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‘Enquanto vivo você estiver, faça a sua parte. Ou seja, escreva’

Querida Cidade, novo romance de Antônio Torres, revisita a memória e as referências literárias do autor; leia entrevista exclusiva

  • Foto do(a) author(a) Kátia Borges
  • Kátia Borges

Publicado em 11 de setembro de 2021 às 16:00

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: divulgação

Após quinze anos, o baiano Antônio Torres retorna ao mercado literário com um novo livro, Querida Cidade, seu 12º romance, nascido dentro de um sonho. Jornalista, publicitário, romancista, cronista, contista, estreou na literatura com Um Cão Uivando para a Lua, em 1972 e, desde então, sua obra tem tido sucessivas edições e traduções, tendo já alcançado mais de 20 países. 

Na Academia de Letras da Bahia, Torres ocupa a cadeira de número 9, que pertenceu a João Ubaldo Ribeiro, e na Academia Brasileira de Letras, a de número 23, sucedendo, entre outros, Machado de Assis. Nesta entrevista, exclusiva para o CORREIO, conversamos sobre pandemia, literatura e leveza.

Querida Cidade marca o seu retorno ao mercado literário com um romance inédito após 15 anos, muito embora sua presença tenha sido muito forte ao longo de todo este período. O que considera determinante na decisão de fazer este lançamento em momento tão significativo em nosso país e no mundo?

 O determinante em Querida Cidade foi o seguinte: uma imagem na cabeça, essa que está belamente refletida na capa do livro na ótica do artista gráfico Leonardo Iaccarino, e... fé nas teclas! A decisão de lançá-lo agora foi da editora Record, o que, no princípio, me deixou um tanto apreensivo, pois todos os meus lançamentos anteriores se fizeram com muita movimentação – noites de autógrafos em livrarias, presença em festivais literários, palestras em universidades etc. -, o que hoje é impensável. Mas fui tranquilizado quanto a isso: ao contrário do que se esperava, a pandemia levou os brasileiros a comprarem mais livros. Já estou recebendo sinais de que a editora estava certa.  

Seu novo romance nasceu de um sonho.  Gostaria que comentasse essa ligação onírica com a criação literária. Este foi um episódio único ou há outros “gatilhos” criativos curiosos em sua obra?

 Querida Cidade é o meu 12º. romance e o segundo que escrevo a partir de um sonho. O primeiro foi Um táxi para Viena d’Áustria, de 1991, que já está na 9ª. edição. A ideia de Um táxi... me veio ao sonhar que havia matado um amigo, o que me levou a fazer psicanálise, quatro vezes por semana, durante 4 anos, para saber que violência era aquela que carregava dentro de mim. A busca pela resposta ultrapassou o processo de escrita do romance – só vim a dar a terapia por concluída ao criar coragem de mostrar à analista o primeiro capítulo de outro – O Cachorro e o Lobo –, que ela me devolveu no dia seguinte, com o seguinte veredito: “Estas são as páginas mais bonitas que você já escreveu”. Respondi-lhe que, em sendo assim, eu iria parar com a análise. Ela concordou. Mas aí não consegui fazer o romance avançar. Até ir a Roma, para o lançamento da tradução italiana do Essa Terra, e lá dizer, na Universidade La Sapienza, que talvez o que esse velho mundo estivesse precisando era de uma boa e velha história bem contada. O que agradou muito ao meu anfitrião, o professor Ettore Finazzi Agro. Na volta para casa, com aquela frase em mente, consegui botar O Cachorro e o Lobo para Andar. Em resumo: primeiro, um sonho me levou a um romance, que me levou ao divã de uma psicanalista, o que me levou a outro romance. Quanto ao Querida Cidade, a capa dele dá um toque sobre o que sonhei.        Seu romance, e isso é dito ao término, nos créditos, foi iniciado em agosto de 2009, concluído em fevereiro de 2020, um mês antes do início desta interminável quarentena, e revisado em fevereiro do ano seguinte. Que eventos acredita que o atravessaram nesse processo?

 A meu ver, o que atravessa todo o romance é um feixe de imagens batidas pelo tempo, com uma trilha sonora na qual se inclui Dolores Sierra, aquela que dizia que quem nasce na roça tem sempre a ilusão de viver na cidade.

Ainda sobre atravessamentos, impressiona a quantidade e diversidade de referências, que vão de Dante à astróloga Claudia Lisboa, com bela reverência a dois poetas considerados pioneiros do modernismo na Bahia, Eurico Alves e Sosígenes Costa. Como se dão, ao longo do processo criativo, essas articulações que imagino serem orgânicas?

As referências – por vezes reverências, sim -, foram surgindo ao correr das teclas como se fossem galhos nos quais eu pudesse me agarrar para não naufragar, junto com o meu personagem, o tempo todo postado numa situação-limite em meio às águas do tempo em que nós dois nos vemos. Querida Cidade é um romance que nasceu sem um enredo predeterminado, me exigindo que deixasse a imaginação correr no mais azul de todos os delírios, conforme o verso que me veio como um farol do baiano Sosígenes Costa, cuja estatura me foi revelada num livro de Gerana Damulakis. Quanto a Eurico Alves Boaventura, este merece muitos tributos. Refiro-me ao meritíssimo juiz de Direito nascido em Feira de Santana que em 1959 foi transferido da comarca de Canavieiras para a de Alagoinhas, cidade que, ao saber que o doutor Eurico era um poeta, dele se tornou íntimo, para nunca mais ler poesia da mesma maneira. A ele fiquei devendo a descoberta de Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Godofredo Filho, ou seja, do modernismo. O escritor gruda tudo, dizia Scott Fitzgerald. Em Querida Cidade grudei muitos dos meus santos e santas de cabeceira. E se contar aqui o que o poema de Maiakovski citado no livro me traz, é capaz de você exclamar: “Ah, isso dá outro romance! ”          

Falamos em quarentena, como vê esse período? Como lidou com o espanto de ver-se em meio a uma pandemia em pleno século 21?

Estou confinado aqui em Itaipava, na região serrana fluminense, desde o dia 12 de março do ano passado. No começo, a perplexidade foi tamanha que me levou à inação. Tudo o que conseguia fazer era pegar na caixa do correio aqui de casa o jornal que chega sempre às 7 da manhã, colher limões no quintal, subir e descer uma escada ao lado da casa várias vezes, e depois passar o resto do dia ligado catatonicamente na Globo News. O efeito paralisante do noticiário começou a ser quebrado a partir da entrada em cena do novo normal, ou seja, a primeira live, promovida pela Universidade de Mato Grosso em conjunto com a USP. O resultado foi francamente animador: passou dos 900 participantes, exultou a professora Walnice Vialva, a coordenadora do evento, acrescentado: “Isso corresponde a um grande auditório lotado”. E aí os convites foram chegando, um atrás do outro, até do Chile, da França, de Portugal. E logo a Academia de Letras da Bahia, a Uneb e a Uefs entraram na onda, com força total. E agora, com o lançamento de Querida Cidade, acordo me perguntando: ‘A que horas mesmo vai ser a live de hoje?’  Mas quando saio dessa bolha, a pergunta é outra: ‘Até quando vamos ter de viver assim, a evitar as pessoas, a temer contaminações, a contar ausências?’ Mas não se esqueça – me digo agora –, do que dizia o cego cantador de Querida Cidade: “Mais fortes são os poderes da imaginação”. Como quem diz: enquanto vivo você estiver, faça a sua parte. Ou seja, escreva. Querida Cidade é o 12º romance de Antônio Torres (divulgação) Em entrevista feita pelo saudoso João Carlos Teixeira Gomes, em 2000, com uma introdução belíssima, ele relembra o período em que o senhor trabalhou como jornalista no Jornal da Bahia, nos anos 60. Refaço a pergunta que abre o texto. O jornalista faz (fez) o escritor?

O escritor aqui começou a ser feito com as primeiras leituras em voz alta, na escola da sua infância. E logo se viu convocado a escrever as cartas dos apaixonados do lugar e das mulheres cujos maridos haviam migrado para o sul do cacau (sou do sertão, modéstia à parte, como diria Glauber Rocha). Depois, no Ginásio de Alagoinhas, meteu-se a fazer um jornalzinho, junto com uma turma muito criativa. O que fez o doutor Waltinho Robatto lhe dar espaço para escrever no seu Alagoinhas Jornal, no qual foi lido por um borracheiro chamado Mário Alves (de quem Emiliano José, hoje meu confrade na ALB, conta a história, em seu livro Galeria F – Lembranças do Mar Cinzento, segunda parte), e o leva para o Jornal da Bahia, pois era amigo (ele, Mário Alves) do seu dono, João Falcão. E ali, de dezembro de 1959 a janeiro de 1961, eu iria ser adestrado por um ficcionista, o inesquecível Ariovaldo Matos, e dois poetas, João Carlos Teixeira Gomes e Jeovah de Carvalho. Do JBa pulei para a Última Hora de São Paulo, cidade onde vim a me tornar redator publicitário. Acrescentemos a isso muito ir e vir pelo país e pelo mundo, muita leitura – dos clássicos para me embasar, e dos contemporâneos, para me reciclar -, mais o convívio com o poeta português Alexandre O’Neill - que conheci em Lisboa num dia de julho de 1965 e ficamos amigos para sempre. 

Alguns críticos sinalizam que estamos vivenciando neste momento na literatura brasileira uma espécie de retorno ao estilo regionalista-memorialista. Considera tal rótulo prejudicial aos escritores? Concorda que há um retorno a essas temáticas no cenário literário nacional?      

O que se quer dizer com esse retorno às temáticas regionais? Tudo o que seja ambientado fora do eixo Rio-São Paulo? Se for isso, os escritores da Bahia estão marcando uma forte presença no mapa literário do país, o que já vinha acontecendo antes mesmo do extraordinário sucesso de Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior, ao mesmo tempo uma grande realização literária e um campeão nacional de vendas, salve ele! Assim por alto, lembro Nhô Guimarães, publicado pela Bertrand Brasil em 2006, no qual Aleilton Fonseca nos remete às origens de um universo real que se tornou lendário, no grande sertão das memórias, e numa prosa cheia de beleza e apuro formal. Em 2016, Franklin Carvalho, baiano de Araci, ganhou o Prêmio Sesc de Literatura com Céus e Terra, de cara saudado com entusiasmo pelos gaúchos Cíntia Moscovich e Luiz Antonio de Assis Brasil. A pegada forte de Franklin conquista o leitor já na primeira frase: ‘Quando eu tinha doze anos, fui ajudar a tirar um homem da forca. Encontrei-o morto e acabei morrendo também’. Nascido em Gavião, educado em Feira de Santana, e profissionalizado no Rio de Janeiro, o premiado contista Luís Pimentel regressa literariamente aos seus pagos com Danação, de 2018, um romance de ritmo ágil, expressivo, danado de bom. E se as narrativas com cenários metropolitanos regionais cabem na mesma catalogação, incluamos nela As Meninas do Coronel, do soteropolitano Aramis Ribeiro Costa. Trata-se de um romance magistral, com iconografia e trilha sonora da cidade de Salvador na década de 1950. Há mais e mais, com certeza, mas esses casos aqui citados já dão uma ideia da floração de imaginários – copyright para outro baiano, Jorge de Souza Araújo – que deve estar acontecendo na nossa Bahia e pelo Nordeste acima, assim como em outras regiões. Como diria Graciliano Ramos, como se pode criar limitações para essas coisas?                 

Há uma frase sua que muito me agrada, “passarinho voa porque é leve”. Mas como o senhor definiria esta leveza necessária em tempos de tanta dureza?

 Ontem à noite li num romance do pernambucano Maurício Melo Júnior, Não Me Empurre Para os Perdidos, recém-publicado pela Cepe Editora, de Recife,  uma definição perfeita para esses tempos de dureza: “Estou no quarto, no escuro. A janela mostra-me a solidão do mundo”. Hoje, ao acordar e abrir a janela dando graças à vida, tendo também a sua pergunta em mente, me lembrei da leveza da alma imortal de Castro Alves a adejar pelo infinito, qual branca vela na amplidão dos mares.  Então pensei que ela, a leveza, é um estado de espírito que a literatura e toda forma de arte nos ajudam a conquistar.