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Laura Fernades
Publicado em 29 de março de 2020 às 09:00
- Atualizado há 2 anos
A amizade entre a advogada Rafaela Reis, 32 anos, e a pedagoga aposentada Maria Luiza Portela, 71, nasceu por causa do coronavírus. As duas moram no mesmo prédio, mas não se conheciam até a quarentena chegar. Morando sozinha há dez anos, Dona Luiza viu no elevador um aviso que chamou a sua atenção.
“Olá, vizinhos. Estamos iniciando uma grave crise de pandemia com a chegada do coronavírus na nossa cidade. Portanto, caso qualquer idoso acima de 60 anos precise sair de casa (padaria, mercado e farmácia), eu me disponibilizo para ir no lugar. Vamos nos proteger! O momento é de união e ajuda comunitária”, dizia o texto.
Abaixo do recado, um dos tantos que têm surgido nos condomínios de Salvador, linhas em branco estavam preenchidas a caneta com nomes e telefones de vizinhos dispostos a oferecer uma rede de apoio. “Na hora, pensei: ‘Meu Deus, como tem gente boa no mundo!’. Achei interessante, fotografei e já abusei”, ri Dona Luiza.
Itens do mercado e remédios para a rinite alérgica estavam na lista que a moradora fez à mão e colocou debaixo da porta para Rafaela pegar. A vizinha, que idealizou a ajuda, fez as compras, avisou ao porteiro que estava subindo de volta e Dona Luiza já estava à sua espera, atrás da porta. No tapete, o dinheiro estava preso “com um clipszinho”.
“Ela comprou tudo direitinho e ainda foi criativa. Eu disse: ‘Se conseguir um beijinho com recheio de goiabada, traga’. Mas ela não achou, aí foi em outro lugar e comprou uma goiabada inteira”, ri Dona Luiza, sem esconder a satisfação com o mimo da nova amiga que amenizou a saudade de sua filha, que mora em outro bairro e está sem poder sair de casa. Maria Luiza Portela, 71 anos, está em quarentena contando com a ajuda de vizinhos (Foto: Divulgação) Peso A partir de então, passou a ligar todo dia para saber como Rafaela estava, mesmo tendo decidido revezar os pedidos com outros vizinhos, “para não abusar”. “Achei interessante a iniciativa, porque cria um vínculo de amizade. Que bom que tem pessoas solidárias, se preocupando com o idoso”, elogia Dona Luiza.
Essa rede de apoio, em sua opinião, vale muito a pena “principalmente na situação atual que é ímpar”. “A gente já passa a ser um peso pra sociedade, é duro você perceber isso, e não há uma atenção plena ao idoso. Graças a Deus nem todo mundo é igual. Esses jovens são especiais. Me sinto impactada”, agradece.
Na última semana, por exemplo, Dona Luiza perdeu o ex-marido, pai de sua filha, com quem tinha pouco contato e resolveu ligar para Rafaela. “Ela desabafou comigo e eu aconselhei ela...”, lembra a advogada. “É uma gratidão imensa, não tem preço. Acho que é um ato de caridade mesmo, de solidariedade. Me senti muito feliz”, conta Dona Luiza.
Inspirada a fazer a lista depois de uma reportagem que leu sobre o tema, Rafaela ficou contente em ver a adesão de outros moradores ao movimento do elevador. “Realmente é uma corrente de solidariedade”, resume a advogada que está trabalhando em home office e só sai do isolamento para ajudar os vizinhos, já que a família mora em Feira de Santana.
“Mesmo preocupada com minha saúde, fiquei mais preocupada ainda com a situação dos idosos porque têm uma situação mais frágil”, justifica Rafaela, sobre o grupo de risco que mais morre por causa do Covid-19. “Preferi me colocar em risco, porque é mais fácil eu vir a sobreviver. É duro, mas é a verdade”, acrescenta. A advogada Rafaela Reis colocou uma lista no elevador do prédio onde mora oferecendo ajuda às pessoas com 60 anos ou mais (Foto: Divulgação) Proteção Diante do fato de seu prédio ter cerca de 70% de vizinhos idosos, muitos deles morando sozinhos, Rafaela conta que não pensou duas vezes em ajudar a proteger os mais vulneráveis. E deseja "que seja uma coisa que venha a se espalhar". "Queria que todos os prédios tivessem isso”, reforça, sobre a lista.
Para a advogada, se cada um doar um pouquinho do seu tempo para ajudar o outro, “a gente vai ter um país muito mais equilibrado socialmente e economicamente”. Principalmente em um lugar como o Brasil, “que tem um sistema caótico”, e em uma cidade como Salvador, onde existem poucos leitos de UTI, aponta a advogada.
“É uma questão mesmo de ajudar o próximo. Talvez se eu não conseguir ajudar meu pai, outra pessoa poderá ajudá-lo. É uma coisa de comunidade, de se juntar mesmo. Evitar a quantidade de mortos no país. Se eu posso ajudar as pessoas de alguma forma nessa pandemia, vou ajudar. É de pouquinho em pouquinho que a gente pode fazer uma coisa grande” convida.
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Doação No mesmo movimento que Rafaela, a engenheira civil Vanessa Vieira, 28, também se sensibilizou com a “lista no elevador” e adotou a ideia no prédio onde mora. “Aqui em casa, meus pais sempre ensinaram a ter empatia. A gente cresceu nesse ambiente de solidariedade, de respeitar o outro. Aprendemos a humildade de viver”, justifica.
Doadora universal de sangue, acostumada a contribuir três vezes por ano com os bancos, Vanessa viu alguém compartilhar a iniciativa do elevador em uma rede social e gostou. Mas a decisão de fazer igual não foi tomada pensando em ter algum tipo de retorno, “foi por querer ajudar mesmo”.
“É mais para evitar que as pessoas que estão em risco saiam de casa”, explica. “Tomara que acabe logo essa maluquice, viu… Mas acredito que a gente vai sair disso mais forte, com certeza. Vai dar mais valor às pequenas coisas. A gente vê como faz falta um abraço, né?”, pondera. A engenheira civil Vanessa Vieira também colocou uma lista no elevador do prédio onde mora (Foto: Divulgação) Apesar de morar em outro bairro e não conhecer Vanessa, a estudante de odontologia Lorena Rios, 26, partilha do mesmo sentimento de doação. “Não faço isso porque sou altruísta, mas porque me sinto bem também. Você fica em casa e se sente um pouco inútil. Vou ficar vendo tudo acontecer sem poder ajudar?”, questiona.
Filha mais velha de uma família de Senhor do Bonfim, Lorena tem uma mãe com saúde muito frágil e perdeu o pai aos 78 anos, em 2015. “Todo idoso parece meu pai e eu choro toda vez que vejo um”, confessa a estudante que desde pequena tomou para si a responsabilidade da casa.
“Do meu lado, tem uma senhora com Alzheimer e ela mora sozinha com o esposo. Pensei que se eles quisessem algo e existisse alguém disposto a fazer isso, seria muito melhor para eles”, explica, sobre a decisão de aderir à lista de apoio colada há poucos dias no elevador.
Em grupo Até agora, ninguém pediu ajuda, mas já ligou para agradecer. “Um deles me ligou todo emocionado, me parabenizou e disse que se precisasse ia interfonar”, conta Lorena, orgulhosa. Esperançosa, porque acredita que “o mundo é feito de muita gente de bom coração”, a estudante espera que o momento toque o coração das pessoas.
“Você começa a repensar muita coisa, atitudes, pensamentos, começa a refletir sobre quais são suas prioridades, como está lidando com as pessoas ao redor, com suas responsabilidades, deveres. O que vai fazer diferença nesse momento é esse pensamento de grupo mesmo, que está fazendo falta ultimamente”, defende.
Por isso, condena os que só pensam em si e não entendem a gravidade da situação. “Se todos os jovens pensarem que é uma coisa mais branda com a gente e não se importar, vai ser um caos. Nada mais justo que se preocupar com as pessoas que estão na faixa de risco”, ressalta.
Lorena destaca, ainda, que há “uma desigualdade social muito gritante” no Brasil, mas “agora as pessoas vão ter uma consciência de que nesse momento, nada adianta ter dinheiro se você não tiver saúde”. “Está todo mundo no mesmo barco. A partir do que está acontecendo, a gente vai olhar o outro como reflexo da gente mesmo, como nosso espelho. O que vai importar agora é a união”, garante. Lorena Rios Ajuda aos vulneráveis pode frear contágio, diz educador Bater papo com o vizinho idoso é indicado para além do ato de fazer compras no mercado ou na farmácia, defende o educador e brincante Felipe Augusto ‘Peta’, 29 anos. Por isso, ele e sua companheira, a psicóloga, educadora infantil e brincante Gabriela Leite, 27, decidiram ficar disponíveis para os vizinhos mais velhos do prédio.
Além das compras em mercados e farmácias, estão dispostos a entregar encomendas, pagar contas, ir a hospital, bater um papo pelo interfone e até por videochamada. Ao mesmo tempo, conversam com porteiros, equipe de limpeza e outros profissionais do condomínio nessa faixa etária para saber como estão se cuidando e estão tendo acesso à informação.
“A gente está em um momento delicado”, pondera Peta, sobre o isolamento social. “Mas a gente sentiu que só pensar na questão econômica não dá conta de frear esse contágio. Então, como fazer isso? Ajudando os mais velhos. Como contribuir para proteger essas pessoas, já que estão vulneráveis? Fazendo o que for preciso”, responde o educador.
Entre os idosos da família, por exemplo, ele e Gabriela já fizeram sopa para quem “não tinha a manha de cozinhar” e lavaram roupa para quem não podia, só para citar duas das ações. O mesmo clima família é percebido no condomínio onde moram, onde existem muitos idosos e “vizinhos solícitos”.
“Quando a gente viu a lista no elevador, não pensou duas vezes em se disponibilizar”, lembra Peta. “É uma relação de empatia, de fazer o que a gente quer que façam com nossos pais, nossos avós. É uma forma de emendar essa energia para que todo mundo possa compactuar com isso”, completa Gabriela. Felipe Augusto ‘Peta’, 29, e Gabriela Leite, 27, ajudaram fazendo sopa, lavando roupa e conversando com os mais velhos (Foto: Divulgação) Como ajudar os mais velhosQue tal aderir à mobilização para garantir os cuidados práticos? Se ofereça para ir ao mercado, a uma farmácia, ou pagar uma conta de seu vizinho 60+ Se disponibilize para conversar pelo interfone, telefone ou até por videochamada. Muitos idosos moram sozinhos e é importante cuidar da saúde mental Esteja disponível para levar informação a quem não tem. Dê dicas de segurança sobre como evitar o contágio, como lavar as mãos, os alimentos Ofereça uma rede de contato, apoio e acolhimento. A lista no elevador com telefones é acessível a todos. Cuide do outro como se estivesse cuidando de seus pais Faça a manutenção desse lugar de prevenção: guie as pessoas que não respeitam as medidas e não se engajam. Supervisione e esteja presente