé Rosemeire Santos de Souza, 50 anos, frita a iguaria uma atrás da outra. O povo se delicia da vida de sal, sol, cerveja e dendê. Meire chegava a vender R$ 2 mil em acarajés por semana. “Fora o final de semana que, às vezes, eu tirava mais R$ 1 mil”.
Agora imagine Meire sendo obrigada a deixar tudo isso para trás. Foi-se o sustento e a alegria de ver as pessoas lambendo os beiços com seus quitutes. Desde março, virou cuidadora de dois idosos, em Itapuã. Recebe por isso R$ 500 por mês, com os quais sustenta o neto, a filha deficiente auditiva, além do outro filho e da nora, que estão desempregados.
“Tô passando dificuldade. Uma conhecida me arrumou esse serviço para me ajudar. Meu filho e minha nora foram demitidos no início da pandemia. Sustento cinco bocas além da minha”, diz Meire, que além dos R$ 500 está vivendo de cestas básicas da Associação Nacional de Baianas de Acarajé, Mingau, Beiju e Similares (Abam). Desde o início da quarentena, a Abam recebe algumas doações de empresas e Ongs.
A situação de Meire é a mesma da maioria das mulheres (e alguns homens) que desempenham o ofício, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2005. No início da pandemia, todas pararam de trabalhar. Depois, elas passaram a atuar no formato drive-thru ou “pegue e leve”. Elas precisam seguir normas de distanciamento social, higienização e uso de máscaras.
Mas, segundo a Abam, das mais de 2 mil baianas que vendem seus acarajés em Salvador, no momento cerca de 80% estão paradas ou fora de seus pontos se virando como podem. As que trabalham nas praias são as mais prejudicadas. Nas duas Orlas, entre o Porto da Barra e Aleluia e entre a Ribeira e São Thomé de Paripe, são 750 tabuleiros. Essas perderam quase que 100% dos clientes e não sabem quando vão poder retornar. Angelimar, conhecida como Dona Gel, frita o bolinho em casa (Foto: Nara Gentil/CORREIO) “Algumas montaram tabuleiro na porta de casa, principalmente as dos bairros populares. São poucas que estão trabalhando por delivery. As baianas das praias estão totalmente paradas”, explica Rita Santos, presidente da Abam. O receio é de que as cestas básicas não sejam mais suficientes em pouco tempo. Com o passar da pandemia, a ajuda tem diminuído. “As doações estão escassas. Uma hora as cestas básicas vão acabar e as baianas vão ficar ao Deus dará?”, questionou Angelimar Trindade Santos Sousa, uma das diretoras da Abam.
Auxílio Muitas dizem não ter tido acesso ao auxílio emergencial do Governo Federal. Um total de 630 baianas está recebendo um auxílio de R$ 270 do Salvador Para Todos, da prefeitura. Mas, segundo a Abam, apenas as que têm o Documento de Arrecadação Municipal (DAM) tiveram direito ao benefício. “Fizemos uma solicitação para aumentar esse número de 630 e estamos aguardando uma resposta”, afirma Rita Santos (veja resposta da prefeitura abaixo).
Há 40 anos, a baiana Nelmar Gomes vende acarajé em Piatã. Desde os 10, acompanhava a mãe no tabuleiro. Hoje são quatro irmãs, todas vivem da venda dos bolinhos fritos no dendê. Com a pandemia, parou tudo. Além de não poder ter acesso à praia, Nelmar enfrenta um problema de saúde que a coloca no grupo de risco. Tem seis netos. Filho, filha e genro estão desempregados.
“As praias estão todas fechadas. Mesmo que eu conseguisse um ponto, estaria me arriscando muito. Tô dando graças a Deus que tô conseguindo as cestas básicas de Dona Rita”, agradece Nelmar. No dia 8 de abril, a Abam divulgou um comunicado clamando por ajuda. Solicitava “apoio em alimentos não perecíveis para montar cestas básicas para as baianas de acarajé e mingau, consideradas grupo de risco e que precisam ficar em isolamento social”.
Lugares vazios Muitas não tinham porque voltar a colocar o tabuleiro na rua mesmo com a liberação de drive-thru. Os lugares em que trabalham ficaram vazios com a pandemia. Estão próximas a comércios agora parados, shoppings, clubes e outros locais que perderam movimento. Caso de Sandra Nascimento Santos, 46 anos, que tem ponto na Avenida São Cristóvão, pertinho do Salvador Norte Shopping.
“Estamos sofrendo. Quando o shopping fechou eu tive que fechar também. Sem shopping, não tem movimento no meu tabuleiro”, explica Sandra, que sustenta três filhos. Com o retorno dos shoppings, no dia 24 de julho, Sandra volta a ter esperança. “Mas será que vai ter esse movimento todo? Melhorou um pouco, mas não é a mesma coisa". Sandra está entre as baianas que contraíram o vírus. Teve que parar de entregar os acarajés nas casas dos clientes por 20 dias depois que testou positivo.“Tive que me isolar. Nem o dinheirinho que eu tava tirando podia ter mais”, lembra. “Fiquei assustada porque tinha perdido colegas para a doença, mas graças a Deus fiquei praticamente assintomática”. As baianas também reclamam dos preços das matérias primas do acarajé, como cebola e tomate, além do feijão fradinho e dendê.Segundo a Abam, o aumento médio do feijão fradinho, cebola, tomate e azeite de dendê foi de 20%. “O tomate tá os olhos da cara e a cebola só tá achando de R$ 8, R$ 10 o quilo. As pessoas estão se aproveitando do momento”, critica Sandra. O camarão, o leite de coco e principalmente o azeite de dendê subiram de preço. "O azeite de dendê, que tava R$ 80 a lata de 16 litros, agora vai aumentar para quase R$ 100".
Tânia Conceição Santos, 55 anos, mora sozinha em Itapuã. Não tem como se sustentar sem os clientes do Clube dos Funcionários Públicos, em Lauro de Freitas, onde trabalha há 23 anos. “A dificuldade é muito grande. Estou vivendo com os restos do que ganhei no verão. As contas chegando e não tenho como trabalhar. As cestas básicas ajudam, mas até quando essas doações vão continuar?”.
Ela é uma das que não conseguiu receber o auxílio Salvador Para Todos, da prefeitura. “Como trabalho em um clube, não tenho DAM. Se a prefeitura pudesse cadastrar as baianas que não têm o DAM seria uma grande ajuda”. E ainda há os bairros com restrição de comércio, como o Nordeste de Amaralina, onde Rita Souto não conseguiu abrir um dia sequer durante a pandemia. “Estou 100% parada há três meses. Não adianta colocar na porta de casa porque o comércio do Nordeste está com restrição”.
As que conseguiram montar tabuleiro na rua dizem que o movimento caiu bastante. Na Barra, na esquina da Rua Marques de Leão, Elaine de Jesus dos Santos, 35 anos, viu o movimento reduzir em 60%. Fora os três meses que ficou em casa. “Muito prejuízo. Uma hora tive que sair e meter a cara para trabalhar de máscara”. O marido, mecânico, foi demitido no início da pandemia. Elaine também não conseguiu auxílio da prefeitura porque o ponto está no nome da mãe, falecida. Quem resiste? (Foto: Nara Gentil/CORREIO) Ofício de rua A antropóloga Maria Paula Adinolfi, que em 2015 participou da criação da Plataforma Oyá Digital - um trabalho que mapeou 5 mil baianas de acarajé pelo mundo - enxerga um dano ao patrimônio cultural diretamente relacionado à situação das baianas de acarajé nesse momento de pandemia. Ela afirma que, para além da questão da sobrevivência das baianas, perde-se muito culturalmente.
"O consumo pelo delivery ou de outras formas existe, mas o ofício é um ofício de rua, de esquina. Tudo o que não se pode fazer nesse momento é exatamente o que dá sentido, vida e espírito à baiana de acarajé. As baianas juntam gente em um ponto, na rua, e isso desperta os mais diversos tipos de relações entre as pessoas. São relações de vicinidade e pertencimento. Se perde muito de relações humanas quando se tira um tabuleiro da rua", acredita Maria Paula. A antropóloga do Iphan vê também um prejuízo religioso. "Do ponto de vista da religião, o mercar na rua é parte da obrigação. É sagrado! São prejuízos desses dois lados", diz Maria Paula, que escreveu um artigo sobre o assunto para o CORREIO.
Tombamento O ofício de baiana hoje é um bem cultural de natureza imaterial inscrito no Livro dos Saberes em 2005. Tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), é uma prática tradicional de produção e venda em tabuleiro das chamadas comidas de baiana, feitas com azeite de dendê e ligadas ao culto dos orixás. Dentre as comidas de baiana destaca-se o acarajé, bolinho de feijão fradinho preparado de maneira artesanal, na qual o feijão é moído em um pilão de pedra, temperado e posteriormente frito no azeite de dendê fervente. Sua receita tem origem no Golfo do Benim, na África Ocidental, tendo sido trazida para o Brasil com a vinda de escravos dessa região.
CORREIO lança campanha #colecomasbaianasdeacaraje para angariar cestas básicas A partir deste sábado (1º), dada a importância social e cultural deste ofício, o CORREIO passa a abraçar a causa das baianas de acarajé. A campanha #colecomasbaianasdeacaraje surgiu diante do apelo de muitas dessas mulheres que sustentam suas famílias com o bolinho frito no dendê e que com a pandemia deixaram de vender suas iguarias nos fins de tarde. Iniciamos nesse final de semana um projeto que engloba grandes reportagens sobre o acarajé e ações para ajudar as baianas através de doações imediatas.
Além das reportagens especiais no site e no impresso, também produzimos ações audiovisuais nas nossas redes sociais. Essa será apenas a primeira fase da campanha. Em breve, divulgaremos os próximos passos. Por enquanto, cole com as baianas e ajude depositando qualquer quantia na seguinte conta bancária (as doações serão revertidas em cestas básicas):
ABAM-Associação Nacional das Baianas de Acarajé, Mingau, Beiju e Similares. Caixa Econômica Federal Código Operação: 003 Ag: 4802 Conta corrente: 000056-1 CNPJ: 02561067000120
Da esquerda para a direita, Ivone, Jussiara, Janaína, Edna e Áurea (Foto Montagem/Divulgação) Cinco baianas morreram de covid-19: 'A baiana mais linda e guerreira' Como a maioria das baianas de acarajé, Maria da Conceição Silva Santos, 45 anos, aprendeu o ofício com a mãe. Era conhecida como Janaína porque nasceu no dia 2 de fevereiro. Sempre impecável, fazia muitos eventos e vendia acarajé na porta de casa, na rua do Japão, Liberdade.
“Mãe, porque você foi embora? Porque me deixou e levou minha felicidade”, escreveu na foto do perfil do Whatts App a filha de Janaína, Ingrid Silva Dos Santos, 25 anos, que está desempregada. "Minha mãe era a baiana mais linda que eu já vi na minha vida. A mulher mais guerreira e lutadora que conheci", exaltou Ingrid. Ela acredita que a mãe pegou covid-19 quando teve que levar o pai dela, seu avô, à uma UPA.
“Ele tava cansando e com febre, mas não era covid. Minha mãe que acabou pegando”. Dias depois, estava sentindo falta de ar e Ingrid a encontrou completamente prostrada. Do candomblé, a mãe disse à filha que tinha visto sua morte no jogo de búzios se fosse ao hospital. A filha ligou para a Samu e a informação era de que elas precisariam ir para a unidade.
Com a ajuda de duas pessoas, foi levada para a UPA dos Barris. Na madrugada, foi transferida para o Hospital de Campanha Memorial do Itaigara, onde foi intubada na UTI. “Não tive tempo de falar pela última vez com minha mãe”, lamentou Ingrid.
A saturação de oxigênio estava muito baixa. Ingrid recebia áudios diários da equipe. Janaína lutou por 18 dias, mas não resistiu. Agora, o avô de Ingrid, que é cadeirante e totalmente dependente, chama pelo nome da filha o tempo todo. “Ele sente muita falta dela. Eu não aguento ver as fotos”.
Um rápido levantamento no grupo de Whatts App das baianas de acarajé mostrou que pelo menos 12 delas foram infectadas pelo novo coronavírus. “Na verdade, poucas fizeram teste”, afirma a presidente da Abam. Assustadas, as baianas lamentam ter perdido, além de Janaína, outras quatro colegas para a doença: Jussiara, Edna, Ivone e Áurea sustentaram suas famílias por anos com o tabuleiro.
“É com pesar que noticiamos a partida de dona Ivone, moradora da Rua das Almas, baiana de acarajé, que lutou bravamente. Mulher amada por todos, humilde, bondosa, e que ajudava a todos que precisavam dela”, escreveu o blog Cidade Nova News.
Conheça abaixo quem eram as cinco baianas que morreram. Na quarta-feira, enquanto despachava quitutes para clientes, a baiana Rosemeire Barreto, 39 anos, que trabalha na Avenida Paulo VI, na Pituba, lembrava com carinho da amiga Ivone, da Cidade Nova.
Foi quando uma moradora parou na esquina da Rua Rubem Berta para pedir um acarajé e resolveu participar. “Oxe, não conheço ninguém que morreu de covid”. Logo, o pequeno grupo de clientes e amigos diante da banca de Meire começa: “meu vizinho de 40 anos morreu semana passada”, falou um cara que segurava um capacete.
“Na minha rua, foram dois”, disse a menina sentada, parando de olhar o celular pra contar. “O meu vizinho de prédio morreu. Novo, novo”, disse um terceiro. Meire, ao entregar o pedido da moça, foi gentil com sua cliente. “Acho que o que você teve foi sorte”.
Quem eram as baianas de acarajé que não resistiram à covid?
- Maria da Conceição Silva Santos (Janaína) – Fazia eventos e vendia na porta de casa, na rua do Japão, Liberdade
- Edna Nascimento dos Santos - Baiana tradicional da Lavagem do Bonfim e outros eventos. Mãe do mestre de capoeira Costa Rica
- Jussiara Santos – Tinha ponto no fundo do Supermercado Atakarejo, na Cidade Baixa
- Ivone – Muito querida no bairro da Cidade Nova, onde mantinha um ponto de acarajé movimentado
- Áurea Moreira da Silva – Tinha ponto tradicional de acarajé na praia de Piatã
Baianas nunca foram proibidas de trabalhar, diz prefeitura Apesar de serem enquadradas como trabalhadoras informais e de os ambulantes estarem impedidos de atuar desde o início da pandemia, a Secretaria Municipal de Ordem Pública (Semop) afirma que os decretos municipais nunca proibiram as baianas de acarajé de trabalhar. Tanto que, diz a prefeitura, a presença delas nas ruas não tem sido motivo de apreensão de mercadorias.
A Semop afirma que há apenas uma fiscalização no uso das máscaras e distanciamento social para evitar aglomeração, além de higienização. A proibição só existe nos bairros que passam por restrição no momento.
Sobre o fato de nem todas as baianas terem tido acesso ao auxílio de R$ 270 do Salvador Para Todos, a Semop informou que foi realizado um cadastro para os trabalhadores informais no período de 20 de março a 30 de abril. Entendendo que as baianas de acarajé também fazem parte desta categoria, elas tiveram o mesmo direito que todos.
A Semop não informou se estuda a ampliação do benefício para além das 630 baianas que estão recebendo o auxílio. “Era necessário as seguintes cópias de documentos: RG, comprovante de residência, DAM pago e uma foto do local e espaço de trabalho”, diz nota da Semop. “Ressaltamos que a cidade é muito extensa e temos um grande número de ambulantes, entretanto a Prefeitura vem fazendo um grande esforço em auxiliar os vendedores cadastrados no pagamento desse auxílio”, explicou.
Feira de Santana Segundo a Abam, 2 mil baianas desempenham o ofício atualmente em Salvador. A prova de que o problema extrapola os limites da capital baiana é um áudio que circula entre as vendedoras do bolinho. No áudio, a baiana Ana Maria do Vale Silva, 63 anos, pede socorro. Ela diz que as comerciantes de Feira de Santana também precisam de ajuda. No seu caso, específico, ela diz que está vivendo da contribuição de conhecidos.
“Sou baianas há muitos anos. Hoje não tem como a gente trabalhar. Estamos passando uma situação muito difícil. Não temos ajuda nenhuma. Estou vivendo da ajuda de pessoas que me conhecem”. Dona Ana pede cestas básicas à Abam e à presidente da associação, Rita Santos. “Peço à senhora que se possível olhe pra gente. Se puder dar uma cesta básica. Não sou aposentada, não tenho ajuda nenhuma. Lhe peço encarecidamente porque a minha situação tá muito difícil. Não tenho nada, nada, nada. O prefeito daqui nem uma cesta básica ele deu”.