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Thais Borges
Publicado em 18 de dezembro de 2021 às 11:00
- Atualizado há 2 anos
Na fala dos moradores, um mesmo elemento se repete: “nunca antes”. Nunca haviam visto nada remotamente parecido com os impactos provocados pelas enchentes da semana passada nas cidades do Extremo Sul da Bahia. Não tinham lembrança de tanta água - no céu, nos rios ou nas ruas. Nunca se sentiram vulneráveis como agora, com 14 mortos e 21.564 desalojados. Cerca de 300 mil pessoas no estado foram afetadas pelas chuvas iniciadas em novembro.
Mas é desse mesmo fator comum que decorre um questionamento importante: é possível evitar que novas tragédias assim se repitam no futuro? Porque essa é uma realidade que deve ficar cada vez mais frequente, especialmente devido às mudanças climáticas, segundo os especialistas ouvidos pela reportagem. “Antigamente, para ter um evento extremo como esse, demorava muito. Agora, num período de dez anos, você tem seca extrema, chuvas extremas, El Niño extremo. Todos os anos, a gente bate recordes do ‘pior dos últimos anos’ a ponto de ser muito repetitivo ouvir isso”, analisa a engenheira ambiental Juliana Neves, professora de meteorologia e climatologia da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e mestra em Clima e Ambiente pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Até então, essa era uma região sem desastres naturais. A média de chuva para Itamaraju, por exemplo, durante todo o mês de dezembro era de 142mm. Dessa vez, em apenas quatro dias, foram 500mm de precipitação.
“Moro aqui desde que nasci e nunca aconteceu nada assim. Minha casa fica a uns 10 metros do Rio Jucuruçu e nunca chegou a esse nível. Tudo foi muito rápido, no susto. Quando começa a chover agora, o pessoal fica assombrado, porque ainda está limpando as coisas. Tudo está muito recente”, diz a assistente de saneamento Adrineia Andrade, 43 anos, moradora da localidade de Baixa Fria, em Itamaraju, uma das cidades mais atingidas.
Prevenção O drama no Extremo Sul tem particularidades. Entre as 25 cidades que tiveram situação de emergência decretada pelo governo estadual nos últimos dias, há algumas que lideram rankings importantes. Três delas estão, por exemplo, entre as dez que têm o maior percentual de população indígena da Bahia, em comparação ao total de habitantes (Santa Cruz Cabrália, Prado e Porto Seguro). Já Itamaraju tem o maior rebanho bovino do estado, com 169 mil animais em 2020, de acordo com o IBGE. Por isso, a situação dos animais pode ser considerada catastrófica.
No entanto, ao redor do mundo, a experiência de países com seus próprios eventos extremos naturais mostra que é possível trabalhar para prevenir seus efeitos - ou, ao menos, mitigá-los. O Japão, por exemplo, mesmo sem a riqueza de recursos naturais que o Brasil, é reconhecido por sua capacidade de reconstrução. Ainda assim, um dos dias mais marcantes da história japonesa é recente é 11 de março de 2011, quando o país chegou a enfrentar um terremoto, um tsunami e um acidente nuclear na data considerada a maior tragédia do país após as bombas de Hiroshima e Nagasaki, na 2ª Guerra Mundial.
Aqui, porém, falta planejamento desde os primeiros momentos em que as cidades começam a se erguer, segundo o engenheiro civil César Ribeiro, professor de Engenharia da Unifacs. “No momento atual, tudo fica mais grave ainda porque as mudanças climáticas estão mais presentes na pauta. Mesmo que os eventos não sejam tão grandes,as pessoas já começam a sofrer com as consequências”, analisa.
Entenda alguns dos principais aspectos que devem ser observados para a prevenção de desastres
Falta de atenção e monitoramento afeta estradas
Ao menos 12 estradas que dão acesso aos municípios afetados pelas chuvas, inclusive as pontes nelas, foram atingidas - dessas, oito são federais (as BRs) e quatro estaduais (BAs). O número de pontos com problemas, no entanto, era de no mínimo 18.
Segundo o engenheiro civil César Ribeiro, professor de Engenharia da Unifacs, todos os anos, estradas se rompem no Brasil devido às chuvas."A estrutura é precária, não é modernizada e não tem manutenção. O solo não tem nenhum critério técnico rigoroso que possa controlar as áreas de infiltração, ou seja, aumenta a possibilidade de eventos desastrosos. As cidades estão se avolumando e cada vez mais as áreas verdes são suprimidas", lista. Para ele, é preciso pensar em formas de mitigar os efeitos desses eventos extremos, uma vez que as cidades já cresceram sem planejamento e, como acredita, isso não deve mudar na maioria delas. "A gente não tem cidades treinadas para isso, não tem sistema de alerta, não tem identificação de para onde mandar as pessoas. Salvador começou a fazer isso, já tem sistema de alerta (em áreas de risco) e acho que vamos começar a falar mais disso porque esses eventos vão ficar mais próximos".
Na avaliação do professor, não é um problema, por exemplo, dos materiais usados nas obras de infraestrutura, que seriam mais vulneráveis. "A questão é o corte de recursos, porque se faz da forma mais barata, não da mais segura. É um país que não tem cuidado, não tem fiscalização nem observação das normas escritas", aponta, citando também a falta de investimento em órgãos de monitoramento, como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que cogitou desligar o supercomputador que monitora a estiagem por cortes de verbas este ano. "Estamos vivendo o advento de um país que abriu mão de monitorar suas florestas, suas águas. Isso traz consequências a nível nacional, estadual e municipal, que é quem sofre mais".
Em nota, a Secretaria de Infraestrutura da Bahia (Seinfra) informou que vem realizando ações emergenciais nas BAs. O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) e o Ministério da Infraestrutura também disseram que estão mobilizados e atuando nos locais prejudicados nas BRs. Na maioria dos pontos, as vias foram recuperadas e o tráfego foi restabelecido.
Cooperação pode reduzir impactos ambientais
As enchentes foram provocadas por dois fenômenos distintos que se juntaram: a zona de convergência do Atlântico Sul, que leva umidade e chuvas a estados como o Rio de Janeiro (mas dessa vez foi mais ao norte), e um ciclone que se formou no Atlântico Sul. Para completar, o mundo está no meio de um ‘La Niña’, um fenômeno natural de resfriamento das águas do Oceano Pacífico de forma anormal. No Nordeste brasileiro, isso já significa mais chuvas. "O que não é comum é que um ciclone se aproxime tanto da costa brasileira nessa época, nessas proporções. Quando ele se formou, vimos que era um dos maiores acontecendo no mundo naquele momento", diz a engenheira ambiental Juliana Neves, professora da UFSB. Para ela, mesmo que existam centros de monitoramento, há situações que não podem ser previstas com muita antecedência, já que alguns eventos acontecem muito rapidamente. E, de fato, com as mudanças climáticas, eles devem ficar cada vez mais comuns. "Além de remediar, as novas construções ou cidades precisam ter tecnologias sustentáveis e já serem preparadas para essa realidade".
De acordo com a professora, o próprio acontecimento do ciclone nessas configurações é um indicativo das mudanças climáticas. "Nós tivemos uma série de enchentes no continente europeu, principalmente na Alemanha. Na América do Sul, tivemos tornados muito próximos. O oceano e atmosfera estão conectados", afirma.
Como o aumento da temperatura já tem provocado essas situações, ela defende uma tentativa de não causar tantos novos impactos - algo que depende, inclusive, de uma organização política, econômica e social a nível mundial. "O sistema econômico não vai parar, porque a gente precisa comer, viver, se movimentar. Mas se já sabemos que tem um impacto sendo gerado e mais impacto ainda vai ser, seria interessante uma cooperação para que ele seja reduzido", acrescenta.
Precisando de doações, famílias falam da lição de deixar logo as casas
As mais de 233 mil pessoas afetadas pelas enchentes foram pegas de surpresa. Nesta última semana, foi o momento de retornar às casas e ver o tamanho do estrago. A assistente de saneamento Adrineia Andrade, 43, perdeu todos os móveis planejados da cozinha e do quarto da filha, em Itamaraju.
Só salvou alguns eletrodomésticos porque conseguiu colocá-los no alto de outros móveis, já que a água chegou a 90 cm de altura na casa. Ela, assim como os pais idosos que moram na mesma rua, foram ficar na casa de irmãs que moram em uma área mais alta. A rua onde Adrineia mora, em Itamaraju, ficou debaixo d'água (Foto: Acervo pessoal) "Era um sentimento de deixar sua casa sem saber o dia que ia voltar, se ia voltar. Retornei terça (14) primeiro para tirar toda a lama. Na casa da minha mãe, tivemos que tirar de enxada. Fica o aprendizado de ver a água e já sair", completa. Também em Itamaraju, mas no distrito de Nova Alegria, o professor Clécio Ribeiro, 38, viu a família perder tudo da casa onde vivia. "Nunca achamos que a água chegaria onde minha mãe morava com meu irmã e duas sobrinhas crianças. Acabamos perdendo tudo. A casa de minha mãe tem até rachaduras. está trincada. Precisamos muito de apoio para restituir isso novamente", diz.
Para fazer doações às famílias afetadas pelas chuvas, uma das alternativas é a campanha S.O.S. Sul da Bahia, que tem recebido alimentos, água, roupas e cobertores no piso L2 do Shopping Paralela, no espaço entre as lojas Centauro e Youplay. O Esporte Clube Vitória também vai receber donativos neste sábado (18), no estádio de Pituaçu, durante a partida contra o Fluminense-PI pela final da Copa do Nordeste sub-20, que começa às 17h30.
Até este domingo (19), também é possível fazer doações através da Ação Salvador Solidária, na Loja Queremos Doar, no Shopping da Bahia; na sede da Limpurb, na BR-324; e no drive-thru na Defesa Civil de Salvador (Codesal), na Avenida Mário Leal Ferreira (Bonocô), das 8h às 17h. Há ainda a opção de fazer pela internet, através do site www.queremosdoar.com.br.
Comunidades indígenas se mobilizam para ajudar
Como algumas das cidades do Extremo Sul estão entre as que têm maior percentual de população indígena da Bahia, pelo menos 25 comunidades da região foram impactadas, de acordo com o levantamento da Secretaria de Promoção da Igualdade do Estado (Sepromi), que tem feito distribuição de cestas básicas.
Mas, de acordo com a liderança indígena Thyara Pataxó, da Aldeia Novos Guerreiros, em Porto Seguro, a maioria dos territórios ainda tem problemas para se reerguer. Algumas das famílias perderam tudo."A maior parte do território Ponta Grande, por exemplo, é próxima a rios, lagoas e brejos. Elas foram tomadas pela água. A maioria das casas é de barro, então, quando começou a chover forte, o barro foi amolecendo", conta. Algumas famílias perderam tudo e tiveram que deixar suas casas nas comunidades (Fotos: Reprodução) A prioridade dos grupos foi retirar as famílias das localidades de risco e abrigá-las em escolas. Só na Aldeia Velha, eram 18 famílias desalojadas - principalmente as que moravam próximo aos rios -, mas o total fica em torno de 60. "É um sentimento de ansiedade, preocupação e medo, porque algumas famílias não queriam sair de suas casas. Por mais que a gente queira ajudar, também compreende o apego que elas têm às suas casas", diz.
Durante esses últimos dias, as lideranças têm percorrido as comunidades para levantar os problemas enfrentados nos territórios. "A água aqui chegou a um nível muito alto, nos nossos joelhos. Estamos arriscando nossa vida, porque aqui tem muita cobra, mas, se a gente não fizer nada, ninguém faz".
"A ajuda das pessoas está sendo muito importante, por isso, pedimos que continuem as doações. Mesmo que não seja para a gente, mas para as comunidades nas cidades. A gente se sente de mãos atadas", completa Thyara. Ao longo da semana, grupos indígenas trabalharam para reconstruir uma das pontes que caiu e dava acesso às Aldeias Caciana e Meio da Mata. Desde as chuvas, elas estavam isoladas. "As comunidades ficaram ilhadas e nos reunimos para construir. Como tínhamos madeira morta na comunidade, serramos e fizemos. Não poderíamos ficar esperando, porque precisávamos urgentemente", diz o cacique Alfredo Ferreira, presidente do Conselho da Terra Indígena de Barra Velha.Para fazer doações para o povo pataxó, é possível usar o pix (73) 99865-0523.
Com mais de mil animais atendidos, desastre indica necessidade de políticas públicas para animais
Desde o primeiro dia de chuva, milhares de animais morreram - de todas as espécies domésticas possíveis: gatos, cachorros, aves, porcos, gado e por aí vai. Ainda não é nem possível contabilizar tudo, segundo a médica veterinária Ilka Gonçalves, presidente da Comissão de Bem-estar Animal do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado da Bahia (CRMV-BA) e integrante do Grupo de Resgate de Animais em Desastres (Grad). Ao menos 14 profissionais voluntários estão na região e já atenderam mais de mil animais.
"Hoje, nossa maior dificuldade é com alimentação. A gente comprou todo o estoque de rações na região e não supriu a necessidade. Tem animal que está há uma semana sem comer, por isso, precisamos muito de doação de ração", conta, citando também outras necessidades, como remédios, vermífugos e coleiras antiparasitárias. Em situações como essa, é comum que os animais desenvolvam problemas de pele por causa do contato com a água.
Apesar da surpresa de uma situação assim, Ilka diz que é possível evitar que as consequências sejam tão dramáticas para os animais. O primeiro passo é que cada município elabore um plano de contingência que inclua também os bichos. No ano passado, o conselho federal elaborou um plano nacional para desastres em massa, mas, na Bahia, nem mesmo Salvador tem o seu próprio. Mais de mil animais foram resgatados pelos veterinários do Grad (Fotos: Grad/Divulgação) Esse planejamento deve conter as diretrizes de como conduzir o resgate, a assistência veterinária, a manutenção e a destinação de animais domésticos e silvestres nos desastres."A gente não pode transportar galinha durante o dia, no Sol, por exemplo, ou todas morrem. Precisa ter detalhes de cada espécie, região e risco sanitário. Se tem uma região com uma doença mais presente, temos que criar estratégias para diminuir a disseminação da doença. Lá (em Itamaraju), a gente achou um bairro com surto de cinomose. Os animais próximos desse bairro têm que ser vacinados o mais rápido possível", explica. Além disso, as cidades precisam de políticas públicas permanentes para animais, como a castração e a vacinação antirrábica anual, mas também a destinação dos bichos mortos. "Às vezes, tem cadáver de boi, por exemplo, e as pessoas não podem se alimentar desse animal, porque pode transmitir doenças", cita.
No plano individual, pessoas que moram em animais de risco devem pensar também em como tirar os animais, na hora de sair: isso inclui separar desde coleira e caixinha de transporte até um pouco de ração. "Os animais também são vítimas e nem entendem o que está acontecendo. A gente chega para salvar vidas, mas nosso trabalho é baseado no conceito de saúde única, que é a saúde humana, animal e ambiental", completa Ilka.
Quem quiser fazer doações pode ir até um dos postos físicos (em Salvador, na Clínica Felina, no Rio Vermelho; na sede do CRMV-BA, na Federação e no Shopping Paralela; em Porto Seguro, na Clínica Melhor Amigo) ou através do pix 04.085.146/0001-38.