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De grilhões a cerâmicas: escavações no Arquivo Público revelam peças históricas

Fragmentos foram encontrados durante preparação de terreno para construção de refeitório

Publicado em 24 de março de 2019 às 07:00

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO
. por Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO

Quatrocentos anos de vida são suficientes para guardar muitas histórias. A Quinta dos Padres, na Baixa de Quintas, em Salvador, guarda memórias de padres jesuítas que viveram lá por quase dois séculos, até que fossem expulsos pelo Marquês de Pombal. Também tem lembranças do período em que funcionou como leprosário, a partir do final do século XVIII, e como um centro de experimentação agrícola. Nos últimos 39 anos, tem guardado registros que contam milhares de histórias sobre a Bahia e o Brasil, desde que passou a funcionar como o Arquivo Público do Estado da Bahia (Apeb).

Agora, o chão onde foi erguido o prédio do século XVI, tombado como patrimônio histórico e cultural desde 1949, pode dizer ainda mais coisas – e, quem sabe, até trazer novas versões sobre a vida de quem passou por ali ou pela vizinhança. É que, em meio ao entulho retirado de uma parte do terreno, onde está sendo construído um anexo ao Arquivo, operários da obra acharam mais do que terra e pedras: o solo está recheado de fragmentos de peças dos séculos XVII ao XIX.

"São cerâmicas, tem grilhões, moedas de diversos períodos, outros tipos de ferramentas. Acredito que são objetos que datam dos séculos XVII ao XIX, mas a pesquisa é que vai dizer melhor", explica o arquiteto e urbanista Matheus Xavier, chefe de gabinete substituto da Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) na Bahia. 

Para não deixar que os achados arqueológicos fossem descartados junto com o entulho, os próprios operários acionaram funcionários do Arquivo Público, que chamaram o Iphan. Nos dias 19 e 20 de fevereiro foram contadas 128 peças, entre elas estruturas metálicas grandes, cadeados, cachimbos, moedas. Depois, os achados se multiplicaram. São tantos fragmentos retirados do terreno que duas mesas do Arquivo não foram suficientes para guardá-los.

O jeito foi empilhar o material em baldes até que uma equipe de Arqueologia inicie os estudos sobre o material. Enquanto isso, os próprios funcionários separaram os vestígios por tipo. Sobre uma mesa, há pedaços de azulejos que, de acordo com a diretora do Apeb, Maria Teresa Matos, se assemelham com alguns que já faziam parte do antigo refeitório dos jesuítas.

Outros vestígios parecem mais recentes: há pedaços de pratos de louça, cachimbos, o que sobrou de uma colher de metal, uma faca de mesa, um prato e uma caneca do mesmo material. “O pessoal da obra passou a ser parceiro, mesmo. Eles separam o que encontram, limpam e só entregam para o pessoal que trabalha lá poder guardar”, disse um dos 500 pesquisadores que frequentam o Arquivo todo mês.

Valor histórico Mesmo que o significado e a idade dos vestígios ainda sejam desconhecidos, historiadores e arqueólogos já destacam o valor histórico dos fragmentos encontrados. “Aquele prédio, suas paredes e cada cantinho contam histórias inimagináveis”, afirma o professor e historiador Urano Andrade, frequentador assíduo do Arquivo Público. Segundo ele, o Arquivo é o segundo do país em volume de documentação – são 7.360,14 metros lineares de documentos –, perdendo só para o Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro.

Mas, qualitativamente, é o mais importante, porque guarda documentos do período em que Salvador era a capital da colônia. “Da mesma forma que os documentos, caquinhos que se encontram ali também trazem histórias de vida. Ali teve escravos, africanos livres, muitos foram parar ali, fizeram uma greve. Tem muita coisa ali, grilhões, cacos e a própria vida dos que viviam ali”, afirma Urano. O Padre Antônio Vieira, por exemplo, viveu na Quinta por 17 anos – e foi lá que escreveu muitas de suas cartas e sermões.

O historiador Jaime Nascimento, do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), também fala das muitas possibilidades sobre a história das peças. “É justamente através desse material, independente do que seja, louça, prato, garfo, talheres, que vai se ter uma ideia da vida social daquela época, como essas pessoas viviam. Pode até dizer respeito à forma do tratamento médico para os leprosos”, aponta.

Embora o maior volume de fragmentos encontrados durante as escavações seja de cerâmica – 51 vestígios – também há chaves, moedas dos anos de 1768, 1826 e 1970, revestimentos que se assemelham aos da Companhia das Índias, uma espécie de ferrolho ou fecho de janela e até fragmentos de ossos.

“Podem ser ossos humanos, porque o cemitério (Quinta dos Lázaros) só foi aberto depois. Antes, tinha a casa de repouso e os padres tinham o direito de ser enterrados lá. Pode ser também de algum interno do leprosário e pode ser de escravos, porque os jesuítas também tinham escravos”, afirma Nascimento. 

Para Matheus Xavier, no Iphan, no entanto, a maior parte das peças é mais recente. "A maior parte das peças são do século XIX, então possivelmente não sejam do período da escravidão, mas vamos primeiro fazer o estudo e datar a questão histórica", explica Xavier, que também é fiscal do convênio para as obras no Apeb.

Para a diretora do Apeb, Maria Teresa Matos, cabe agora à administração cuidar, além do patrimônio documental e arquitetônico, também do acervo arqueológico descoberto: “Para o Arquivo, nós entendemos que a descoberta desses vestígios é extremamente significativa e, inclusive vai ao encontro das referências históricas que nós temos em relação à Quinta do Tanque, que é considerado um dos monumentos civis mais importantes do período colonial.

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Preservação O ideal em situações como essa, em que vestígios arqueológicos são encontrados durante uma obra, é embargá-la – e, no caso de bens tombados, entrar em contato com o Iphan. É o que explica a arqueóloga Tainã Moura Alcântara, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Ufba (MAE). No caso do Arquivo Público, as escavações no local foram interrompidas logo depois do Carnaval, a pedido da equipe de Arqueologia do Iphan, liderada por Alex Colfas.

Tainã explica que é importante manter as peças onde estão. “A posição onde esse material está no solo diz muita coisa ao arqueólogo. A gente recebe treinamento, percebe as camadas que dizem se é do século XVII, XVIII, se está misturado. Tudo isso, a gente só consegue dizer com o contexto preservado”, explica.

"Foram achados muito interessantes e a gente entende que é uma coisa muito interessante para se fazer uma pesquisa sobre isso", afirma Matheus. Ele ainda não sabe o que será feito das peças, mas não descartou a possibilidade de que elas sejam encaminhadas a um museu. Esse é o desejo da coordenadora de pesquisa do Apeb, professora Rita Rosado. 

A arqueóloga Tainã Moura Alcântara chama a atenção para a possibilidade de que os vestígios até revelem novas histórias. “Esse material arqueológico conta histórias que podem até ser diferentes da história oficial das pessoas que estiveram aqui antes da gente. Preservá-lo é uma questão de respeito às pessoas que viveram antes da gente. Isso nos ajuda como sociedade a ir para a frente, também”, afirma.

De qualquer forma, explica a arqueóloga Tainã, uma destinação só costuma ser dada após o estudo. “Sem o contexto, as peças, por si só, não dizem nada. São simplesmente achados arqueológicos. Nem nos museus de arqueologia a gente faz mais exposições que se mostre só os objetos.  A gente busca compreender aquela sociedade no seu tempo”, explica.

Trilhos, ossada e louças são encontrados na Avenida Sete O lado esquerdo da centenária Avenida Sete de Setembro, no Centro de Salvador, tem sido escavado de segunda a sexta-feira, das 8h às 18h. O trabalho de prospecção arqueológica, que antecede as obras de requalificação no local, já mostram resultados. No final desta semana, o arqueólogo responsável pela pesquisa, Cláudio César Souza e Silva, anunciou os achados: trilhos de bondes, louças e até uma ossada humana.

"Encontramos também parte de estruturas, como essa argamassa vermelha, datada do século XVIII. Os trilhos são, com certeza, do século XIX", explicou o arqueólogo. As equipes vêm trabalhando na segunda etapa da obra, entre a as Mercês e o São Bento. A primeira fase, já concluída, foi da Casa D’Itália às Mercês. A terceira e última parte do trabalho será feita entre o São Bento e a Praça Castro Alves.

O material coletado será analisado por uma equipe de quatro arqueólogos e dois técnicos no laboratório de Arqueologia da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), no campus de Senhor do Bonfim, no Centro-Norte da Bahia. Embora seja naturalmente um campo fértil à pesquisa do tipo, Salvador não possui cursos de Arqueologia – e vai na contramão do restante do Nordeste.

“Salvador tem uma potencialidade arqueológica incrível. Primeiro, porque é a primeira capital do Brasil e ela foi construída para ser a capital. Para além disso, Salvador tem pesquisas de que a Praça da Sé foi uma aldeia indígena anterior à chega dos portugueses”, afirma a arqueóloga Tainã Moura Alcântara, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Ufba. Maria Teresa Matos é diretora do Arquivo Público do Estado da Bahia (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO) Obras no Arquivo custam R$ 2,3 milhões, mas não incluem climatização As obras de reforma do Arquivo Público do Estado da Bahia (Apeb) começaram em dezembro do ano passado. Além da construção de um anexo para funcionar como refeitório, depósito e sanitários – justamente no local onde foram encontrados os fragmentos –, também está prevista a reforma nas instalações elétrica e hidrossanitária, a instalação de um circuito fechado de TV, a pintura geral e a recuperação de todas as janelas, portas e reforma das esquadrias. O investimento é de R$ 2,3 milhões.

A climatização dos depósitos onde ficam os documentos e também das áreas técnicas, no entanto, não está inclusa no pacote, que tem previsão para ser entregue em nove meses, contados a partir de dezembro passado. De acordo com a diretora do Apeb, Maria Teresa Matos, a atual intervenção é considerada uma terceira etapa de obras no Arquivo, mas é necessário mais investimento.

“Novos investimentos estão sendo feitos e nós entendemos que são importantíssimos para a preservação do patrimônio, mas também fundamentais para a preservação do patrimônio arquivístico. Contudo, será necessário dar continuidade a outros investimentos e nós já estamos fazendo a gestão”, afirma.

Ao longo dos 39 anos em que o Apeb funciona na Quinta dos Padres – ou Quinta do Tanque –, houve tentativas de retirar a documentação de lá, justamente porque a umidade no local, onde já houve um tanque, não é propícia à preservação dos documentos.

O cuidado com o acervo é cobrado por pesquisadores: “É necessário um cuidado muito especial com a documentação, porque o local não é adequado e também tem a questão da prevenção de incêndios”, afirma o historiador Urano Andrade. O CORREIO encontrou extintores de incêndio no prédio, mas até que haja novos investimentos, a estratégia para manter os documentos será organizar as estantes de modo a aproveitar a ventilação natural.

Na atual etapa da obra também estão inclusas a iluminação externa, comunicação visual, restauração dos elementos arquitetônicos, restauração de bens artísticos móveis e integrados, além da recuperação de toda a estrutura e cobertura e das instalações mecânicas.

Em setembro do ano passado, o CORREIO mostrou a situação em que se encontrava o Apeb: além da parede descascada, havia fios soltos. Incêndios nunca foram registrados, mas de 2011 a 2013 o lugar, que recebe cerca de 500 pessoas por mês, funcionou sem energia elétrica, por conta do risco de curto-circuito.