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Jorge Gauthier
Publicado em 30 de novembro de 2018 às 05:05
- Atualizado há 2 anos
Ser uma bicha preta não é tarefa fácil. Os corpos pretos são os alvos preferidos do açoite desde a primeira metade do século XVI, quando começou oficialmente a escravidão no Brasil junto com a produção de açúcar. De lá para cá, a negritude segue sendo mira para o preconceito. O peso do chicote opressor é ainda mais intenso se, além de preto, o corpo for colorido. A negritude LGBTQIA+ apanha com vozes, gestos e balas. Não há clemência, respeito nem piedade.>
O Brasil é o país onde mais se mata homossexuais no mundo. A cada 25 horas é registrada uma morte. Dados do Grupo Gay da Bahia (GGB) indicam que sete em cada dez dessas mortes são de negras e negros. Na caçada dos preconceituosos, as bichas pretas estão mais vulneráveis. Se forem gays afeminadas, ou ainda travestis e transgêneros, a gana do ódio heteronormativo branco é ainda mais voraz.>
A população negra transexual e travesti tem uma média de idade de 30 anos no Brasil. Antes que você ache que isso é ‘mimimi’, segundo o IBGE, a média de vida do brasileiro é de 75,5 anos. Ou seja, os corpos trans colocados à margem da sociedade pela repulsa de não aceitar o que não atende os padrões da sociedade tradicional recebem uma sentença de morte.>
O pensamento branco racista é de que nós somos a escória da sociedade. Nos querem ver de volta à senzala. Não perdem a oportunidade de nos ferir. Na escola, eu sempre fui a bicha preta e gorda. Prato preferido para as chacotas, bullying e afins. A sociedade é dividida em castas e nós, bichas pretas, sempre fomos empurradas para baixo. Ainda não morri. Tive sorte. Mas não a mesma de muitas outras bichas pretas que tombaram diante dos feitores contemporâneos que dão tiros, espancam sem clemência somente por sermos bichas pretas. Puro ódio.>
Mas, se de um lado, tem açoite, do outro tem um lombo que não se acomoda com a dor e faz disso expressão de sobrevivência. A resistência negra LGBTQIA+ tem cada vez sido mais eficaz.>
Dos quilombos vieram o exemplo. Os lugares de refúgios dos nossos ancestrais, hoje, mudaram de nome e de forma. As bichas pretas estão conquistando lugares de destaque nas artes, empresas e militância.>
Muitas vezes é uma ação silenciosa, mas bastante efetiva. Quando uma bicha preta chega no topo ela não está sozinha. Ela leva consigo toda a história de vulnerabilidade que nos foi imposta nos últimos séculos nas terras brasileiras.>
Precisamos provar cinco, dez, vinte vezes, que somos melhores naquilo que fazemos. Nós podemos ter tanta capacitação e experiência mas, mesmo assim, somos relegados ao segundo plano. É preciso lutar para ser visto, lembrado e reconhecido. E como se diz agora: ‘não vamos passar pano no chão’ para o racista pisar. Respeitem as bichas pretas! Seremos resistência.>
Jorge Gauthier é jornalista, editor e idealizador do canal Me Salte no jornal CORREIO. É formado em jornalismo pela Universidade Federal da Bahia e especialista em jornalismo científico e tecnológico pela mesma instituição.>