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Georgina Maynart
Publicado em 10 de dezembro de 2018 às 06:00
- Atualizado há 2 anos
Licuri não é coco, mas pode ser transformado em bebida. Cerveja, e das boas. É isso o que estão provando os produtores rurais da Cooperativa Coopersabor, Cooperativa de Produtores Rurais de Monte Santo, cidade a 350 quilômetros da capital baiana. Eles estão aproveitando o crescimento do consumo de cervejas artesanais no Brasil – e também no mundo – para agregar valor à produção da fruta típica do Caatinga e aumentar a receita dos cooperados. E não só eles. Outros sabores típicos do campo baiano, como o umbu e o cambuí, estão sendo transformados em cerveja, agradando paladares diversos e abrindo mercados para a agricultura familiar do estado. >
A Coopersabor demorou um ano fazendo testes e experimentos. Eles conseguiram desenvolver uma bebida marcante e refrescante. O sabor harmoniza o malte com as caraterísticas típicas do licuri, comum em todo o Nordeste. “O licuri é uma palmeira típica da caatinga. Nós já produzimos doces, geleias, biscoitos, cosméticos e até azeite de licuri. Pensamos em criar outros produtos com maior potencial econômico, daí surgiu a cerveja”, afirma Farnésio Braz, técnico da Coopersabor.>
A principal matéria-prima é colhida na zona rural pelos agricultores de 120 grupos de geração de renda. São associações formadas por cerca de duas mil famílias. Farnesio Braz exibe a cerveja feita com licuri (foto: André Frutuôso / Divulgação) >
Nesta região semiárida do sertão do São Francisco, o litro do licuri in natura é vendido por preços que variam de R$ 5 a R$ 50. Depois de enviar as amêndoas para São Paulo, onde são processados em uma agroindústria de Araraquara, a garrafa da cerveja com 500 ml chega ao mercado por R$ 25.>
O beneficiamento agrega valor ao produto e facilita a comercialização. O primeiro lote com mil garrafas foi vendido em poucos dias durante a Fenagro, feira agropecuária realizada em Salvador na semana passada. Agora, os produtores planejam produzir três mil garrafas por mês a partir de janeiro de 2019.>
“Está sendo um sucesso total, com boa aceitação. Testamos na Fenagro e a avaliação do público foi excelente. Isso reforça a nossa confiança no potencial do licuri. Já estamos pensando em explorar o mercado, ampliar a comercialização, não apenas para a cooperativa, mas para os cooperados, expandido os benefícios para outros moradores da caatinga”, completa Braz.>
A cerveja leva malte de cevada, aveia, lúpulo e extrato aquoso de licuri. O processo usado na fabricação é o Blond Ale, que resulta em uma cerveja estilo belga, com coloração dourada, sabor sutil, leve, e com o aroma especial da fruta.>
Cerveja de índio O cambuí, usado para a beberagem pelos índios da Caatinga agora é usado para fazer cerveja (fotos de André Frutuôso / Divulgação) Atento aos sinais do emergente mercado das cervejas gourmet, há quatro anos, o índio Otto Payaya, que vive na Chapada Diamantina, decidiu customizar uma antiga tradição dos povos indígenas da América do Sul.>
Inspirado no antigo Kauin, bebida alcoólica feita através da fermentação da mandioca ou do milho, o índio criou uma nova cerveja, a de Cambuí.>
“Quando a gente fala que índio produz cerveja as pessoas se assustam, mas na verdade esta é uma tradição de meus ancestrais, que já produziam cerva com frutos nativos da chapada”, diz Payaya. “Chamávamos de Cauim, que pra gente significa o fruto verdadeiro. Sempre produzimos para fazer misturas e beberagem. Mas agora decidimos usar o sistema de fermentação caseira, usando dois tipos de malte e acrescentamos os frutos do cambuí”, completa.>
O cambuí é uma frutinha comum na região de Utinga, a 440 quilômetros de Salvador, uma área de transição entre o Cerrado e a Caatinga. Cheirosa, ela brota na árvore de mesmo nome e costuma atrair a atenção dos pássaros que disputam os frutos vermelhos e amarelos.>
A cerveja de cambuí é pilsen, com fermentação de fundo, o que em geral resulta em uma bebida mais amarga e de espuma cremosa.>
A cerveja está chegando ao mercado com o nome de Kauin Eté. As garrafas com 300 ou 600 ml estão sendo comercializadas por preços que variam de R$ 18 a R$ 25. Na última edição da Fenagro, cerca de 300 garrafas foram vendidas em menos de dois dias. O plano de Payaya é expandir os negócios usando outras 25 espécies de frutos regionais.>
“Todas as cervejas que fabricamos são vendidas. A gente quer crescer, produzir um pouco mais, de forma controlada e artesanal, mantendo o sabor pitoresco. Por que só usamos frutos nativos”, conclui o índio, que aceita encomendas por email e envia as garrafas pelos correios. Ele não revelou quantas garrafas vendeu desde que desenvolveu a receita.>
Os remanescentes dos povos Payayá vivem numa área entre os municípios de Andaraí e Wagner, às margens do Rio Utinga, região central da Chapada. Além de bebidas, mantém o extrativismo, a agricultura de subsistência, e a produção de mudas de plantas como pau brasil, jacarandá e ipê.>
Umbu>
Há tempos a imensa copa da árvore do umbuzeiro não gera apenas sombra e os suculentos frutos para os agricultores da região de Uauá, Curaçá e Canudos, no Nordeste da Bahia. Desde que começaram a produzir geleias e doces com o frutinho, os agricultores, ligados a Cooperativa Coopercuc ganharam o mundo e não pararam mais de criar produtos inovadores. Foi assim que em 2015 eles passaram a produzir a cerveja de umbu. O primeiro lote tinha apenas mil unidades. Hoje eles já chegam a fabricar 20 mil garrafas por ano.>
“A gente fornece para a Bahia e para outros estados. A ideia é otimizar ao máximo a utilização de todo o umbu colhido na região”, afirma Emanuel Messias, cervejeiro e integrante da Coopercuc. Os 270 produtores cooperados de 18 comunidades processam mais de 160 toneladas de polpas de umbu por ano. Emanuel Messias, cervejeiro e integrante da Coopercuc, ajudou a criar a cerveja de Umbu como forma de aproveitar ao máximo a potencialidade da fruta (Foto: André Frutuôso / Divulgação) >
A cooperativa ainda não possui agroindústria para processar a cerveja, por isso os frutos são enviados para uma cooperativa do Rio Grande do Sul que faz o processamento da bebida. A marca Gravetero acompanha a cerveja e todos os outros produtos fabricados pela cooperativa. A cerveja tem estilo Farmhouse Ale, que significa “casa da fazenda”, e destaca o processo artesanal, com uso de especiarias. É um estilo de cerveja que envolve um processo relativamente simples, em fermentação de altas temperaturas, e gera uma bebida densa, com boa formação de espuma e coloração dourada, meio turva.>
A bebida leva malte de cevada, malte de trigo, malte de centeio, lúpulo e levedura, além da polpa de umbu. O sabor da fruta se sobressai, formando um amargor moderado e tornando a cerveja marcante. A garrafa de 500 ml está sendo vendida por R$ 25.>
Agora os produtores rurais já estão pensando em trazer novos sabores da Caatinga para as cervejarias. “A gente está começando a experimentar o maracujá da caatinga, ou maracujá do mato, que também é uma fruta da região. Já produzimos geleias e doces com esta fruta e vamos testar com a cerveja também”, adianta Messias. A venda da cerveja gera uma receita bruta de 500 mil reais por ano para a cooperativa.>
Selo diferenciado>
As três cervejas artesanais citadas nesta reportagem circulam no mercado com um detalhe em comum, o selo de produtos gerados pela agricultura familiar. Elas fazem parte de um projeto de incentivo aos pequenos produtores e conta com o apoio da Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR) e da Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR).“O mercado de cervejas artesanais, e de outras bebidas como cachaças, tem crescido e o consumidor quer entender cada vez mais como é feito esse processo, quer ter certeza que esse processo de fato é artesanal, que tem qualidade. Daí temos apostado nessa produção, não só com os produtos secos, mas com os produtos resfriados e também com a linha de bebidas alcoólicas, sucos naturais e polpas de frutas”, afirma Wilson Dias, diretor presidente da CAR.O projeto incentiva a utilização total dos frutos da Caatinga e do Semiárido, não apenas para fabricação de bebidas. “É importante que possamos ter no conjunto da agricultura familiar uma oferta de produtos diversificados que vai desde a cerveja de licuri até o óleo do licuri; desde o doce de umbu até a cerveja de umbu. Tudo para que possamos oferecer ao consumidor a possibilidade de comprar vários produtos de matérias-primas da biodiversidade da Bahia”, completa Dias.>
Associação reúne cervejeiros artesanais>
O gosto pelas cervejas artesanais fez um grupo de apaixonados por este estilo de bebida criar a ACERVA, Associação de Cervejeiros Artesanais da Bahia. É uma espécie de confraria que começou em 2007 com um grupo formado por quatro amigos. A ideia foi ganhando força e em 2013 eles formalizaram a associação.>
Atualmente a Acerva conta com 130 sócios de várias partes da Bahia, entre apreciadores, produtores de cerveja, donos de bares especializados e sommeliers. A associação promove ao longo do ano cursos, wokshops, festivais e treinamentos sobre cervejas artesanais.“O mundo da cerveja artesanal é gigante. E é um caminho sem volta este crescimento do mercado da cerveja regional, não é apenas um hype, algo passageiro, veio para ficar. Tanto que existem hoje na Bahia nove cervejarias artesanais com registro no Ministério da Agricultura. E esta semana recebemos a notícia que será aberta uma nova loja de insumos de cerveja em Vitória da Conquista”, conta o analista de sistemas Anderson Martiniano, um dos diretores da Acerva.No último fim de semana, a associação realizou em Salvador o VII Festival de Cerveja Artesanal da Bahia, no bairro do Costa Azul. O festival contou com 21 estilos de cervejas artesanais. A capital baiana conta atualmente com seis pontos de vendas de cervejas artesanais. Na cidade existem ainda três lojas especializadas na venda dos ingredientes para fabricação da bebida.>
Entenda a diferença>
Os quatro ingredientes básicos de uma cerveja são água, malte, lúpulo e fermento. O malte é obtido a partir da dessecação de cereais. Já o lúpulo é um conservante natural extraído da planta de mesmo nome.>
Mas, além da matéria-prima, as cervejas podem ganhar estilos diferenciados dependendo do modo de fabricação. Elas podem ser classificadas como Ales ou Lagers, a depender do tipo de fermentação, teor de álcool e coloração.>
A família Lagers é a mais consumida no Brasil. Possui fermentação em temperatura baixa, de 6 a 12 graus, e o fermento se acumula no fundo dos tanques. Nesta família estão incluídos mais de 10 tipos de cervejas, entre elas a pilsen, premium, malzbier e a tradicional bock.>
Já a família Ale é produzida em temperaturas altas, entre 15 e 24 graus. Com uma fermentação quente, a bebida apresenta o sabor mais acentuado e encorpado do lúpulo e das frutas. Podem ser claras ou escuras. Nesta família estão incluídas as cervejas Altibier, mais comuns na Alemanha, elas são consideradas cervejas velhas, pois demoram mais tempo para maturar.>
Cresce consumo de cerveja >
Uma pesquisa realizada pela empresa de consultoria Kantar Worldpanel, revelou que o consumo de cerveja, tanto artesanais quanto industriais, tem aumentado no Brasil. Os dados mostram que o consumo da bebida cresceu mais de um ponto percentual entre 2016 e 2018, alcançando 63,4% dos domicílios brasileiros este ano.>
O levantamento também mostra que o brasileiro desembolsou em média R$ 342 este ano com a bebida. Cerca de 64% deste volume são consumidos fora do lar. Entre as pessoas que consomem em casa, 85% bebem durante as refeições principais, sendo que 22% harmonizam com churrasco.>
Os dados revelam ainda que para 62% dos consumidores o que mais pesa na escolha é o sabor da cerveja.>
Uma outra pesquisa, realizada pela associação comercial americana Brewers Association, mostrou que os produtos gerados pelas cervejarias artesanais já representam 23,4% do mercado global cervejeiro. Ano passado, a produção deste tipo de cerveja registrou um faturamento estimado em US$ 26 bilhões. Cerca de 76% saíram de micro cervejarias e dos brewpubs, como são chamados os bares que produzem a própria cerveja e vendem diretamente para o consumidor.>