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Conheça a sambadeira e ceramista de 101 anos que recebeu título Honoris Causa da Ufba

Dona Cadu esbanja alegria e talento e é um verdadeiro patrimônio do Recôncavo baiano

  • Foto do(a) author(a) Carolina Cerqueira
  • Carolina Cerqueira

Publicado em 4 de setembro de 2021 às 05:00

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: Arquivo pessoal/Instagram

O rosto não esconde as marcas do tempo, mas o corpo ainda é sinônimo de vitalidade. A energia e disposição de Dona Cadu, aos 101 anos, são de dar inveja a qualquer um, e somente uma fratura no fêmur foi capaz de fazê-la sossegar. Pela primeira vez em mais de 90 anos, a rotina diária de atravessar a rua e dar vida a panelas e outros utensílios de barro em sua oficina foi interrompida. Mas ela não vê a hora de poder voltar a fazer as duas coisas que mais lhe dão alegria: trabalhar com o barro e sambar. 

A ceramista, sambadeira e também rezadeira Ricardina Pereira da Silva, mais conhecida como Dona Cadu, não chegou nem mesmo a frequentar a escola, mas recebeu, nessa sexta-feira (3), o título de Honoris Causa da Universidade Federal da Bahia (Ufba). A cerimônia virtual aconteceu através do canal TV Ufba no YouTube. O título de honra é concedido à personalidade de grande destaque ou importância por seu trabalho.

"Estou muito feliz, muito satisfeita com esse documento!", disse ela, durante o evento. Também fez questão de cantar um samba, ditando o ritmo na palma da mão. Entre os participantes, o reitor João Carlos Salles e o professor Carlos Alberto Etchevarne, autor da proposta do título. 

Carlos foi visitar a oficina de Dona Cadu em 1993, quando fazia pesquisas para seu livro sobre cerâmica. O encanto foi imediato, e os dois se tornaram grandes amigos. “Fiquei muito impressionado com o tipo de manejo que ela tinha sobre o barro, que, em poucos minutos, se transformava em uma panela. Sentada no chão, ela dava forma ao objeto sem nenhum instrumento, somente com as mãos, demonstrando uma habilidade incrível”, conta. 

Além do título concedido pela Ufba, Dona Cadu também acumula o Honoris Causa da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), além de homenagens como um selo com seu nome, feito pelo Centro de Culturas Populares e Identitárias CCPI/Secult/Bahia, e o Memorial Dona Cadu, localizado em Coqueiros,  povoado de Maragogipe. Dona Cadu participou de vários filmes, documentários, recebeu diversas menções honrosas de escolas, eventos e grupos culturais. É tema de livro, teses, inspiração para ceramistas e artesãos.

Além de fazer as panelas, Dona Cadu também é cozinheira de mão cheia. Seu carro-chefe é a moqueca. Pode ser de peixe, camarão ou de marisco, mas uma coisa não pode faltar: a pimenta. A combinação do talento de cozinheira com o talento de ceramista para fazer uma boa panela de barro é de dar água na boca. 

O pai trabalhava na roça e também numa pedreira; a mãe era dona de casa e cuidava dos 10 filhos. Nascida no município de São Félix, Cadu mudou-se ainda jovem para Coqueiros e conquistou o Brasil todo com a sua arte. O trabalho é de excelência e ela sabe muito bem disso; não disfarça. 

Descobriu o universo da cerâmica aos 10 anos, observando uma vizinha esculpir; até que um dia resolveu experimentar. A moça passou a lhe ensinar, mas Dona Cadu conta que, em poucos dias, já fazia panelas melhores que a vizinha. Foi do barro que ela tirou o dinheiro para ajudar em casa e, depois, criar seus 10 filhos, dois da barriga (Balbino e Lúcia) e oito adotados. Também contou com a ajuda do marido, que era pescador e já faleceu. Hoje, tem também três netas e dois bisnetos.  Foto: Arquivo pessoal/Instagram A ceramista logo atraiu a atenção de professores de universidades, que passaram a visitá-la em sua humilde oficina de cerâmica, que fica em frente à sua casa, ambas nas margens do Rio Paraguaçu. Fala com orgulho sobre seu trabalho e ensina suas técnicas a quem quiser saber. Sempre recebeu alunos, professores e jornalistas, deixando que a fotografassem, filmassem, fizessem perguntas e tomassem nota. Ela adora dar entrevistas, ver seu rosto estampado em reportagens e sente prazer em poder compartilhar seu trabalho e sua história de vida.   Suas artes eram vendidas nas feiras, para as quais transportava as panelas na cabeça mesmo. Sua lábia e seu encanto eram ferramentas valiosas. “Eu chegava assim: ‘Freguesa, não quer comprar essa panela para fazer uma moqueca ou um feijão delicioso, não’?”, conta, rindo. Hoje, trabalha por encomenda e vende para restaurantes de comidas típicas de Salvador e outras localidades. 

Com a fama, atrai turistas curiosos que vêm de todos os cantos do Brasil, principalmente do Sul e Sudeste, que também fazem questão de levar uma peça na mala. A casa e a oficina se tornaram pontos turísticos de Coqueiros. Basta passar na porta que ela estará lá. Dona Cadu recebe a todos com simpatia e generosidade e vai logo presenteando quem chega com sua marca registrada: a risada cativante que marca seu bom-humor.

Tradição O samba está no sangue. Seu pai e sua mãe eram amantes das rodas de samba e ela seguiu a tradição. Basta ouvir um pandeiro e um cavaquinho de longe que Dona Cadu larga tudo para exibir seu talento e alegria na roda. Começou frequentando rodas de samba em ocasiões especiais, como caruru de São Cosme e Damião e novena de Santo Antônio, mas hoje é líder do grupo Filhos de Dona Cadu, que tem seu filho como vocalista e sua filha como sambadeira. Até Curitiba e São Paulo já tiveram o prazer de ver a centenária sambar. 

“Samba é cultura, alegria e fonte de renda para o nosso povo”, diz Dona Cadu. E como se não bastasse ser sambadeira, ela fez questão de inovar e provar, mais uma vez, que é única: criou seu próprio estilo de samba. É o samba de pulinhos, como ela chama. No meio da roda, ao som dos batuques, Cadu se solta e esbanja satisfação ao pisar o chão e dar pulinhos, levando a mão ao solo. A inspiração veio das cerimônias do candomblé, que ela frequentava junto com o marido, apesar de ser católica. “Eu achei curioso e resolvi misturar com o que eu gosto”.  Foto: Arquivo pessoal/Instagram O samba vai seguir como tradição na família, mas ainda não é possível dizer o mesmo da cerâmica e da reza, que ela aprendeu com o pai. Dona Cadu conta que trabalhar com o barro não faz os olhos dos filhos e netos brilharem como os dela e, por isso, faz questão de compartilhar seu conhecimento a quem se interessar. Utiliza seu espírito de liderança para ensinar as outras mulheres da região. O objetivo é, assim como no samba, não deixar a cerâmica morrer, não deixar a cerâmica acabar. “Isso aqui é ouro! E o trabalho com o barro é para todos, homens e mulheres, não tem que ter vergonha de nada!”, diz ela. 

A pandemia acertou em cheio a rotina de Dona Cadu. As muitas visitas que recebia se transformaram em acenos da varanda de casa atrás de uma máscara que esconde o sorriso. As idas à oficina ficaram escassas e, em uma das ocasiões, um paralelepípedo fora do lugar levou a ceramista ao chão. A fratura no fêmur impôs limitações e fez Dona Cadu, sempre tão independente, ficar sob os cuidados da neta, Luana, com quem mora. 

Agora, não vê a hora de poder voltar a sambar e fazer panelas. Não para de falar nisso e chega a se emocionar. “Eu rezo todos os dias para isso tudo acabar e eu voltar para a minha rotina. Eu faço por amor, não é só por dinheiro. Meu trabalho é a minha vida”, diz ela. Mas, apesar da fase difícil, Dona Cadu não abandona aquilo que diz ser o segredo para chegar aos 101 anos: a alegria de viver. Entre uma pergunta e uma resposta, ela não perde a oportunidade de fazer graça e dar aquela gargalhada gostosa. “Eu nunca deixei a tristeza fazer morada em mim”.   

*Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro