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Da Redação
Publicado em 6 de fevereiro de 2021 às 10:59
- Atualizado há 2 anos
Assunto da criticada capa da Veja São Paulo, da escancarada xenofobia da rapper Karol Conká contra a paraibana Juliette Freire no BBB 21 e tema da redação do primeiro Enem Digital da história, o Nordeste entrou para os tópicos mais comentados das redes sociais nas últimas duas semanas. A avalanche de publicações ainda entrou no mérito do conceito preconceituoso de “o que é ser baiano”, que constava no site Dicionário inFormal, depois corrigido pela plataforma.
Essas discussões, sobretudo em torno da matéria da revista sudestina e do discurso insistente e agressivo da artista curitibana, reforçaram ainda mais a importância de se debater as desigualdades regionais do país não apenas no maior reality e exame educacional do Brasil, mas em toda a sociedade brasileira.
Para colaborar com esse debate, o CORREIO, em parceria com o jornal O POVO, do Ceará, convidou pesquisadores nordestinos para mostrar que algumas das ideias que propagam sobre o Nordeste não são nem um pouco ingênuas. Foram e continuam sendo propositadamente perpetuadas para reduzir a força socioeconômica do território formado por nove estados. Através da internet e depoimentos de pessoas, coletamos frases que costumam dizer sobre a região e, com elas, preparamos um guia informativo para ajudar a parar de reproduzir besteiras em relação ao Nordeste.
Autor de um dos livros mais importantes sobre o tema, o historiador paraibano Durval Muniz de Albuquerque Jr., escritor da obra “A Invenção do Nordeste” (Editora Cortez, 376 p.), nos conta que o conceito de Nordeste surgiu no fim da década de 1910. Antes disso, o termo aparecia como uma mera localização geográfica entre Norte e Leste. Mas, foi a partir disso que políticos, intelectuais, representantes das elites agrárias e mídias de outras regiões começaram a trabalhar nesse conceito, assentando um discurso de que os estados que compõem esse território são tudo a mesma coisa, um bolo, uma paisagem única. Ilustração: Casa Grida com Adobe Stock Mesmo que o Nordeste seja bastante diverso no paisagismo, ele passa a ser reduzido à seca e lembrado por uma cultura colonial portuguesa, africana e indígena, se diferenciando em relação ao Sul, que vai foi sendo caracterizado com a imigração estrangeira de alemães e italianos. Isso ajuda a explicar que é no racismo e xenofobia que estão muitas das raízes dos preconceitos dirigidos a nordestinos, que são vistos como pardos, mestiços e negros, enquanto sulistas se veem como branco-europeus.“Há um corpo do nordestino: é o cabeça-chata, o baixo, o pequeno, o subnutrido. A nossa indústria é vista como não-industrial, não moderna, é uma cultura artesanal, folclórica. O Nordeste é sempre pensado como um espaço parado no tempo. É lido como o espaço da memória, da saudade, da nostalgia. É por isso que [a capa da Veja fala que] a capital moderna para o Nordeste tem que ser São Paulo”, diz o historiador.O problema é que a carga destas ideias não ingênuas fez o Nordeste virar sinônimo de atraso e isso até hoje inviabiliza oportunidades na região. Por esse motivo, pesquisadores defendem que é preciso desfazer estereótipos e questionar a centralidade do discurso repetitivo vindo do Sudeste porque o Nordeste não ficou imune às transformações.
1. “Ah, eu sei que tem nove estados, mas é tudo a mesma coisa”
Já percebeu que falam da região nordestina da mesma forma como costumam falar do continente africano? Retratam os estados da segunda maior região do país como se fossem tudo uma coisa só, sem singularidades internas. Cada um dos estados é, na verdade, muito peculiar, com bastante diferença na cultura, economia, história e geografia. Imagine que existem diferentes ritmos, comidas, costumes, vestimentas, sotaques, crenças e lendas, festas, etnias, um universo! Nem a famosa caatinga, um bioma exclusivamente brasileiro e que ocupa a maior parte do território nordestino, é igual em todo lugar. Há tipos distintos e até microclimas!Geógrafo, o professor Marco Antonio Tomasoni, da Universidade Federal da Bahia (Ufba), dá logo o esporro: “Homogeneizar a região é um erro gravíssimo. Quando se olha para os nove estados como se fossem todos iguais, você está apagando uma diversidade cultural imensa”, alerta.2. “É um lugar mal desenvolvido, retrógrado”
Não é raro ver termos como “rincões” e “Brasil profundo” para retratar o Nordeste, o que acaba criando imagens que levam a pensar que esta é a parte atrasada do país. Pesquisadora do semiárido, a professora Gislene Moreira, da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), relata um caso que registra muito bem como a propagação destes discursos são responsáveis por formar ideias erradas sobre a região.
Certa vez, quando organizava um congresso sobre cultura em Juazeiro, na Bahia, convidou professores do país inteiro para refletir questões a partir do Sertão. Ao ligar para um deles, ouviu: “A ideia é legal, mas como é que eu vou para aí? De jegue?”. Além de ter aeroporto em Petrolina, a 10 min, Juazeiro tem tecnologia de ponta em produção agrícola, com alto volume de exportação e, diferente da Europa, as vinícolas da cidade produzem o ano inteiro.
A pesquisadora aponta que quando esses pensadores forasteiros chegam ao Sertão, mesmo diante de todas as transformações, ainda continuam repetindo estereótipos como se o Sertão e as pessoas que fazem o Sertão se mantivessem miseráveis e todas flageladas pela seca.
3. “Não tem mão-de-obra qualificada”
Mentira das grandes. Só nos últimos três anos, o número de cursos de mestrado e doutorado das universidades do Nordeste com conceitos 6 e 7, os mais elevados da Capes, saltou de 9 para 37. Além disso, os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia foram interiorizados e formam pessoas para o mercado de trabalho com cursos voltados para a realidade econômica local. Isso sem falar em toda a rede do Sistema S espalhada pela região (Senar, Senac, Sesc, Sescoop, Senai, Sesi, Sest, Senat e Sebrae).
Todo um ambiente de inovação e empreendedorismo está em forte crescimento, sobretudo com o Porto Digital, em Pernambuco, e o Hub Salvador, na capital baiana. O Nordeste é terra de origem de startups que se tornaram empresas de sucesso no país, como a JusBrasil, In Loco, Sanar, ZigPay e Agenda Edu.
Mas a carga dos preconceitos sudestino e sulista é tão forte que quase todas as startups nordestinas que ascendem no mercado costumam adotar o DDD 011 por causa da desconfiança que o pensamento hegemônico produzido lá impregnou o imaginário brasileiro. Para não perder oportunidades de negócios, as empresas, inclusive, abrem CNPJ em São Paulo para que os clientes acreditem que são paulistas.
4. “Ah, mas a política é coronelista, né?”
Levanta-se nas redes sociais e nas análises políticas vindas do Sul e Sudeste uma falácia de que o nordestino não sabe votar, não é suficientemente educado para exercer a democracia e, portanto, teria um voto menos legítimo, analisa o cientista político Cláudio André de Souza, professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab).“É um grande preconceito. Olham para cá como se a política feita aqui ainda fosse baseada no coronelismo, no mandonismo. Problemas decorrentes destas práticas são percebidos no país todo. É absurdo querer colocar essa visão de que o nordestino é burro, ignorante, que não sabe se comportar do ponto de vista eleitoral”, afirma.Em referência a esse suposto coronelismo e provincianismo da região, a mídia sudestina e sulista insiste em retratar essas práticas como se esse fenômeno do familismo não existisse em todo o Brasil. O professor menciona ainda que o Nordeste foi por muito tempo colocado à deriva nas políticas públicas.
5. “Nossa, o sol é de lascar! É tudo caatinga e sertão, né?”
Por estar mais próxima da Linha do Equador, a região Nordeste é mesmo mais quente. Isso acontece porque os raios solares incidem de forma direta na superfície durante o ano todo. “Então, o sol influencia no clima e é também por conta disso que temos praias com águas mais quentinhas tão adoradas pelos nossos irmãos do Sul”, explica a geógrafa Telma Ferraz, professora do Instituto Dom de Educar.
Inclusive, esse sol e os fortes ventos do litoral têm feito com que o Nordeste venha se destacando na produção de energia renovável, caminho para o qual a indústria mundial está se dirigindo. Com gigantescos parques espalhados, a Bahia e o Rio Grande do Norte são os estados líderes no país em geração e distribuição de energia solar e eólica, respectivamente.
Em 2020, os empreendimentos eólicos e solares somente da Bahia geraram energia equivalente a 25% da soma da energia total gerada pela Usina Hidrelétrica de Itaipu e Usinas Nucleares Angra I e II. Se essa equivalência for feita pela capacidade instalada, esse valor, atualmente, é de mais de 34%, segundo cálculo feito pela Secretaria de Desenvolvimento Rural da Bahia (SDR) a pedido do CORREIO. Devido a essa disponibilidade de recursos, muitas empresas têm sido atraídas para cá.
Quase sempre reduzido à imagem do Sertão na produção cultural e jornalística do Sul e Sudeste, o Nordeste é dividido em quatro sub-regiões, chamadas Agreste, Meio-Norte, Sertão e Zona da Mata. De fato, o Sertão é a que abraça quase todos os estados — exceto o Maranhão, que sofre bastante influência da Amazônia. Esta sub-região ocupa a maior extensão do território nordestino, mas não é nela que está concentrada a maior parte da população. A concentração demográfica é muito maior na Zona da Mata, junto ao litoral nordestino.
6. “É uma região de gente pouco instruída, de pouco estudo”
Quem fala uma bobagem dessa não deve saber que existem 20 instituições federais de ensino superior público no Nordeste — fora as 14 universidades estaduais — e que elas são grandes responsáveis por desenvolver a região, atesta o agrônomo Josivan Feitosa, professor da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa), do Rio Grande do Norte.
“O Nordeste é muito diferente do que dizem por aí. A gente precisa se orgulhar da qualidade das nossas universidades, que têm ensino de excelência. Houve uma interiorização do ensino superior nunca antes vista nesse país. Agora, o jovem que mora no interiorzinho do Piauí, em Bom Jesus, que fica a mais de 600 km da capital Teresina, tem um campus na sua cidade e naquele campus tem doutores”, aponta.
Inclusive, o professor observa que muitos doutores formados pela maior instituição do país, a Universidade de São Paulo (USP), não encontraram trabalho no Sudeste, e hoje são professores em instituições nordestinas.
7. “Quase nunca chove, a região sofre muito com a seca”
Uma busca pelo termo Nordeste no Google imediatamente mostrará imagens de belas praias e chão rachado pela seca. Muitas reportagens feitas pelo Sul e Sudeste ajudaram a construir uma ideia preconceituosa de que, exceto pelo litoral, a região nordestina é uma grande fazenda seca cercada por caatinga. Você já percebeu que quando falta água no Sudeste eles chamam de “crise hídrica”? Isso também é uma forma de fazer parecer que a seca é uma realidade unicamente nordestina.
O professor Marco Tomasoni explica que a quantidade de chuva que cai na região varia de um volume de 500mm a 700mm, em média, por ano, uma precipitação suficiente para permanecer e viver com dignidade usando tecnologias de mitigação. Só a título de curiosidade, de acordo com dados do Monitor de Secas, em dezembro de 2020, a região Sul esteve com 100% do seu território em seca, enquanto o Nordeste esteve com 72%.
Jornalista criador do site Meus Sertões, que conta histórias do semiárido nordestino, o carioca Paulo Oliveira, que há mais de dez anos vive na Bahia, teve oportunidade de conhecer de perto como pequenos e médios produtores do Sertão desenvolveram técnicas de armazenamento de águas em cisternas. Segundo ele, o melhor exemplo que viu foi o do agricultor familiar Abelmanto Carneiro, de Riachão do Jacuípe, na Bahia, que construiu reservatórios de água subterrâneos em casa e passou a produzir árvores frutíferas, além de grãos com silagem suficiente para aguentar até 3,5 anos de seca.
“Sem nunca ter feito uma faculdade, o cara montou na fazenda dele uma área de atividades culturais e hospeda pessoas que vão lá olhar como ele conseguiu se desenvolver a esse ponto e desenvolver, inclusive, polpa de fruta. Quando eu vim morar aqui, eu me apaixonei pelo Nordeste porque o que vi desmentia tudo o que me falaram”, relata.
8. “Os nordestinos roubam empregos de sudestinos”
Embora se vangloriem de ter capitais cosmopolitas, é com falas assim que reagem à migração nordestina. Nos grandes centros sudestinos, o trabalho costumeiramente destinado à população migrante do Nordeste são precarizados, com ofícios braçais, informais, domésticos e na construção civil, como bem lembra Gislene Moreira. O capitalismo brasileiro, no fim do século XIX, se constituiu em cima desse “lombo” de nordestinos, o que não aconteceu com os imigrantes europeus que povoam São Paulo.
Na avaliação dela, esse ódio dirigido a nordestinos é fruto da perda de prestígio que o Sudeste vem tendo. Ela considera que a capa da revista Veja é um sintoma de como São Paulo tenta voltar ao seu lugar de conforto, de referência para o Nordeste.
“Esse centro se diz ser o coração do Brasil e sem o nordestino ele não tem alma. Mas essa é uma falsa disputa regional porque quando você beneficia a população que historicamente foi mais vulnerável, você está construindo um tecido social que faz o Brasil crescer mais rápido e com qualidade. A gente não pode repetir o erro de reforçar regionalismos e diferenças porque o Brasil é complexo. Somos um povo mestiço e a gente precisa pagar nossas dívidas”, afirma a pesquisadora.
9. “As pessoas vivem às custas do governo, sobrevivem de Bolsa Família”
Embora a pobreza e extrema pobreza sejam mesmo mais acentuadas no Nordeste, elas estão presentes em todas as regiões do Brasil, aponta o economista Jair do Amaral Filho, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC). E é por isso que ele defende que o programa Bolsa Família é legítimo e necessário para o país. Mais da metade dos beneficiados são de estados não-nordestinos, lembra ele.
O Nordeste ainda tem áreas que dependem de políticas públicas para reparar e reduzir desigualdades sociais, mas essa visão de total dependência governamental é falsa. A região tem um forte setor produtivo, com economia diversificada na agropecuária, indústria, serviço, comércio e turismo.
10. “O nordestino é um povo burro, são ignorantes, coitados”
Essas falas contribuíram para manter um pensamento de que só sudestinos e sulistas são pessoas civilizadas, as únicas capazes de desenvolver atividades intelectualizadas. Essa construção não é de agora. Gislene Moreira lembra que o Abaporu (1928), o quadro mais caro do Brasil, retrata uma figura de cabeça pequena e pés grandes. “Então, é como se quem nasce na realidade do sol quente, do cacto, não pudesse pensar. Essa ideia entrou para o modernismo e colocou o nordestino como o trabalhador do corpo, não da intectualidade”, observa ela. (Ilustração: Casa Grida com Shutterstock) 11. “O Pará fica no Nordeste”
Não. Sugerimos voltar para as aulas de Geografia. Adoramos o Pará, mas o estado pertence à região Norte.