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Thais Borges
Publicado em 19 de julho de 2018 às 04:00
- Atualizado há 2 anos
De costas para a Baía de Todos os Santos, a poucos metros da Igreja da Nossa Senhora da Conceição da Praia e de toda a sua magnitude, fica uma capela pouco conhecida. Por muitos anos, ali foi a sede de uma das principais irmandades católicas da Bahia. Desde que foi interditada e fechada por quase uma década, porém, foi como se Salvador tivesse esquecido de um de seus primeiros templos – a Capela de São Pedro Gonçalves do Corpo Santo.
Escondida entre a Ladeira da Montanha e a Rua Santos Dumont, a igreja guarda fatos históricos e memórias pessoais. Durante os nove anos em que esteve fechada para as obras de restauração - que, no entanto, só começaram em 2016 -, parte dos mistérios que envolvem a capela foi revelada: até um forro completamente coberto por ouro foi encontrado. Agora – mais especificamente, desde a manhã desta quarta-feira (18) –, a igreja pode voltar a ser descoberta por soteropolitanos, turistas e devotos. Ninguém sabia que o teto da igreja era feito em ouro; antes, estava coberto por tinta azul (Foto: Marina Silva/CORREIO) “Me casei aqui, há 40 anos”, dizia, emocionada, a aposentada Tiusa Vieira, enquanto assistia à missa de reinauguração do espaço, ministrada pelo Arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil, Dom Murilo Krieger. Ainda que estivesse parcialmente aberta desde maio, quando as obras foram encerradas, a missa desta quarta deu início à nova história da capela. Vindo da Conceição da Praia, até São José chegou – carregado, em procissão – para a inauguração. Assim como a casa de São Pedro, ali também é o local que abriga sua devoção há pelo menos 200 anos. A imagem de São José estava na Igreja da Conceição da Praia, durante todo o período da reforma (Foto: Marina Silva/CORREIO) Tiusa é integrante da irmandade de São José do Corpo Santo, responsável pela capela. Ao longo dos anos, a trajetória de sua própria família esteve intimamente ligada a ela. O sogro foi o responsável pela capela por mais de 50 anos – foi assim que, há 40, o local fora escolhido para o enlace. Depois do casamento, vieram os batizados dos dois filhos. Alguns anos depois, as crismas. Hoje, ainda que morem fora do país (um nos Estados Unidos, a outra na África), os dois filhos também fazem parte da irmandade.
As lágrimas dela, nesta quarta, eram de felicidade. Quase alívio, depois de acompanhar a luta do sogro pelo restauro.“Ele faleceu há três anos, brigando com Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), com esses órgãos. Naquela época, era de chorar de tristeza. Ele não teve a chance de ver como ficou, mas esse era o sonho dele. Sei que ficaria muito feliz, se estivesse aqui”, disse Tiuza. Tiusa e Gilson Vieira se casaram na capela, há 40 anos (Foto: Marina Silva/CORREIO) Prestes a cair Antes da reforma, a igreja parecia vulnerável a um acidente. A costureira Dulcinéia Freitas, 57, era uma das que frequentava a missa das quartas desde que passou a trabalhar no Comércio, há 15 anos. Moradora da Ilha de Itaparica, ela aproveitava os horários de almoço para rezar. Por isso, assim que viu as portas da igreja abertas nesta quarta, foi descobrir do que se tratava.
“Estava em tempo de cair na cabeça. A gente vinha assistir à missa só pela misericórdia. Agora, está linda”, disse. Durante os nove anos em que a capela ficou fechada, dona Dulcineia passou a frequentar a Igreja da Piedade. Pela distância, diminuiu a quantidade de vezes em que ia, na semana: passou de duas para uma.
A advogada Patrícia Rizzo, 46, não sabia da reabertura. Passava pela rua da Conceição da Praia quando viu a movimentação. Lembrou, na hora, de uma funcionária do escritório. Devota de São José, a senhora frequentava semanalmente a capela. O visual a impressionou; não lembrava, nem de longe, a imagem dos últimos anos.
“A igreja estava bem depreciada, mas ficou bem aconchegante. Eu vinha de vez em quando aqui, mas costumo ir mais à Igreja do Bonfim, uma vez por mês. Passei por aqui e lembrei dela, dona Maria das Graças (a funcionária). Ela faleceu antes que a igreja fechasse, mas vinha toda semana. Era uma pessoa muito querida”, revelou.
Os mais antigos viram, nos últimos anos, o número de devotos e de membros da irmandade minguar. ‘Irmão’ há 60 anos, o técnico em contabilidade Luiz Marques, 79, é um dos que vê a diferença. Ele acredita que a própria localização da igreja contribua para isso. “Hoje, o Comércio não tem mais vida depois das 18h. Morre tudo. Domingo também não tem nada. Aí, tudo foi morrendo, morrendo. É diferente de uma igreja que fica em um bairro onde tem uma comunidade”, afirmou ele, que frequenta a Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento de Sant’Ana. Ouro encontrado De acordo com o juiz da irmandade de São José do Corpo Santo, Dione Gutemberg, a estrutura da igreja estava corroída por cupins. Além disso, estava suja por fezes de pombos. “Estava inteiramente comprometida, mas tudo foi reparado. Até os sinos”, relata.
As obras foram custeadas pela Companhia das Docas do Estado da Bahia (Codeba), com investimento de R$ 3,5 milhões. O custo foi bancado depois que a Codeba e o Iphan firmaram um acordo de contrapartida. Toda a igreja foi restaurada (Foto: Marina Silva/CORREIO) A Codeba precisava, em 2010, de uma licença ambiental para a execução de uma dragagem no Porto de Salvador e o Iphan sugeriu que a companhia bancasse a restauração da capela que sofria com a ação do tempo.
A reforma e o restauro ficaram a cargo da empresa CLM Engenharia, que precisou trocar quase todas as estruturas de madeira e retirar todas as telhas antigas. “Fizemos toda a estrutura do assoalho, instalações elétricas e hidráulicas e pintura geral. No fim, 100% do reboco foi removido”, contou a arquiteta residente da obra, Sarah Majdalani.
Além disso, toda a parte artística foi restaurada – incluindo as oito imagens sacras. Todo o forro da capela e da nave foi desmontado. Foi nesse ponto que o ouro foi descoberto.“Nossa equipe de restauro fez inspeções para saber se tinha outro tipo de pintura embaixo do forro. Isso é procedimento padrão. Só que, dentro dessas inspeções, foram encontrados resquícios de ouro”, lembrou Sarah. Todos os detalhes em ouro estavam cobertos por uma tinta azul há tantos anos que é difícil até mesmo estimar desde quando. Assim, a projeção foi ampliada e os restauradores concluíram que existia ouro em praticamente 100% do forro. Toda a tinta teve de ser removida para que o material fosse restaurado.
“Esse foi o nosso grande problema, porque ninguém sabia da existência desse ouro. Nem mesmo o Iphan. Fizemos vários testes químicos, com vários produtos, e nenhuma substância foi capaz de remover toda essa tinta. Então, toda a remoção foi feita manualmente”, contou a arquiteta. No processo, a equipe utilizou um soprador térmico (um equipamento que lembra um secador de cabelos) e um bisturi.
O soprador servia para esquentar a tinta – e, assim, amolecê-la – e o bisturi para removê-la. Essa etapa ‘imprevista’ envolveu o trabalho de mais de dez pessoas; ao todo, a obra contou com uma equipe de cerca de 30. Isso também fez com que as intervenções, que começaram em junho de 2016 e tinham previsão de acabar em 15 meses, só fossem concluídas em maio deste ano.
Desconhecida Mesmo que a Capela de São Pedro Gonçalves tenha marcado gente como dona Tiusa, ainda há muito mais que não a conhecem. Era o caso da dona de casa Raimunda Teixeira, 73. Moradora de Itapuã, ela frequenta a Igreja de São Francisco de Assis, em seu próprio bairro. Nunca tinha ouvido falar da capela no Comércio, até passar por ela. Moradora de Itapuã, dona Raimunda não conhecia a igreja (Foto: Marina Silva/CORREIO) Viu a fachada, percebeu que estava havendo missa e se encantou. Decidiu entrar – há anos, tem o hábito de entrar pelas igrejas abertas por onde passa. “Faz parte da minha vida. Eu entro e faço uma oração, agradeço pela minha saúde e pela saúde de alguém. Foi o que fiz aqui, que está muito bonita”, contou.
A dona de casa Ana Luzia Sousa, 61, também não conhecia o templo. No entanto, frequentadora da Igreja da Boa Viagem, no Bonfim, soube que seria reaberta e decidiu ir à missa com uma amiga. “Ela me contou e eu vou para todas as igrejas que reabrem. Por isso, decidi vir”, explicou.
Para o Comércio Fundada em 1711 pelo capitão espanhol Pedro Gonçalves, a capela foi erguida em Salvador como uma promessa. Vindo de uma família devota por São Pedro Gonçalves, o marinheiro herdou do santo até o nome. Um dia, em uma viagem, vindo da Europa em seu galeão, prometeu ao santo que, se sobrevivesse a uma tempestade em alto mar, construiria uma igreja para ele na cidade onde chegasse.
A promessa foi cumprida, mas, com o tempo, a capela sofreu mudanças. Ficava de frente para a praia, mas, com o aterramento e a chegada de mais imóveis, uma nova entrada foi construída para o outro lado. “Ela era maior e foi cortada ao meio. Virou-se a fachada e diminuiu a igreja, criando uma capela aconchegante e bonita”, contou o padre Abel Carvalho, que será o capelão do templo.
A escolha de padre Abel foi um pedido da própria irmandade que administra a capela. Segundo o juiz Dione Gutemberg, eles explicaram a Dom Murilo Krieger que, a essa altura, é importante fazer crescer o trabalho de evangelização na igreja. “Vamos procurar reestabelecer um volume enorme de pessoas que venham para a irmandade. E justifiquei a necessidade de continuar uma obra evangélica nessa igreja”, disse Gutemberg.
Pelo local da capela, as missas serão realizadas sempre às quartas e sextas-feiras, ao meio-dia. É ideia é, assim, conseguir atingir o público que trabalha na região. “É um horário conveniente para os comerciantes e comerciários nessa região e, assim, a gente vai começar um trabalho devagarinho”, completou padre Abel.
Nesta quarta, a ida de padre Abel já tinha atraído frequentadores da paróquia de Sant’Ana. Até mesmo o segurança da igreja agora o acompanhava. Joel Rodrigues, 52, que trabalha na igreja de Nazaré, estará lá sempre às quartas e sextas-feiras. Logo que chegou, lembrou da própria experiência na capela. Filho de um marinheiro, entre os 10 e 11 anos, sempre ia à Igreja do Corpo Santo com os pais. Desde aquela época, as condições físicas do templo já não eram das melhores. Joel costumava ir à igreja do Corpo Santo com os pais, quando criança (Foto: Marina Silva/CORREIO) “Eles eram devotos, então a gente sempre vinha aqui e depois seguia para casa. Depois, fomos para uma igreja nos Barris, onde ficamos até a morte do meu pai, em 1988”, disse Joel.Com lágrimas nos olhos, justificou a emoção dizendo que estava lembrando do passado. “Tudo era diferente. A população daqui era muito comunicativa, andava sem sustos, sem medos, na rua”, lembrou.
Segurança De acordo com dom Murilo Krieger, o próximo passo, agora, é garantir que a igreja tenha um sistema de segurança – até mesmo para garantir a proteção das obras restauradas. “Muita coisa se perdeu, mas a segurança é essencial. Não é possível que uma igreja que custou tanto sacrifício no passado e tanto no presente, de repente, por alguns vândalos, seja destruída. Queremos colocar o quanto antes”, garantiu.
Para Dom Murilo, a capela vai, aos poucos, conquistar espaço na rotina dos comerciantes e trabalhadores do bairro. “Quando vi totalmente restaurada, fiquei emocionado de ver uma igreja com uma beleza tão intensa. E isso vem nos mostrar como nossos antepassados têm um carinho pelas coisas da fé. Eles colocavam seu trabalho, seu suor, porque valorizavam a igreja. Agora, vamos poder voltar e saber que vai começar uma nova tradição”, declarou.