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Fernanda Santana
Publicado em 1 de setembro de 2019 às 05:30
- Atualizado há 2 anos
A folha de capim-palmeira viajou do Rio de Janeiro a São Paulo numa caixa de sapato. Horas antes, Liba Bo Bardi, impossibilitada de encontrar o também arquiteto João Filgueiras Limas, o Lelé, pediu que colaboradores o entregassem a planta. “Ele vai entender”, disse, em resposta ao espanto dos visitantes. Os dois trabalhavam juntos no Plano de Recuperação do Centro Histórico de Salvador, no final de década de 1980. Ele entendeu. As fibras aparentes da planta foram transformadas em placas plissadas de argamassa. O resultado seria o espaço Coaty, estrutura modernista erguida na Ladeira da Misericórdia.
A montagem do Coaty durou de 1987 a 1989. Todas as estruturas foram fabricadas na Fábrica de Cidades, onde Lelé pré-moldava estruturas para obras. A ideia era que a experiência de revitalizar casarões históricos em conjunto, a partir de peças fabricadas, servisse de inspiração para a intervenção nos outros pontos da cidade. Numa área com quatro ruínas vizinhas, o Coaty foi erguido acima do único terreno baldio. Tudo que estava por ser feito encantava Lina, que partiu da Itália completamente em ruínas no pós-Guerra. O Coaty era, portanto, uma síntese de possibilidades. “Quando chega ao Brasil, ela conhece o prédio do Ministério da Educação, símbolo do modernismo, como uma possibilidade de tudo que poderia ser feito no Brasil”, diz Maurício Chagas, arquiteto e coordenador do escritório do Plano de Recuperação.A própria localização do Coaty era um respiro de possibilidades. Depois da inauguração da Ladeira Montanha em 1885, a Misericórdia, que teve sua parte final cortada pela novata, perdeu importância geográfica. Como era predominantemente residencial e servia de ligação entre as partes alta e baixa de Salvador, o fluxo caiu a ponto de torná-la um ponto ao mesmo tempo central e isolado. Ocupação mais recente teve oficina de instrumentos musicais (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Quando chegaram à Misericórdia, não havia nada senão um reservatório de água e uma mangueira verde no terreno. O projeto foi pensado ao redor da árvore, uma cobertura que filtra em verde a entrada da luz. Na Casa de Vidro, em São Paulo, Lina já havia feito a incorporação de uma árvore ao projeto. Depois do projeto original, acrescentaram apenas a construção de uma saída lateral, por uma escada, para valorizar o terraço. Daquela sacada, vê-se o Forte São Marcelo, uma das inspirações para o Coaty. A arquiteta italiana era aficionada pelas formas desse tipo de construção, conta Maurício.
Os vãos circulares abertos ao redor da construção funcionam como janelas, por onde se avista do Elevador Lacerda à Cidade Baixa. As aberturas lembram o Sesc Pompeia, em São Paulo, uma das principais obras de Lina. Era um dos primeiros projetos depois do retorno da italiana a Salvador. Antes, testara um plano frustrado. Ela havia criado uma cobertura para baianas de acarajé com galhos de madeira que sustentariam um tecido branco. Uma baiana da Praça da Sé chegou a se recusar a testar. O argumento era que o ornamento falava de uma Bahia que não existia mais. A italiana incorporou a nova realidade aos projetos.
Sobre o Coaty, pensava em fazer do espaço um local de encontro. Por isso, o que hoje é chamado de espaço Coaty, ou Casa Coaty, na verdade foi idealizado como Restaurante Coati – nome do mamífero aparentado do guaxinim. A culinária é um ingrediente dos projetos de Lina. “É como se, para ela, a culinária possibilitasse um espaço de relacionamento social e antropológico”, acredita Maurício. Ali, no entanto, o único restaurante a funcionar foi o Zanzibar, nos anos 1990. O projeto, por razões políticas, sequer foi inaugurado, e Lina Bo Bardi morreu sem ver o Coaty ocupado.
Veja vídeo sobre o trabalho de Lina Bo Bardi na América do Sul:
De lá para cá, foi ocupado, apenas temporariamente, em 10 ocasiões. A última, realizada pela Instrumentes, previu oficinas de criação de instrumentos, na casa anexa ao Coaty, e eventos culturais. Nos meses de abril e maio, o espaço teve toda a instalação elétrica trocada, depois que as produtoras Alana Silveira e Lívia Cunha venceram o edital Gregorios, da Fundação Gregório de Matos, responsável pelo espaço. Argamassa da estrutura foi feita com capim-palmeira (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) “Acho que também podem acontecer mais eventos lá. Tem essa parte da cultura, mas também a arquitetura. Lina Bo Bardi está super em voga”, conta Alana. A intervenção termina hoje (1º).
O presidente da Fundação Gregório de Matos, Fernando Guerreiro, diz que o órgão pretende entregar, até o próximo ano, um plano para o Coaty. Não há, de antemão, nenhuma ideia. "É uma interrogação. O desenho, ele é um desenho específico, uma das obras primas de Lina. Estamos debatendo o que fazer com ele", diz.
No ano de 1989, Lina já havia escrito sobre o projeto emperrado: "O projeto piloto da ladeira da Misericórdia ainda não foi aproveitado por não ter sido compreendido como uma coisa realmente popular, feita para a população da área, não para turistas”. O Coaty ainda está por ser feito.
*Com a supervisão da subeditora Andreia Santana