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Dependência externa: Brasil produz apenas 15% dos fertilizantes usados no campo


 

Guerra na Ucrânia e desarranjos de mercado causados pela pandemia trazem incerteza quanto a fornecimento

  • Donaldson Gomes

Publicado em 25/02/2023 às 07:00:00
Atualizado em 13/04/2023 às 13:12:17
. Crédito: Foto: Shutterstock

A importação de fertilizantes não foi um problema para o Brasil até fevereiro de 2022. Nem mesmo uma pandemia, que fez as principais economias globais reverem as estratégias de produção dos produtos mais essenciais, mudou essa lógica. Só depois do início da guerra entre a Rússia e a Ucrânia – os dois grandes fornecedores mundiais dos insumos – o país ligou o sinal de alerta: é preciso ser capaz de produzir mais do que 15% de sua demanda de adubo. 

Se o agro é considerado o motor da economia brasileira, notadamente nos últimos anos, o combustível que faz esta máquina funcionar é o fertilizante. Os seguidos recordes de produção registrados dependem em boa parte de produtos como ureia e o NPK, fórmula que reúne nitrogênio (N), fósforo (P) e potássio (K), exaustivamente estudada pelo cientista Justus von Liebig no século XIX, criando a química agrícola.  

Não por acaso, o assunto foi lembrado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seu discurso de posse, em 1º de janeiro. Os fertilizantes foram citados pelo mandatário como exemplo do que não faz sentido importar, uma vez que o país poderia produzir. 

No ano passado, entre os meses de janeiro e novembro, foram colocadas no mercado 37,7 milhões de toneladas de adubo, de acordo com dados da Associação Nacional para Difusão de Adubos (Anda). O número representa uma queda de 11,3% em relação às 42,5 milhões de toneladas registradas no mesmo período de 2021. Enquanto os produtores nacionais mantiveram as unidades operando a plena carga, com um leve crescimento de 5,2%, o volume de importações caiu quase 10%. 

O cenário fez produtores rurais, representantes da indústria e o Poder Público perceberem a urgência de reduzir a dependência externa, criando condições para um processo de retomada na produção nacional. O cenário considerado ideal é a saída de uma dependência que já chegou a ser de quase 90% no passado para algo próximo de 50%. Com unidades de produção na área química e bastante potencial na área mineral, a Bahia desponta como uma das apostas de solução para o problema.

De acordo com dados de 2020 trazidos pelo Plano Nacional de Fertilizantes (PNF), estima-se que a dependência brasileira de nitrogenados, fosfatados e de potássio seja de 95,7%, 72% e 96,4%, respectivamente. Entre as metas previstas, até 2050, estão alcançar a produção de 2,8 milhões de toneladas de nitrogênio, 9,2 milhões de toneladas de fosfato e 6 milhões de toneladas de óxido de potássio. Além disso, estimular a implantação de mais quatro empresas produtoras de nitrogênio fertilizante e atrair, pelo menos, mais R$ 20 bilhões em investimentos para a construção de novas fábricas de fertilizantes nitrogenados. 

Importância no campo  A região Oeste da Bahia, um dos principais polos agrícolas do Brasil, possui uma área plantada com soja de 1,66 milhão de hectares. Em média, cada hectare demanda 580 quilos de fertilizantes. “Nós temos uma demanda muito grande como um dos grandes celeiros agrícolas do país. Além da produção de grãos, estamos crescendo bastante na fruticultura”, conta o gerente de agronegócio da Associação dos Produtores e Irrigantes da Bahia (Aiba), Aloísio Junior. No caso de outras culturas importantes na região, como o milho e o algodão, a dependência é ainda maior, de 930 e 960 quilos por hectare, respectivamente.  Para dar conta da demanda da região, a estimativa seria de 3,5 mil carretas com 50 toneladas, cada. 

Se agora em 2023 o mercado experimenta uma “leve retração” nos preços dos produtos, no ano passado o cenário foi de preços elevados, com impacto direto na chamada “relação de trocas”, um conceito que compara as receitas de vendas com as despesas de produção. Quanto maior o número, melhor retorno.  “A relação de troca tem melhorado. Os produtores elevaram a produtividade, os custos caíram um pouco e nos deram um cenário mais favorável para este ano, depois de uma safra que foi considerada cara”, explica Aloísio Junior.Segundo ele, o principal efeito da elevação dos custos foi o de um “recuo estratégico” nos investimentos em expansão. Mesmo com uma melhora nos preços a partir de outubro. “O produtor não negocia em cima da hora, o que vai ser vendido na safra atual é acertado com um ano de antecedência e naquele período, principalmente por conta da pandemia, a relação de troca não estava atrativa”. Agora, complementa, a expectativa é de uma retomada.  

Com os preços elevados, os produtores que já tinham áreas consolidadas não investiram tanto em adubação, conta Junior. “Vivemos um período de insegurança por conta da pandemia, no final de 2020 e de 2021, mas principalmente com o início da guerra”, lembra. 

Segundo ele, com a movimentação do governo federal no ano passado, não houve falta de produtos, mas uma elevação nos preços. “Houve aquilo que aprendemos sobre a lei da oferta e da demanda. Os preços se elevaram. Muitos deixaram de adquirir porque não acharam vantajoso”.  

Desestímulo ao mercado  Não é por acaso que, mesmo sendo um grande produtor agrícola, o Brasil viu unidades que produziam insumos para o campo em dificuldades e muitas até fechando as portas. Um exemplo claro é o da Fafen, no Polo de Camaçari, que chegou a ser colocada em regime de hibernação pela Petrobras e só teve a produção retomada após ser adquirida pela Unigel.  

Entre outras explicações, o regime tributário nacional isenta do ICMS os produtos importados, mas cobra uma taxa de 8,4% para os fabricados aqui. Este é um dos pontos a ser trabalhado pelo PNF, destaca Bernardo Silva, diretor executivo do Sinprifert, sindicato que representa os produtores nacionais de fertilizantes. “Estamos trabalhando para mostrar o potencial que o Brasil tem e tentando sensibilizar atores governamentais. Temos um problema grande e grave, que é um risco para o agronegócio”, avisa Bernardo Silva.Para ele, a Bahia cumpre um importante pelo papel na busca por uma solução, tanto pela pujança do agro no estado, quanto pela disponibilidade de recursos minerais e pelo parque industrial para a produção de fertilizantes. “Hoje temos o Polo com fábricas de nitrogenados, que podem transformar o gás natural do pré-sal ou da Bacia Alagoas e Sergipe”, exemplifica. “A gente tem também na Bahia projetos relevantes de fosfatados, que poderia diminuir a dependência nacional”, completa. 

O problema é que nos últimos 25 anos essa indústria enfrentou condições que desestimularam o desenvolvimento dela. Além da política de ICMS desfavorável, outros tributos sobre a importação foram zerados, como é o caso do PIS/Cofins. “Enquanto isso, onerava o produtor nacional desproporcionalmente”, diz Silva.

“Ninguém nunca reclamou antes, até porque boa parte das empresas que produzem são globais. Então alocar um recurso no Brasil, Marrocos, ou onde for, não fazia diferença para elas”, analisa, lembrando que os preços praticados também eram palatáveis para quem comprava os produtos.  

Uma das principais medidas defendidas por Bernardo Silva é que se mantenha o processo estabelecido no ano passado, para que a alíquota dos produtos fabricados no Brasil e os importados seja igualada em 4% até 2025.  

O diretor do Sinprifert acredita que boas condições de competitividade levaram unidades que já operam em Camaçari, Candeias, Luís Eduardo Magalhães e em outras regiões da Bahia a se movimentarem para ampliar a produção. “Já temos empresas que anunciaram investimentos em capacidade produtiva. Como são projetos grandes em termos de investimentos, há um horizonte de maturação muito longo. Nossa expectativa é de que as pequenas conquistas que temos para equalizar o campo de jogo se mantenham no longo prazo”, torce. 

“Se não abraçarmos esta causa, iremos chegar a um ponto em que teremos uma dependência de 100% das importações e nós estamos falando de algo que envolve a soberania nacional. O solo brasileiro precisa de fertilizantes para atingir os patamares atuais de produtividade”, diz.“Não se pode ficar à mercê do jogo geopolítico que está acontecendo na Ucrânia, não se pode ficar à mercê de moratórias de exportação da China”, avisa.  Gargalos Como um país que tem vastas regiões de solos pobres para a agricultura no seu Cerrado consegue ser responsável pela alimentação de 1 bilhão de pessoas no mundo? Enriquecendo o solo com adubo e fertilizantes, responde Paulo Roberto Huertas Arnaez, diretor executivo da Unigel Agro. “Nós já alimentamos 1 bilhão de pessoas e somos a nação com o maior potencial de crescimento porque temos área disponível para produzir”, acredita Arnaez, lembrando que a atividade é responsável por um quarto do total de riquezas do país.  “Neste contexto, é preciso ter um entendimento de que este setor enorme não deveria depender de matéria-prima importada. A produção de fertilizantes deveria ser considerada uma indústria estratégica para o Brasil”, defende. “Depender de quase 100% importado me parece um risco altíssimo”, afirma. Arnaez acredita que a política tributária nacional foi a grande responsável por ferir de morte a indústria de fertilizantes, mas indica também outros problemas como responsáveis pelo cenário. “A gente tem a questão logística. Na Bahia, temos um polo industrial muito forte, você tem a fábrica da Unigel, que é a única produtora nacional de ureia. O país consome 7 milhões de toneladas do produto por ano, e mesmo não tendo condições de atender 100% desta demanda, poderíamos oferecer mais, se não fossem as dificuldades logísticas”, analisa. 

Exemplificando, mesmo estando próxima a diversos portos, a movimentação das cargas hoje é feita por caminhões. “O cenário seria diferente se tivéssemos o estímulo à cabotagem (movimentação de cargas entre portos do mesmo país). Aí nós teríamos condições de embarcar na Bahia e desembarcar no Sudeste, onde essa carga seria distribuída para outros estados de maneira competitiva”, avalia. “O problema é que a cabotagem hoje ainda é mais cara que o envio de caminhão, por falta de concorrência”.

Outro gargalo está no custo do gás natural, que além de ser um combustível é uma das principais matérias-primas para a produção de fertilizantes. No Brasil, a precificação está relacionada ao preço do petróleo. “O gás matéria-prima deveria levar em conta as flutuações da ureia no mercado internacional, não do petróleo”, defende. “Quando ureia está muito alta, a gente consegue participar do mercado, mas não se pode sobreviver só com os preços bons”.

Bahia possui soluções na área química e mineral “A Bahia tem um polo industrial pronto e mão de obra capacitada. Acho que temos os melhores profissionais aqui e em Sergipe”, avalia Paulo Roberto Huertas Arnaez, diretor executivo da Unigel Agro. “Temos um potencial enorme de desenvolver esta indústria pelo acesso à energia limpa. A gente inclusive pode desenvolver a amônia verde e a partir daí, fertilizantes verdes. Não é algo que vai acontecer da noite para o dia, mas é uma tendência irreversível”, acredita o executivo.  

Na frente mineral, as condições também são promissoras. O presidente da Companhia Baiana de Pesquisa Mineral (CBPM), Antonio Carlos Tramm, destaca que o governo do estado trabalha para a criação de um plano de desenvolvimento da cadeia de mineração. “Quando se retira uma substância da natureza, ela vem junto com outras que muitas vezes são tratadas como resíduos. Queremos criar condições para o reaproveitamento disso, seja para a construção, a indústria química ou a produção de fertilizantes”, afirma.  

Na Bahia, já existem iniciativas relacionadas ao uso do pó de determinadas rochas para o enriquecimento dos solos, com os chamados remineralizadores, que prometem repor tanto os macronutrientes, como fertilizantes comuns, quanto micronutrientes. “A ciência indica estes produtos como boas alternativas para o solo e temos potencial para a produção”, diz Tramm.“É um blend com o pó de rocha, em que é possível dosar de acordo com o que cada região precisa, sem empobrecer o solo”. Além disso, a CBPM está trabalhando em um projeto para fomentar a construção de miniunidades produtoras de fertilizantes, que poderão ser instaladas próximas aos polos agrícolas baianos. O engenheiro químico João Alberto Tude, responsável pela condução dos estudos, explica que a diversidade da riqueza mineral do estado pode ser usada para prover diversos nutrientes que são necessários para a agricultura brasileira.  

“Eu diria que hoje a única coisa que falta para tornarmos a Bahia uma potência é um programa estruturado para isso, porque nós temos jazidas identificadas de fosfato, cálcio, calcário e magnésio. Já produzimos ureia e temos potencial para ampliar essa produção”, enumera o pesquisador, lembrando que o potássio, também importante para o campo, está disponível no vizinho estado de Sergipe.