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Thais Borges
Publicado em 1 de fevereiro de 2020 às 05:10
- Atualizado há 2 anos
Aos nove meses de idade, o pequeno Gael, filho da escritora baiana Gabriela Lacerda, falou pela primeira vez. Pessoas próximas se espantaram com a rapidez: o que tinha feito ela para que o menino tivesse se desenvolvido tão cedo? “Eu conversava normal com ele. Não estimulava de uma forma diferente, nem nada”, conta, referindo-se ao filho, hoje com quatro anos.
A conexão com o garoto a surpreendia: se cantava uma música em sua mente, instantes depois, escutava a criança cantarolar a mesma canção. “Ele tem uma alta sensibilidade”, diz a escritora, que teve dificuldades para engravidar. Por quase dois anos, enquanto ela tentava ter um filho, buscava por informações. Queria entender como eram essas crianças que nasceram a partir dos anos 2000.
Gabriela encontrou respostas no conceito metafísico das crianças da Nova Era. Pela doutrina espiritualista, há diferentes crianças chegando à Terra: elas foram divididas em três categorias, índigo, cristal, arco-íris.
Índigo seriam aquelas problematizadoras, que costumam ser líderes de sala e não suportam mentira. As cristais são as que gostam de viver em harmonia. Apaziguadoras, não gostam de conflitos. Já as ‘arco-íris’ são ainda mais raras e sensíveis.
E não só sensíveis psicológicamente.“São crianças que têm questões de saúde como rinite alérgica, sensibilidade, intolerância à lactose. São muito sensíveis nesse aspecto também”, completa a escritora, que lançou o livro Conexão com o bebê: antes, durante e após a gestação. A metafísica não é a única área do conhecimento que identifica diferenças nas crianças. Na Sociologia, há a já conhecida divisão das gerações: X, Y e Z, que servem como base para pesquisas em outras áreas. Na Educação, há pesquisas, como a da pedagoga Anelise dos Santos Costa, que relacionam as crianças índigo com as chamadas altas habilidades - ou seja, a superdotação.
Em sua dissertação de mestrado, pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), ela estudou a aproximação entre as duas condições no ambiente escolar. “Inicialmente, uma primeira aproximação (...) ocorre no sentido de perceber os estudantes como partícipes da diversidade escolar, visto que apresentam comportamento diferente dos padrões estabelecidos”, escreve a pedagoga.
Se algumas áreas do conhecimento já estabelecem até uma espécie de categorização, na saúde ainda é difícil apontar marcos temporais. Mesmo assim, os profissionais conseguem visualizar cenários um tanto diferentes dos que existiam há alguns anos.
Doenças psíquicas De fato, a fisiologia do corpo humano, em si, não mudou em tão pouco tempo. O cérebro das crianças e dos adolescentes, enquanto órgão, é igual. Só que a cultura mudou, como destaca o psiquiatra Mateus Freire, do núcleo infanto-juvenil da Clínica Holiste.
Ainda que, na Medicina, não existam estudos que identifiquem marcos temporais para uma ou outra mudança, é possível perceber alterações na disposição das doenças.“Uma coisa que acontece ao longo do século XX é que a gente vai observando um aumento da frequência da depressão, tanto porque as pessoas vivem de forma mais isolada e são mais demandadas, quanto porque a cultura ao redor disso mudou”, diz o psiquiatra. Entre as crianças nascidas dos anos 2000 para cá, já é possível perceber que algumas morbidades aumentaram. Aqueles que hoje são adolescentes, por exemplo, são considerados mais vulneráveis - a partir de uma perspectiva psicológica - em virtude da exposição a redes sociais, de acordo com a enfermeira Flavia Miranda, especialista em UTI Neonatal e Pediátrica e professora do curso de Enfermagem da Unifacs.
“Pode-se considerar que estão à beira de uma ‘crise mental’, pois a rede social mostra sempre indivíduos felizes e sem problemas, algo que produz uma ‘pressão’ para ter a vida perfeita, aumentando dessa forma a ocorrência de depressão e suicídio nesses jovens”, afirma.
Mas, como destaca o pediatra Daniel Becker, médico do Instituto de Pediatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e defensor da chamada Pediatria Integral, ao mesmo tempo, é importante não fazer generalizações.
Até entre uma mesma geração de crianças nascidas em determinada época, há outros aspectos que influenciam: crianças podem ser brancas ou negras; pobres ou ricas. Podem morar em cidades com ótima qualidade de vida ou em metrópoles com altos índices de violência e desigualdade.
Entre as crianças, também há diversas formas de relações sociais.“Numa mesma geração, tem criança que fica assistindo televisão o dia inteiro, outras que ficam na escola o dia inteiro, outras que saem para brincar. Algumas vão ter pais ausentes, outras vão ter pais presentes. Generalizar não é legal, mas é claro que existem traços comuns a essas crianças”, explica Becker. Nativas digitais Uma das diferenças é justamente a presença da tecnologia na rotina dos pequenos. Crianças nascidas de 2010 para cá têm convivência permanente com o celular, a internet e outros aspectos digitais.
O pequeno Bernardo, de apenas 4 anos, pegou o celular da mãe e enviou, ele mesmo, um áudio à reportagem do CORREIO. Era para explicar que aquela não era uma boa hora para a entrevista. Nesta idade, ele já lê tudo, sem soletrar. Se pudesse, teria usado o celular com menos de um ano, mas os pais não permitiram.“Sempre apresentou naturalidade com o celular, tablet, controle remoto... Ficávamos surpresos com a facilidade que apresentava ao manuseá-los. Com um ano e meio, ele identificava meu nome na agenda do celular e ligava para mim no trabalho. Eu não acreditava, até que filmaram para me mostrar”, conta a mãe, a professora Naiá Pedreira.As crianças mais conectadas têm uma tendência a um confinamento excessivo, na avaliação do pediatra Daniel Becker. Nesse contexto, é comum que consumam muitas comidas industrializadas. Tudo isso está diretamente ligado ao crescimento de crianças com tendências a obesidade, sedentarismo, problemas de visão e diabetes.
“Tudo isso é muito variável de acordo com a classe social e a vida, mas essas doenças são relacionadas a um contexto de confinamento, excesso de telas, excesso de químicos como plásticos, falta de convivência com os pais e disruptores endócrinos”, pondera.
Os disruptores são as substâncias químicas que promovem alterações nos hormônios do corpo humano. Há desde substâncias que se acumulam no meio ambiente, no solo e no sedimento dos rios, até no lixo das casas. E eles estão presentes também em materiais usados na rotina das famílias - desde desinfetantes até plásticos em copinhos descartáveis.
Alguns estudos já apontam relações desses materiais também com problemas na tireóide, problemas de crescimento, puberdade precoce, sedentarismo e mesmo o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).
“Essas condições da vida moderna certamente estão adoecendo mais as crianças do que acontecia anos atrás, quando elas existiam de forma esporádica. Não tinha tanta tela. As crianças iam para brincar, pegar carniça, jogar bola, coisa que praticamente não existe mais hoje”, diz.
Doenças antigas Essas doenças não são algo novo. Hoje, no entanto, é mais fácil diagnosticar algumas delas, como o TDAH. Nos últimos anos, foi um dos transtornos que passou a ser reconhecido como um problema de fato.
Esses transtornos não têm apenas causas genéticas, mas é comum que pais e médicos tenham uma necessidade maior de identificar essas alterações através de exames e outros procedimentos clínicos. É nesse contexto que costumam ocorrer até casos de medicalização desnecessária. “O melhor tratamento, nesses casos, é a estimulação cerebral para melhorar o desempenho do processamento de informações, através de psicoterapia”, destaca a enfermeira Flavia Miranda, professora da Unifacs. “Ir ao pediatra só para vacina, papinha e gripe não é legal. Tem alguma coisa errada nessa velha puericultura. A nova puericultura tem todas essas questões ambientais e contextuais que devem ser perguntadas e trabalhadas”, explica o pediatra Daniel Becker.
É por isso que entidades como a Sociedade Brasileira de Pediatria e a Academia Americana de Pediatria chegam a prescrever a natureza, o ar livre, e até mesmo as brincadeiras para as crianças. “Isso traz uma série de benefícios cientificamente comprovados e trazem felicidade para as crianças. Uma criança mais feliz vai ser um adulto mais feliz”, completa Becker.
Entenda a cronologia das gerações X a AlfaGeração X (nascidos entre 1965-1980): a que participou da descoberta da internet e do celular; Geração Y (1981-1996): marcada pelo avanço da tecnologia, com a aparição da TV a cabo, videogame e computador, além de ser uma geração que consegue realizar múltiplas tarefas; Geração Z (1997-2009): acha 'normal' a tecnologia de robôs e computadores; Geração Alfa (após 2009): tem, como característica, a dificuldade em seguir regras e vão atrás daquilo que os mantêm ativos e funcionais na vida. Fonte: Flavia Miranda, professora do curso de Enfermagem da Unifacs e especialista em UTI Neonatal e Pediátrica