Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Publicado em 13 de dezembro de 2020 às 07:00
- Atualizado há um ano
Se a casa de número 71 da antiga Rua dos Capitães pudesse falar, teria muitas perguntas a fazer. Começaria estranhando o silêncio. Cadê todo mundo? Já faz tempo que a família Barbosa não vive mais aqui, mas onde estão os estudantes de Direito e os visitantes que costumavam descer a rua estreita do Centro Histórico para aulas, palestras, ou para ver de perto os óculos e outros objetos pessoais do antigo e ilustre morador? Que clarão é esse que vem do teto, além da chuva que molha toda vez que o tempo fecha? E o que diabo significa BDM, riscado e depois apagado nas paredes de fora?
Faz 171 anos que o casarão de paredes brancas e portas e janelas verdes testemunhou o nascimento de Ruy Barbosa, o primogênito de Maria Adélia e João José Barbosa de Oliveira. Se chovia ou fazia sol naquela segunda-feira, 5 de novembro de 1849, dificilmente saberemos. Os jornais diários da época encontrados falavam de economia, preços de algodão, açúcar e tabaco.
Tantos números, contudo, não dariam conta de descrever a alegria que tomou conta do lugar com o nascimento da criança. Testemunhas, mesmo, só as paredes da casa, o próprio casal e o conselheiro Albino José de Oliveira, que recebeu do primo João José uma carta com a notícia do nascimento de Ruy, escrita 14 dias depois, em 19 de novembro: “Meu primo estimado. Tem você mais um Primo, porque, como lh’o participo, minha mulher, sua prima, em 5 deste mez, deu à luz, felizmente, a um menino”, dizia o bilhete. Em 19 de novembro de 1849, o pai de Ruy Barbosa, João José Barbosa de Oliveira, comunicou o nascimento em uma carta ao primo Albino José de Oliveira; revista Bahia Ilustrada publicou a carta em 1919 (Imagem: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional) Durante 16 anos, Ruy, provavelmente, correu pela casa, subiu e desceu aquela ladeira, aprendeu a ler e a escrever, conviveu com a irmã, Brites, os pais e amigos. Naquele tempo, ninguém imaginaria que a criança ganharia o mundo, seria um dos juristas mais importantes do Brasil.
Mas talvez desconfiassem, anos adiante, que o rapaz tinha algo de especial: aos 15 anos, já tinha concluído os estudos do Collegio Abilio, mas, pela pouca idade, ainda não poderia ir para o nível superior.
Ainda assim, não dava para prever que, mais de um século depois, estudantes, jornalistas, admiradores de Ruy Barbosa e turistas desceriam a rua estreita, hoje batizada com o nome do antigo morador, para visitar o lugar onde ele nasceu. Muito menos que dariam com a cara na porta.
É que o hoje Museu Casa de Ruy Barbosa, administrado pelo Centro Universitário Ruy Barbosa (UniRuy) após um convênio feito em 1998 com a Associação Bahiana de Imprensa (ABI), dona do imóvel, fechou o lugar (leia mais ao lado). A reportagem pediu para visitá-lo no final de novembro, mas teve o pedido negado pela UniRuy, que informou, contudo, que a manutenção era feita e que havia profissionais lá. Na última quarta-feira, a reportagem foi ao local e conversou com vizinhos. A campainha funciona, mas ninguém atende.
‘Organismo vivo’“A casa era um organismo vivo. Tinha lançamentos de livros, os grandes estudiosos de Ruy Barbosa, como Rubem Nogueira, frequentavam a casa, davam palestras. Em todo aniversário de nascimento e de morte de Ruy tinham eventos”, lembra Jorge Ramos, diretor da ABI da Casa de Ruy Barbosa, sobre um passado recente. Nos últimos 171 anos, a casa passou por vários momentos. Em 1849, testemunhou o nascimento de Ruy e poucos anos depois, da única irmã dele, Brites. Aos 16 anos, Ruy Barbosa deixou a Bahia para estudar Direito no Recife. “Ao voltar à Bahia, já formado, ele passou poucos anos aqui, em alguns dos quais ele foi tesoureiro da Santa Casa de Misericórdia. Eu acredito que, até essa época, ele residia na casa que era dos pais, onde ele nasceu”, conta Ramos. Reunião entre ABI e nova diretoria de faculdade aconteceu na casa em 2011; imagem mostra bom estado do imóvel (Foto: Divulgação) Mas Ruy mudou-se para o Rio de Janeiro e a casa ficou para trás. O pai de Ruy, João José Barbosa, tinha prestígio político, mas morreu deixando muitas dívidas e casa acabou sendo vendida para pagá-las. Os anos passaram e os novos donos do imóvel não cuidaram dele. “No final da década de 1910, estava em ruínas. Então, um grupo de baianos que eram cabos eleitorais dele [Ruy Barbosa fez sua quarta candidatura a presidente do Brasil em 1919] fizeram uma campanha para reerguer o imóvel”, continua Ramos.
“Ernesto Simões Filho, que era dono do jornal A Tarde e era também da ABI, fez um apanhado, uma espécie de livro de ouro, e comprou a casa, salvo engano, em 1919. Ruy agradeceu pelo gesto em vida, numa carta aos baianos. Ele morreu em 1923”, completa Luís Guilherme Pontes Tavares, diretor de Cultura da ABI. A casa foi transferida para que a prefeitura instalasse ali uma escola, o que nunca aconteceu.
A recuperação também demorou, mas veio no centenário de nascimento de Ruy, em 1949. Quando foi reaberta. Em julho de 1950, o quinzenário Única, que circulava em Salvador, publicou uma nota sobre a movimentação na casa, chamada ali de ‘Ninho da Águia’. É que Ruy Barbosa havia recebido a alcunha de Águia de Haia após o sucesso em representar o Brasil na II Conferência da Paz em Haia, na Holanda, em 1907. Quinzenário Única noticiou, em 1950, a movimentação de visitantes na Casa de Ruy Barbosa, inaugurada como museu no ano anterior (Imagem: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional) Segundo o quinzenário, “milhares de pessoas” visitavam a Casa de Ruy Barbosa, onde se encontrava uma exposição permanente com material histórico que tinha pertencido a Ruy.“Estão expostas nas vitrines, obras, livros, objetos e autógrafos que pertenceram ao insigne civilista brasileiro inclusive os originais da carta em que Ruy Barbosa pediu demissão do cargo de Ministro e da delicada missiva dirigida à sua noiva que mais tarde ora sua digna esposa e colaboradora”, diz um trecho. Também estavam lá expostas as luvas de pelica usadas por Ruy Barbosa em Haia. Furtos A casa guardava tesouros históricos que, segundo Jorge Ramos, foram doados pela própria família de Ruy e também por famílias baianas, como quadros, peças de mobiliário, cartas trocadas com amigos. Em 1997, quase 50 anos após a inauguração como museu, houve um assalto no imóvel, situado numa região que, com o passar dos anos, foi sendo desvalorizada.
Foi nessa época que um dos sócios da ABI, Antônio de Pádua, dono da Faculdade Ruy Barbosa, fez uma proposta à Associação: uma parceria em que a faculdade administraria a Casa não apenas como museu, mas como um espaço para visitas de estudantes. O convênio começou a funcionar em 1998 e, 20 anos depois, um novo furto aconteceu na casa. Era final de 2018 e 15 peças, incluindo objetos pessoais de Ruy Barbosa, foram levados. Só um busto foi recuperado.
Não era o primeiro sinal de problemas, já que em 2015, em uma visita ao local, diretores da ABI perceberam que a casa estava num péssimo estado de conservação, com infiltrações, danos no acervo, quadros e livros com rasgões.
‘É de dar pena’ Àquela altura, o ‘organismo vivo’ de que Jorge Ramos falava já não parecia tão vivo assim. A casa foi silenciada, contam e lamentam os vizinhos, mesmo antes do furto de 2018. A Rua Ruy Barbosa, onde fica a casa, é cheia de sebos e antiquários. Os funcionários trabalham ali a décadas e conheceram alguns dos melhores anos do casarão. “Já veio muito turista aqui para visitar, muito estudante. Aliás, turista ainda vem, mas não consegue entrar, dá com a cara na porta”, diz Cristiano Guimarães, 45 anos, que trabalha na San Martin Antiguidades, bem em frente à porta principal do casarão. Ele afirma que o lugar está fechado há cerca de cinco anos – o mesmo período estimado por outros funcionários de antiquários vizinhos. “Foi bem antes do roubo”, completa Cristiano.
Segundo Cristiano, desde que foi fechado, não há movimentação de funcionários no imóvel, a não ser de um segurança. “Tem um segurança aí dentro, mas só”, completa. Tocamos a campainha da casa, mas nenhum segurança apareceu. Por falta de conservação, casa tem um buraco no telhado (Foto: Nara Gentil/ CORREIO) A casa parece mesmo abandonada. Do lado de fora, ainda dá para ver a sombra de uma inscrição feita nas paredes com a sigla BDM, em referência à facção criminosa Bonde do Maluco. Mas, hoje, o que chama a atenção nas paredes são as infiltrações e algumas poucas frases de cunho religioso escritas em vermelho na lateral da casa de esquina. As portas de madeira têm remendos e nas janelas, há vidros quebrados. “A ABI entregou a casa pra faculdade toda organizada, o que eles fizeram aí é de dar pena. Tá vendo essa infiltração aí do lado de fora? Vocês precisavam ver como está dentro, é de dar pena”, conta outro funcionário de antiquário da rua, que pediu para não ser identificado. Ele afirma que teve a oportunidade de entrar no local. “Tem poças de água no piso, a infiltração toda dentro é pior do que fora. Tá cheio daquelas fitas de isolamento”, descreve. A reportagem não conseguiu entrar na casa, mas a cercou por imóveis vizinhos. Das janelas da Casa dos Sete Candeeiros, imóvel que pertence ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), é possível ver um buraco no telhado, uma grade quebrada e algumas fitas de isolamento. Um funcionário contou que não há qualquer movimentação na casa vizinha.
“Tem mato crescendo no teto, nas portas. Olhando daqui você já vê a situação”, diz Cristiano Guimarães. Ele afirma que, a despeito de uma placa de ferro fixada na fachada da casa informando que ali nasceu Ruy Barbosa, muita gente que circula por ali não faz ideia da história que o casarão guarda. A placa, aliás, sofreu uma interferência: parte dela foi pintada de preto e uma seta da mesma cor traçada até o chão, onde fica o bueiro do imóvel quase bicentenário.
Centro Universitário UniRuy nega acesso de perícia ao museu Faz mais de 20 anos que a antiga Faculdade Ruy Barbosa, comprada posteriormente por grupos estrangeiros, administra a casa onde nasceu Ruy Barbosa, numa parceria com a Associação Bahiana de Imprensa (ABI), dona do imóvel.
Em outubro do ano passado, a UniRuy foi comprada junto com outras unidades pelo grupo Yduqs, por R$ 2 bilhões. E em novembro, num evento para celebrar os 170 anos do nascimento de Ruy, a diretoria da ABI foi surpreendida pela entrega de um documento em que a faculdade dizia não querer mais administrar o museu.“Nós levamos esse documento para a diretoria, que disse: ‘Bom, se é isso que eles querem, o retorno da casa só se dará depois de uma perícia que mostre o estado em que a casa está, porque ela foi entregue em perfeitas condições’”, explica Luís Guilherme Pontes Tavares, diretor da ABI. A perícia judicial tem sido negada. No site do Tribunal de Justiça, a página com detalhes do processo está fora do ar, mas é possível ver que a última movimentação foi em 27 de outubro.Mesmo sem entrar, a ABI desconfia do estado porque percebeu danos no imóvel e no acervo numa visita feita em 2015. Em 2018, convidou o restaurador e especialista em preservação José Dirson Argôlo para uma vistoria no local. Ele apontou que boa parte do acervo precisava de melhor conservação e de restauro. Fachada casa está bastante danificada (Foto: Nara Gentil/ CORREIO) A questão foi parar na justiça. “Podia chamar um chaveiro, mandar fazer uma chave e entrar, mas a gente não quer entrar sem que haja uma vistoria judicial, sem um laudo dizendo qual é o estado interno. Porque se a gente entrar e algo ruir lá dentro, vão dizer que foi a ABI a responsável”, explica Calmon Teixeira, advogado que representa a ABI.
Tentamos falar com a perita, mas ela disse não ter autorização para falar sobre o caso. O Iphan, que foi solicitado a acompanhar a perícia, disse que o estado do imóvel é “impreciso”.“Houve uma vistoria marcada no âmbito de ação civil pública em que a Justiça determinou perícia técnica com assistência do Iphan. Na data estipulada, 14 de setembro de 2020, técnicos do Instituto se dirigiram ao local, mas tiveram o acesso ao imóvel negado pelo pessoal da Universidade Uniruy”, diz o Iphan, em nota.A Defesa Civil de Salvador (Codesal) também tentou vistoriar o imóvel no dia 5 de agosto deste ano, e encontrou o lugar fechado. O diretor-geral da Codesal, Sosthenes Macedo, contou que, como o imóvel estava fechado, a vistoria foi feita do lado de fora. “Solicitarei uma revistoria”, disse, depois de ser informado pelo CORREIO que há uma cratera no telhado do casarão por onde, certamente, entra muita chuva, o que pode colocar um imóvel de quase 200 anos em risco. “Uma casa daquela época demanda uma manutenção. Se desmoronar vais ser uma tragédia, porque é um local densamente habitando, com prédios e casas encostadas umas nas outras, movimentação grande de pessoas, porque é um centro comercial e residencial e ninguém sabe as proporções que essa catástrofe pode alcançar”, afirma o advogado Calmon Teixeira.No final de novembro deste ano, foi a vez do CORREIO pedir para acessar o museu, a fim de fazer um perfil da casa e do acervo, mas o pedido também foi negado. Por meio da assessoria de comunicação, a UniRuy disse que o acesso não seria liberado por conta da pandemia, mas que a manutenção na casa estava sendo feita. Tentamos falar por mensagem e por telefone com Paulo Rocha, responsável pelo grupo Yduqs na Bahia, mas ele disse que não poderia nos atender.
Quem foi Ruy Barbosa Baiano de Salvador, Ruy Barbosa começou a estudar Direito em Pernambuco aos 16 anos. Formou-se em São Paulo e voltou à Bahia, onde começou a atuar como jornalista e aderiu à campanha abolicionista. Mudou-se para o Rio de Janeiro, onde sua atuação como jurista o projetou para o mundo. Em 1907, foi enviado para representar o brasil na II Conferência de Paz, em Haia. “Ele foi designado para representar o Brasil em Haia, que era uma reunião das grandes nações do mundo ocidental e teve uma atuação extraordinária, surpreendendo todo mundo ali. Quando ele retornou ao Brasil, ficou conhecido como o Águia de Haia”, conta o advogado Calmon Teixeira. Em 1908, Ruy candidatou-se a presidente numa campanha civilista contra o candidato militar Hermes da Fonseca. Morreu em 1923, mas deixou legados - foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras - e polêmicas. Em 1890, quando ministro da Fazenda, mandou que queimasse os livros de matrícula de escravos existentes nos cartórios. O objetivo seria apagar a mancha da escravidão ou impedir os pedidos de indenização dos senhores. Os registros se perderam para sempre.