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Carolina Cerqueira
Publicado em 27 de abril de 2021 às 05:45
- Atualizado há 2 anos
Em um intervalo de 48 horas, dois recém-nascidos foram abandonados em Salvador. Primeiro, foi a vez da pequena Sophia, encontrada em uma caixa por um catador de materiais recicláveis, no último sábado (24), em Paripe. Nesta segunda (26), o segundo bebê encontrado foi Miguel, que tinha poucas horas de nascido e estava enrolado em um pano de chão e dentro de um saco plástico de mercado em meio ao lixo na Capelinha de São Caetano. De acordo com o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), os casos se tornaram mais frequentes durante a pandemia, acontecendo, em média, a cada três meses.>
Quem encontrou o recém-nascido abandonado nesta segunda (26) foi o encanador Manoel Arcanjo, de 58 anos, que está desempregado. Ele contou que todos os dias faz caminhada e que vai sempre pelo mesmo lado da calçada. Na segunda, por ironia do destino, acabou seguindo pelo lado oposto do habitual. Era por volta das 5h30 quando o choro do pequeno Miguel chamou a atenção de Manoel, que percebeu que se tratava de um bebê abandonado em meio ao lixo, na Rua Nova da Igreja, uma das entradas da Rua Padre Antônio Vieira. >
“Eu fiquei preocupado em chamar algumas pessoas para testemunharem, mas muita gente não ligou. Depois juntou um pessoal, mas falavam para eu não mexer, não fazer nada, para esperar a polícia chegar. Mas eu resolvi abrir o saco para a criança poder respirar”, disse Manoel. Ele contou também que o bebê parecia ter nascido naquela madrugada e não estava vestido, apenas enrolado em um pano de chão, deitado de bruços no asfalto. “Os pés ficaram para fora do saco e o joelho chegou a ferir um pouco pelo contato com o chão”, completou. >
Na hora, só veio na cabeça do encanador a lembrança de uma imagem forte que viu na TV em 2017 e que o marcou: a cena do bebê que foi vítima do naufrágio da lancha Cavalo Marinho sendo socorrido por um funcionário do Samu. “O rapaz saiu correndo para tentar salvar aquela criança e a cena foi bem marcante para mim. Na hora, eu lembrei daquilo e falei para mim mesmo que não ia deixar a criança morrer. Era um bebê chorando em um saco de lixo, eu não podia ficar esperando”, recordou.>
Manoel pediu ajuda aos carros que passavam, mas nenhum deles parou para prestar socorro. Ele então enrolou a criança em um cobertor e foi caminhando até a delegacia mais próxima. Primeiro, bateu na porta da 4ª delegacia, onde foi orientado a levar a criança para um hospital. No caminho, encontrou uma viatura da Rondesp, que fez o transporte de Manoel e da criança até uma unidade de saúde. “Lá, me disseram que a criança estava bem e que eu poderia ligar depois para saber dela. Eu quero fazer uma visita, poder ver o bebê de novo”, disse. >
O recém-nascido foi levado para a Maternidade José Maria de Magalhães Netto. De acordo com a Secretaria de Saúde da Bahia (Sesab), o bebê, que pesa 2,890kg, passa bem e foi batizado de Miguel pela equipe do hospital.>
A pequena Sophia>
O outro caso de abandono em Salvador foi o de Sophia, que nasceu no dia 21 de abril e foi deixada na manhã de sábado (23) numa caixa de papelão em um canteiro nas margens da Avenida Suburbana, em frente a um estabelecimento comercial de transportes coletivos. Ela estava vestida e em meio a um cobertor e uma carta que teria sido escrita pelos pais. No papel, a data de nascimento, o nome da bebê e um pedido de desculpas pelo abandono: "Me perdoe por isso, mas infelizmente não tenho condições financeiras e psicológicas de te dar uma vida boa". >
Os pais disseram que, por muitas vezes, não têm o que comer e pediram que alguém cuidasse da criança. "Cuidem bem da minha pequena Sophia, que ela cresça nos caminhos do Senhor. Beijos do seu pai e de sua mãe. Saiba que nós te amamos", dizia a carta. >
A recém-nascida foi encontrada por um catador de materiais recicláveis. Ele entregou o bebê a um funcionário da empresa de transporte coletivo, identificado como Morialverson, que então chamou a polícia. De acordo com a Polícia Militar, agentes da 19ª Companhia Independente da Polícia Militar (CIPM) foram acionados e entraram em contato com o Samu. >
A guarnição registrou a ocorrência na 5ª Delegacia Territorial e a bebê foi encaminhada para a Maternidade Tsylla Balbino. De acordo com a Sesab, a pequena Sophia pesa 3.275 Kg e passa bem. O tenente coronel Everaldo Maciel, comandante da 19ª CIPM, relatou que Sophia foi bem atendida ao chegar à maternidade. “Uma equipe nossa foi fazer o boletim de ocorrência e outra foi para a maternidade. Lá a criança foi muito bem acolhida, examinada e alimentada. Ela estava com um processo inflamatório na região do umbigo, foi medicada e está bem”, afirmou.>
O tenente coronel também informou que a policial que levou a criança até a maternidade está em contato com colegas para organizar um enxoval para Sophia e que os pais da criança serão procurados pela polícia. “Cabe agora à Polícia Civil, o Ministério Público ou até ao Conselho Tutelar a busca pelos pais da criança, já que não deixa de ter ocorrido o crime de abandono de incapaz, mesmo que com uma série de atenuantes. O ideal é que se identifique os pais da criança e que se crie condições de que ela ainda seja criada por eles, já que ficou claro que há uma relação afetiva”, finalizou.>
Os dois bebês abandonados estão em observação e, ao receberem alta, serão encaminhados para o Juizado de Menores. >
Abandono de bebês>
De acordo com Tatiane Paixão, presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), desde o segundo semestre de 2020, os casos de abandono de bebês aumentaram. “A gente só registrava esse tipo de caso a cada três ou quatro anos mas, com a pandemia, a partir do segundo semestre de 2020, infelizmente isso começou a se tornar mais frequente, acontecendo a cada três meses. Esses dois casos de agora aconteceram em sequência e preocupam porque o abandono não pode se tornar uma rotina”, disse.>
De acordo com a presidente, o CMDCA está adotando medidas educativas para alertar a população a como fazer a entrega da criança de forma segura. “Entregar para a adoção não é crime, mas o abandono é, porque há um risco para a criança. Com isso, está previsto crime com punição que pode chegar à detenção de seis meses a três anos, agravada em um terço por se tratar de recém-nascido”, afirma Tatiane. >
Ela explica como deve acontecer o procedimento legal: “A mãe da criança, antes ou depois do nascimento, pode manifestar a vontade de entregar o bebê quando ainda estiver na maternidade. Também é possível buscar ajuda no Conselho Tutelar ou na Vara da Infância e Juventude”, ressalta. >
Tatiane afirma que os dois bebês, Sophia e Miguel, serão direcionados a uma instituição de acolhimento que a Vara da Infância e Juventude, por meio de um juiz, determinar. A partir disso, será estabelecido um prazo de 30 dias para que alguém da família manifeste interesse em ficar com a criança. “Não havendo manifestação, o bebê será cadastrado no Sistema Nacional de Adoção (SNA) e ficará disponível para a primeira família habilitada da lista, conforme os critérios de preparação e de perfil desejado”, explica. >
Adoção>
Segundo dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), a pandemia, além de interferir nos abandonos, também impactou nas adoções. Em 2020, na Bahia, foi registrada uma queda nos números de quase 70% em relação a 2019. No ano passado, apenas 18 crianças baianas foram adotadas, contra 58, em 2019. >
No Brasil, até o final de 2020, 5 mil crianças estavam disponíveis para serem adotadas e 35 mil desejavam adotar. Os números parecem positivos, mas não é bem assim. A demora no processo de adoção é grande e se dá, muitas vezes, pelo perfil restrito desejado pela família adotante. Segundo dados do SNA, a preferência dos cerca de 1.300 pretendentes que existem na Bahia é por crianças de até dois anos de idade, do sexo feminino, sem irmãos, sem deficiência física ou intelectual e sem doença infectocontagiosa. Com isso, as crianças acabam passando muito mais tempo nas casas de acolhimento do que deveriam. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o período máximo deveria ser de um ano e meio, mas muitas passam até dez ou mais anos. >
Para adotar, o pretendente precisa ter 18 anos, respeitada a diferença de 16 anos entre a pessoa que deseja adotar e a criança ou adolescente a ser adotado. Não há restrição quanto ao estado civil, ou seja, se é casado, viúvo, vive em união estável, solteiro ou divorciado. Casais homoafetivos não estão previstos na legislação pertinente, mas há jurisprudência (decisões de juízes) em favor de pedidos, nesta situação. O interessado deve procurar a Vara de Infância e da Juventude do município/região de residência, onde deverá apresentar os documentos listados abaixo, em originais e cópias:Documento de Identidade; CPF (Cadastro de Pessoa Física); Certidão de casamento ou de nascimento, se solteiro, ambos de expedição recente; Comprovante de residência (conta de água, luz, telefone etc); Comprovante de rendimentos ou documento comprobatório equivalente; Atestado ou declaração médica de sanidade física e mental; Fotografia do(s) pretendente(s); Atestado de antecedentes criminais EtapasProcurar a Vara da Infância e Juventude da sua cidade/região Dar entrada com uma petição para dar início ao processo. Sendo apto, a pessoa será cadastrada e deve aguardar chamamento da vara para conhecer a criança, e, se for o caso, dar início à ação de adoção Fazer um curso de preparação psicossocial e jurídica para a adoção A partir do laudo da equipe técnica e do parecer emitido pelo MP, o juiz dará a sentença. Com o pedido acolhido, o nome será inserido no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) Na fila, é preciso aguardar para encontrar uma criança com o perfil compatível. Se houver interesse, ambos serão avisados. A criança será entrevistada após o encontro para dizer se quer ou não continuar com o processo O estágio de convivência é iniciado, para que a criança e o adotante se aproximem. Se o relacionamento correr bem, a criança é liberada e o pretendente ajuizará a adoção. O juiz profere a sentença e determina a lavratura do novo registro de nascimento. *Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro>