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Gabriel Moura
Publicado em 19 de julho de 2021 às 06:15
- Atualizado há 2 anos
O ano era 2010 e banda 'A Bronkka' era a principal atração do festival Pagodão Elétrico. Durante a apresentação, o vocalista Igor Kannário avistou uma moça em meio a multidão e a convocou pra cima do palco, levando o público ao delírio. A jovem em questão não era cantora ou atriz, mas todo mundo a conhecia. Afinal, ela era mais do que isso. Era um fenômeno da natureza. Um Cyclone.>
No palco, a jovem Kelly Sales Silva, com 21 anos à época, pegou o microfone e puxou a música que homenageava a marca de roupas que ela levava no nome. “Cyclone não é marca de ladrão, é a moda do gueto”, diz a primeira estrofe daquele hit que se transformou em hino nos becos e vielas de Salvador.>
Naquele dia e naquele palco montado no coração de Cajazeiras se encontravam dois ícones, que por caminhos diversos, adquiriram status de realeza entre jovens das periferias soteropolitanas: o “Príncipe do Guetto” e a “Dama do Pó”. Enquanto um dava voz à favela em seus versos, a outra representava o estilo e o grito de liberdade de um povo marginalizado antes de ser vítima de um feminicídio há exatos 10 anos, no dia 18 de julho de 2011.>
Saiba mais sobre o assassinato de Kelly Cyclone: Ocorrido há 10 anos, assassinato de Kelly Cyclone segue sem solução>
Uma história de amor sem final feliz Kelly Cyclone, ou Kelly Doçura, é até hoje lembrada por suas tatuagens, estilo ousado e, principalmente, envolvimento com traficantes. No entanto, para ela, tudo não passou de uma trágica história de amor sem final feliz.>
Enquanto no Orkut ela exibia um arsenal de armas, a casa dela era recheada de ursinhos de pelúcia e mensagens como "Tony, eu te amo de uma forma que não sei explicar" e "Keu e Tony, se é amor, que seja eterno" escritas na parede. Essa dualidade entre o bem e o mal, heroína e vilã, acompanhou a vida de uma jovem que teve uma infância simples e pacata.>
Dentro da casa dos Sales, a pequena Kelly era considerada um “bicho do mato”. Mal ia para a rua, preferindo a companhia de suas bonecas no aconchego de seu quarto. Ela só mantinha contato com familiares, com quem costumava fazer piadas. Quando saía de casa, era para a igreja, onde fez crisma e primeira eucaristia. Kelly teve uma infância pacata (Foto: Reprodução) "Até completar 13 anos, ela era um bicho do mato, tinha vergonha das pessoas. Mas, dentro de casa, sempre foi palhaça. Gostava de chamar o nome da gente arrotando", lembrou Rosiele Sales Silva, irmã da vítima, em entrevista ao CORREIO em 2011.>
O ponto de inflexão que fez Kelly mudar da água pro vinho, ou melhor, da brisa pro ciclone é um grande debate entre os familiares. Rosiele acredita que a reviravolta ocorreu após a separação dos pais, que eram casados há 30 anos. Já Carla Sales Silva, outra irmã, teoriza que tudo aconteceu após o suicídio de Anderson, seu primeiro namorado. Na época, Kelly tinha apenas 16 anos e estava grávida. >
"Ela só falava em se matar", lembra a irmã, que chegou a encontrar veneno de rato no quarto de Kelly, que sonhava constantemente com ela jogando o filho da janela. Hoje, o menino tem 15 anos. >
Mas há uma unanimidade em meio às teorias: falta de oportunidade. Kelly sempre foi uma menina estudiosa e completou o ensino médio com uma média de 8 em física, por exemplo. >
Antes mesmo de concluir os estudos, ela distribuía currículos por empresas e escritórios de Salvador e Lauro de Freitas. As vagas pretendidas eram vastas, desde recepcionista a auxiliar de serviços gerais. Os recrutadores apontavam qualidade como desenvoltura, boa fluência verbal e dinamismo. Mesmo assim, nenhuma porta se abriu para a jovem. >
“Era o CEP dela que impedia. Se até hoje é difícil para um jovem de periferia encontrar, imagine há mais de 10 anos atrás. É algo a se refletir, pois significa que o que aconteceu com Kelly poderia ocorrer com qualquer menina da realidade dela. Se as portas se abrissem para ela, provavelmente ela nunca teria trilhado o caminho que seguiu”, analisa Jorge Gauthier, chefe de reportagem do CORREIO e um dos repórteres que cobriu o assassinato da jovem em 2011.>
"Bandida, mocinha, eu não sei", dizia a música de Igor Kannário em homenagem a Kelly Cyclone. E você, qual a sua opinião sobre ela? No 10º episódio do podcast O Que a Bahia Quer Saber - programa de áudio com reportagens especiais do CORREIO -, lembramos a trajetória da Dama do Pó e resgatamos falas da própria sobre sua vida dupla:>
Para ouvir o podcast, basta clicar no player abaixo (a matéria segue abaixo do player):>
Começou-se o que era (agri)doce Kelly Cyclone venceu a luta com Kelly Sales. O bicho do mato criou asas e agora era visto constantemente em festas de pagode regadas a álcool e drogas. >
Foi num desses rolés que Kelly conheceu e se apaixonou pelo percussionista Bombado Doçura, da banda Saiddy Bamba. Além do amor e da fama incipiente, o músico emprestou o apelido para a amada, que começou a ser conhecida como Kelly Doçura.>
Bombado deixou o Saiddy Bamba mais tarde para unir-se a banda O Báck. Inclusive, dizem as más línguas que a Chapéuzinho “homenageada” no hit “Lobo Mau” é a própria Kelly.>
O namoro entre os dois, no entanto, durou pouco. Solteira, não fazia sentido Kelly seguir adotando o sobrenome do ex. Inspirada em sua marca de roupas favoritas, a patroa adotou um novo vulgo: Kelly Cyclone.>
Com um novo nome, ela também arrumou novos namorados. O primeiro foi Sidnei Ferreira, traficante do Garcia, que foi morto em confronto com a polícia enquanto estava com ela. “Sidnei foi o amor da minha vida”, disse ela em entrevista ao CORREIO em 2010.>
Após a morte de Sidnei, Kelly se envolveu com o assaltante de prenome Hugo, que também morreu pouco tempo depois - desta vez durante uma briga. >
Duas das 20 tatuagens que coloriam o corpo da moça que já era conhecida como “A Patroa do Tráfico” nesta época foram feitas em homenagem a esses amores. No pulso ela escreveu “Sidnei” já a Hugo foi reservado um espaço no cocuruto. Uma outra tatuagem, essa no quadril, resumia a trajetória da artista: "Vida loka".>
Festa do pó Kelly já era famosa em seu ciclo social, mas ela só se tornou conhecida em toda Salvador no dia 25 de fevereiro de 2010, quando foi celebrada a festa de aniversário dos irmãos Leonardo Nascimento dos Santos e Edmilson dos Santos Nascimento na Boca do Rio. No cardápio, picanha, cerveja, som alto e muita, muita cocaína naquela que ficou conhecida como “Festa do Pó”.>
A intenção era de que o reggae começasse às 0h e terminasse às 23h59 daquela quinta-feira, mas, por volta das 21h30, policiais invadiram o local onde ocorria a celebração, botando um ponto final na farra. O resultado da esbórnia regada de substâncias não recomendadas pelo código penal foram 44 detidos, incluindo 13 menores - um ônibus da PM precisou ser acionado para transportar toda a trupe para a delegacia.>
Apesar do alto número de detenções, uma das convidadas que se transformou no centro das atenções: uma bela e tatuada jovem que atendia pelo nome de Kelly Cyclone.>
Na delegacia, Kelly foi ouvida e apresentou uma versão diferente da história. "Tava todo mundo cheirando cocaína, mas não tinha maconha e haxixe. Quando a polícia entrou, eles começaram a jogar os sacos de cocaína para cima do telhado da laje", narrou ela no depoimento. Kelly usava camisa da Argentina quando foi presa (Foto: Evandro Veiga / Arquivo CORREIO) A jovem já era famosa naquela época, tanto que foi reconhecida por um dos policiais da Rondesp. "Eu estava de costas quando um deles me pegou pelos cabelos e me arrastou, dizendo que eu coloco foto de arma em meu Orkut", revelou ela em entrevista ao CORREIO em 2010.>
O resultado do baculejo foram marcas roxas no quadril, braços e pescoço, além de ter sua camisa da Argentina suja de terra. Kelly garantiu que foi torturada durante a ação policial.>
"Eles colocaram algemas e me levaram para a garagem, onde me espancaram. Colocaram saco plástico na minha cabeça três vezes. Eu desmaiava, mas depois acordava com chutes na barriga", disse ela. Na época, o major responsável pela operação negou o espancamento.>
Digital influencer (ou 'criminal influencer') Após a fatídica festa, Kelly começou a estampar as capas de jornais e ser presença assídua em programas policiais como o Se Liga Bocão e o Na Mira. Todo mundo queria saber quem era essa tal “patroa do tráfico” que fazia e acontecia em Salvador.>
Importante ressaltar que ela sempre negou qualquer envolvimento com atividades criminosas, garantindo que “não se metia nas coisas dos namorados”. A polícia a investigou, mas também não obteve nenhuma prova dessas supostas atividades ilícitas. A única detenção dela foi justamente no pó, em que foi liberada no dia seguinte.>
A fama ultrapassou os limites da televisão e ganhou eco nas redes sociais. Na época ainda nem existia o termo “digital influencer”, mas Kelly inaugurou a profissão em Salvador. No Orkut haviam comunidades com milhares de membros feitas em homenagem a ela. Fakes da famosa também foram criados (Foto: Reprodução) No YouTube, os vídeos dela nas festas de pagode e nos programas televisivos atingiam milhões de visualizações numa época em que a internet ainda não tinha se popularizado completamente em Salvador.>
A marca que ela estampava no nome batia recordes de venda e a camisa da Argentina, uma de suas favoritas, virou febre em Salvador. “Na descida do Shopping Piedade, o povo vendia camisa da Argentina dizendo 'essa é do doce, da doçura. de Kelly Cyclone'. Não vendiam camisa de Bahia e Vitória, só de Kelly”, lembra Jorge Gauthier.>
A fama era tanta que Kelly pretendia se candidatar a vereadora em 2012. Sua principal bandeira? O combate às drogas.>
As aspirações políticas dela, no entanto, foram interrompidas no dia 18 de julho de 2011, quando foi vítima de um feminicídio em Lauro de Freitas, num crime até hoje sem solução.>
Homenagens Salvador parou. Nas escolas, bares, pontos de ônibus e jornais locais só se falava do fim trágico da Musa do Pó. Nas redes sociais, cerca de 600 comunidades, com milhares de membros, falavam de um luto coletivo.>
Um vídeo publicado logo após a morte dela atingiu 50 mil visualizações em dois dias - atualmente o número se aproxima de um milhão.>
O enterro dela foi no dia 19 de julho e reuniu uma multidão no Cemitério de Portão. Centenas de amigos, familiares e fãs se aglomeraram para dar o último adeus em Kelly, que foi enterrada com um boné rosa fluorescente.>
"Gostava do jeito dela, todo mundo admirava Kelly. Muita menina quer ser que nem ela", dizia uma estudante que à época tinha 16 anos, citando a atitude, tatuagem e roupas provocantes usadas pela musa.>
Durante o enterro, policiais da Rondesp chegaram a ir no local em busca de possíveis criminosos. Após darem um baculejo em geral, os militares não encontraram nenhum flagrante ou foragido da Justiça no local.>
Durante os dias subsequentes, o túmulo de Kelly foi palco de peregrinação de outros fãs da jovem, que lembravam a frase favorita da Dama do Pó: "O mundo não está ameaçado pelas pessoas, mas por aqueles que permitem a maldade.”>