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Da Redação
Publicado em 5 de fevereiro de 2022 às 06:00
- Atualizado há 2 anos
O aroma etílico se mistura ao de torresmo fritando na cozinha apertada do casarão. Nas prateleiras de madeira, mais de 50 tipos de cachaças aguardam ansiosamente seus amantes sedentos. Religiosamente às 10 horas, Birita abre a única janela pesada do bar Palácio dos Gatos, no mesmo compasso que destampa uma cachaça de casca de lima e bebe numa só golada, quase saudando outro dia de expediente na bodega mais raiz de Salvador, bem pertinho do Mercado Modelo e Elevador Lacerda. A velha Bahia insiste em permanecer no local, que não é um ponto turístico, mas abriga o maior patrimônio da capital: seu povo. Se ser baiano é um estado de espírito, o Palácio dos Gatos é uma grande mesa branca que mistura poesia com cachaça.
De advogado a guardador de carros, o local abriga baianos de todas as profissões, estilos e nacionalidades. Juntar este balaio rende muita resenha, boas histórias e muita culhuda também. Afinal, como diria o escritor Franciel Cruz, antes de mais nada, o baiano é um culhudeiro.
“Já tive 1.286 mulheres, fora as travestis, tenho 16 filhos reconhecidos e, mesmo assim, me considero virgem. Minha vida é ‘sexiar’ e tomar cachaça aqui no Palácio. Minha performance na cama é graças a uma pinga daqui chamada CGC. Levanta qualquer defunto. Se não levantar, faz que nem eu: minta”, disse Zoião, guardador de carros, enquanto tomava a tal cachaça de cor avermelhada, uma receita patenteada do bar, que mistura canela, gengibre e cravo (por isso CGC).
No mesmo local, de terno e gravata, um advogado ri das peripécias sexuais de Zoião, enquanto apoia seu copo de pinga num improvisado balcão com grades de cerveja.“Toda vez que vou fazer alguma audiência, venho aqui no Palácio dos Gatos tomar um copinho de cachaça e ouvir essas conversas que só tem aqui. Acredite, aqui eu aprendo mais que nos livros de advocacia e me ajuda na desenvoltura na hora de fazer alguma audiência. Não sei como isso aqui nunca foi falado na imprensa ou pelos livros. Aqui é o reduto dos baianos mais genuínos. O Palácio dos Gatos deveria ser tombado”, disse o advogado, que pediu para não colocar seu nome.“Não quero ninguém me chamando de cachaceiro”, explica o doutor, que tem escritório no Comércio. O Palácio dos Gatos mistura poesia, cachaça e um bando de maluco beleza. Até Bob Marley tem lá (Foto: Sora Maia/CORREIO) Passou batido De fato, um lugar tão antigo e pitoresco parece não existir para os soteropolitanos. Até Jorge Amado, um desbravador dos lugares mais etílicos e culturais de Salvador, deixou o Palácio dos Gatos de fora do seu livro “Guias de Ruas e Mistérios”, onde ele praticamente encarna o guia turístico e mostra o que tem de melhor em Salvador. Nem Vadinho, tampouco Quincas Berro D’Água ou Tereza Batista ganharam algumas linhas nos seus respectivos romances tomando uma no lugar. Ao que tudo indica, passou batido. Nenhuma linha sobre o sobrado datado de 1912, mas que abriga o bar desde os anos 40.
A história do lugar acaba sendo contada pelos próprios frequentadores. Atual dono, Cid comprou o local há 21 anos, mas leva com ele a história e costumes do lugar. “Procuro manter como foi há 75 anos, incluindo a produção das cachaças com ervas. Os clientes gostam assim. Quando cheguei, não existiam mesas e cadeiras no lado de fora. Era todo mundo em pé bebendo. Foi a única coisa que modifiquei. As outras coisas, ainda estão aqui desde o dia que adquiri”, disse Cid.
Beco dos Cornos O Palácio dos Gatos fica localizado na Rua Conselheiro Dantas, mais conhecido como Beco dos Cornos, próximo ao plano inclinado. A fundadora foi dona Maria Lourdes, que, segundo os frequentadores mais antigos, comprou o sobrado de alguns alemães que vendiam tecidos no local.“Dona Lourdes era uma senhora de 120 quilos que estava sempre sentada num banco atrás do balcão. Ela tinha mais de 50 gatos aqui, por isso o nome do lugar. Era uma senhora maravilhosa, gostava de servir de prostituta a marinheiro. Só não gostava quando alguém maltratava seus gatos, aí ela dava pra ruim”, lembra o aposentado Carlos Lima, 72 anos, que há 56 frequenta o lugar.Nos anos 80, Lourdes vendeu para Seu Nelson, que há 21 anos vendeu o ponto para Cid.
Lima, que sai da Baixa de Quintas para tomar sua cachaça e cerveja no local, diz que a turma não se importa do lugar não ser tão conhecido. Muito pelo contrário. “Ninguém aqui tem interesse que o Palácio seja tão conhecido, por um motivo: quem vem aqui não é turista, mas trabalhadores das docas, comerciantes, advogados, estudantes e todo tipo de trabalhador do Comércio que quer tomar uma na hora do almoço ou durante o expediente sem ser flagrado. Já vi grandes nomes como Nelson Rufino e Camafeu de Oxóssi bebendo em pé aqui, mas eles também respeitavam a discrição do lugar”, conta Lima, que costumava dar suas escapadas quando trabalhava na Codeba (Companhia das Docas do Estado da Bahia).
“Eu sempre pedia licença para meu chefe, dizendo que iria tomar um cafezinho. Me picava para tomar uma pinga no Palácio dos Gatos. Um belo dia, meu chefe me seguiu e entrou no bar comigo. Dei uma piscada para o funcionário e pedi ‘aquele cafezinho para mim e meu chefe’, imaginando que ele sacaria. O cara foi e serviu uma Catuaba. Pensei que perderia o emprego, mas depois daquilo meu chefe começou a ir tomar aquele ‘cafezinho’ comigo também. Ele só não vem mais porque já morreu. Este lugar contagia todo mundo”, lembra Lima. Birita, o garçom, serve os clientes na mesma velocidade que bebe (Foto: Sora Maia/CORREIO) 'Cura da covid' O carro chefe do bar são as pingas. Na verdade, a cachaça é uma espécie de insumo para uma verdadeira alquimia farmacológica. No andar de cima do sobrado acontece a mágica. Lá, verdadeiras combinações entre ervas e aguardente se transformam em cachaças saborosas e, segundo os degustadores, remédios naturais. Eles utilizam a Abaíra como matéria-prima.
Contudo, são as raízes, ervas e outros produtos naturais que se transformam em Elixires como Pau de Rato, Pau de Resposta, Viagra (uma bomba com todas as ervas da casa), Catuaba, Casca de Lima, Pratudo, Quebra Facão, Mão de Vaca , Catinga de Porco, Cambuí, entre outros. Cada dose, bem caprichada num copo americano, custa R$ 2,50. A garrafa varia entre R$ 20 e R$ 30, a depender do tipo.
Quem frequenta o lugar garante que as cachaças, além de gostosas, possuem efeitos medicinais. Todos acreditam que unem o útil ao agradável no Palácio dos Gatos. "Aqui é bar e farmácia ao mesmo tempo. Acho que a cura para a covid-19 está numa dessas garrafas e ninguém sabe. Traga um cientista aqui, coisinho", garantiu Bolsetinha. Vale lembrar que não existe nenhuma comprovação científica que álcool previne a covid.
Bob Marley conhece Enquanto se equilibrava na muleta e tomava um Cambuí, um senhor que aparentava ter 60 anos encarava para nossa fotógrafa Sora Maia, que estampava uma camisa do Pink Floyd. Com um gorro com as cores do Olodum, ele se escorou no balcão e apontou para a profissional.“Já toquei com eles (Pink Floyd) em Juazeiro. Prazer, meu nome é Bob Marley. Não me fotografe, não quero que ninguém saiba que estou vivo”, disse o homem que jura ser a encarnação do rei do reggae.Bob alega ter sofrido um AVC há quase um ano e estava desenganado. “Quando acordei, pedi uma cachacinha do Palácio dos Gatos. É medicinal, voltei a andar por causa desta pinga. Daqui, só não posso comer torresmo, pois é muito gorduroso para um homem de minha idade”, disse Marley. Iguarias Tomar uma pinga de barriga vazia é perigoso. Para isto, o Palácio também tem uma cozinha peculiar. Dona Ninha é encarregada de fazer todas as iguarias do lugar. O cardápio é variado: moela, ovo cozido, torresmo, carne de fumeiro, calabresa, passarinha, jiló, cebola em conserva, maxixe cozido e coxa de frango.
“Nossa cozinha não para. Não temos um prato, mas muita gente vem almoçar nossos tira-gostos e comer água, não necessariamente nesta ordem”, disse Ninha. “Não posso me queixar do trabalho. Aqui tenho liberdade e alegria. Dou risada o dia inteiro com estas ‘peças’ que chegam aqui para beber”, completa.
O Palácio dos Gatos tem um Recursos Humanos diferenciado. Tal qual a filosofia do Google de deixar seus funcionários bem à vontade, a bodega vai além: o funcionário também bebe.“Ô meu filho, você acha que meu apelido é Birita por quê? Você entra na farmácia para tomar remédio. Aqui é a mesma coisa. Preciso estar no mesmo clima dos clientes para servi-los bem”, brinca Birita, enquanto oferecia uma dose de cachaça para este recatado repórter.“Você vai ver como vai fluir sua matéria. Você vai experimentar o CGC, Casca de Lima e o Viagra”, ofereceu, junto com um prato combo repleto de tira-gostos. Bebi para não fazer desfeita e acabei levando duas garrafas para casa.
O costume do Palácio é todo mundo aglomerado dentro da birosca, em pé, como num balaio etílico. Com a pandemia, muitos trocaram a tradição pelas mesas afastadas do lado de fora, bem no Beco dos Cornos. Aliás, advertimos: nem todos os clientes usam máscara. Distanciamento social é outro desafio, já que o grande barato é beber em pé, um no cangote do outro. Lá todo mundo jura de pé junto que nunca pegou covid-19.
Jutaí é um desses. Ele inclusive teria uma missão especial: abastecer e dar manutenção aos transatlânticos que atracam no porto nesta temporada de cruzeiros marítimos. Porém, com o novo surto de covid nas embarcações, acabou sem ter o que fazer.
“Era para estar de plantão carregando estes navios, mas chegaram empesteados de covid. Aproveitei esta hora do almoço para abrir o apetite aqui no palácio e bater um papo com os amigos. Para todos os efeitos, estou lá no Porto”, disse Jutaí, enquanto o movimento crescia no local, numa sexta-feira qualquer de verão. "Esse movimento nem se compara aos velhos tempos, quando eu trabalhava viajando em navios. Quando voltava, pegávamos as meretrizes da Ladeira da Montanha e descíamos para cá. Era um carnaval fora de época", lembra Jutaí, saudoso. "Nessa época não tinha uma quenga pobre nesse Comércio. Só voltava pra casa três dias depois". Enquanto pessoas se aglomeravam contando culhudas e vantagens, riam, bebiam e jogavam carteado nas mesas do Palácio, um senhor de pernas cruzadas observava o movimento na última mesa, isolado. Na mesa, uma cerveja, um copo de cachaça e três carteiras de cigarro empilhadas.
Vestido de branco e paletó de linho, guias de Ogum, sapatos bico fino de onça e um chapéu panamá com uma fita vermelha, ele gargalhava um riso solto, mostrando falhas na dentição. Antes que me levantasse para entrevistá-lo, ele toma o último gole de pinga, se levanta e caminha em direção à Ladeira da Montanha, num ritmo que parecia estar dançando a Ópera do Malandro, de Chico Buarque: “o malandro, na dureza, senta à mesa do café. Bebe um gole de cachaça, acha graça e dá no pé..." Sinceramente fiquei sem saber se, de fato, aquele homem estava ali ou era obra da cachaça que tomei. Ô Birita, desce mais uma!
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Efeitos medicinais de algumas cachaças, segundo o palácio dos gatosPau-de-rato: É utilizada a casca da árvore Catingueira. Bom pra rebater aquela ressaca que dá dor de barriga. Pau Resposta: Preferido dos estudantes. Cachaceiros asseguram que possuem o mesmo efeito do Red Bull. CGC: Uma mistura de canela, gengibre e cravo. Servido gelado, é afrodisíaco. Dá aquele apetite sexual esquecido na juventude. Viagra: Uma bomba com todas as ervas da casa. Levanta qualquer defunto. Quebra Facão: Bateu aquela gripe? A turma do Palácio garante que esta cachaça com limão e mel é um etílico remédio. Tiririca de Babado Antioxidante, o detox dos cachaceiros do Palácio. Casca de Lima: Servido gelado, bom para o coração. Atenção: Nenhuma definição acima tem comprovação científica. Palácio só fechou no início da pandemia Em 75 anos de funcionamento, o Palácio dos Gatos só deixou de vender suas especiarias etílicas no primeiro período da pandemia, quando todos os restaurantes e bares fecharam. "Foram alguns meses enlouquecendo dentro de casa. Sentia falta disso aqui, não conseguia nem beber de tristeza. Mas levamos e sobrevivemos", disse o gerente Birita, que viveu neste período do auxílio emergencial, assim como os outros três funcionários da bodega.
Com a abertura gradativa, eles adotaram o procedimento ‘Vá beber pra lá’. Ele só abriam a única janela do bar e vendia as cachaças num copo plástico, quase um delivery. "Depois foi liberada a abertura e voltamos com todo gás. Sobrevivemos", completa Birita. De fato, não foi fácil sobreviver neste período pandêmico. Na última pesquisa da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), em março do ano passado, 69% dos bares e restaurantes da cidade fecharam as portas ou estavam próximos disso, além de 87% dos estabelecimentos terem demitido pelo menos um funcionários.
No mês passado, ainda segundo a Abrasel, pela primeira vez desde o início da pandemia "há mais estabelecimentos que apontaram ter obtido lucro (34%) do que os que disseram ter realizado prejuízo (31%) no período de um mês – outros 34% ficaram em equilíbrio", como apontou a Abrasel, em nota. O recorte é nacional. Procuramos a Junta Comercial do Estado da Bahia (Juceb), para sabermos quantos bares temos em funcionamento na capital, mas não obtivemos resposta. Pelo menos o Palácio dos Gatos está lá, firme e forte.