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Thais Borges
Publicado em 16 de maio de 2021 às 11:00
- Atualizado há 2 anos
Quando a vacina Sputnik V foi lançada pela Rússia, em agosto do ano passado, foi recebida com alguma dúvida pela comunidade internacional. Na época, o imunizante - o primeiro a ser registrado contra a covid-19 em todo o mundo - ainda estava para começar a fase 3 dos estudos, que é a etapa de testes em humanos em larga escala. >
Mas com a publicação de resultados de 91,6% de eficácia, em fevereiro, e o anúncio da compra de 9,7 milhões de doses pelo governo baiano, a chegada da vacina ao Brasil se tornou cada vez mais esperada. Só que o que podia ser a chance de a Bahia avançar na imunização acabou perdendo destaque para um imbróglio que envolve cientistas, agência reguladora, governos e juristas nos últimos dias. >
Leia mais: 'Não tive medo de tomar a Sputnik e não senti nada', diz brasileira imunizada com vacina russa Leia mais: Da Rússia à análise da Anvisa: entenda a cronologia da vacina Sputnik V até aqui>
Agora, depois de muita movimentação, o processo de aprovação da vacina russa no Brasil pode ganhar um desfecho em breve. Na última quinta-feira (13), o governador Rui Costa anunciou que os governadores do Nordeste tinham recebido o relatório técnico com o perfil solicitado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), já ratificado pelo comitê científico do consórcio dos estados. “Vamos protocolá-lo na agência ainda hoje (quinta) e ver se finalmente a Anvisa resolve ajudar, para que consigamos trazer para o Brasil as 37 milhões de doses e acelerar a vacinação. Estamos com alguns problemas com a vacina da AstraZeneca, em relação às grávidas, e em relação à produção da Coronavac, então a Sputnik pode ser importante para ampliar o leque de imunizantes”, afirmou. Por enquanto, ainda não é possível afirmar que essa quantidade de doses do contrato está garantida. Segundo a Secretaria da Saúde do Estado (Sesab) e a Procuradoria Geral do Estado (PGE), “não é possível comentar ou fazer afirmações sobre objeto de contrato com base em suposições, visto que a Anvisa sequer autorizou a importação do imunobiológico russo”. Os órgãos afirmam que vão aguardar os desdobramentos da avaliação do Supremo Tribunal Federal (STF). >
Falta de documentos O dia 26 de abril teve, até agora, o principal golpe contra a Sputnik V. Foi quando a diretoria da Anvisa negou, por unanimidade, a importação e o uso da vacina, pedidos por 10 estados. Desde janeiro, a agência tem dado seguidas negativas às solicitações. >
Há dois processos diferentes em curso: um, pela farmacêutica União Química, para produzir os imunizantes no Brasil, e outro, de importação e uso emergencial pelos estados do Nordeste, através do consórcio, e outros como Acre e Mato Grosso. >
Segundo a Anvisa, foram identificadas "incertezas" em relação à segurança e à eficácia do imunizante. Um dos pontos apontados foi a presença de um adenovírus replicante em todos os lotes analisados. Os cientistas russos negam que o vírus se replique. De lá para cá, novos documentos foram enviados ao órgão, que, na última segunda-feira (10), informou ao STF quais eram as pendências para a análise. >
Na terça-feira (11), o presidente da agência, Antonio Barra Torres, afirmou, durante sua participação na CPI da Covid, no Senado, que o processo de aprovação da vacina estava parado. Ele listou com mais detalhes os problemas enxergados pelo órgão, mas reforçou que a decisão tinha base nos documentos enviados pelos russos, já que a agência não faz testes laboratoriais. >
Segundo Barra Torres, faltava que os representantes da Sputnik V enviassem um relatório técnico que demonstrasse a qualidade, segurança e a eficácia.“Não basta um atesto pura e simples.É preciso que todo aquele processo seja demonstrado de maneira que quem analisa possa cumprir as etapas e chegar no mesmo lugar. Isso não veio”, disse, na ocasião, citando também a ausência de estudos de toxicidade e ao menos outros 12 itens. Para o farmacêutico Julio Ponce, doutor em Epidemiologia pela Universidade de São Paulo (USP), a Anvisa seguiu os mesmos critérios rigorosos com que analisou as outras vacinas já aprovadas. A agência chegou a solicitar ao STF uma extensão do prazo - inicialmente 30 dias -, mas não foi atendida. >
"Naquele momento, a Anvisa não tinha informações suficientes para tomar uma decisão a favor da importação, o que não quer dizer que a vacina não é segura. O que aconteceu foi que a empresa não trouxe os documentos para atestar essa informação", explica. A Sputnik V foi a primeira vacina registrada contra covid-19 no mundo (Foto: Shutterstock) Vetor viral Entender a ponderação sobre o suposto adenovírus replicante na Sputnik V é importante justamente porque é ele quem faz com que ela seja uma vacina baseada em um vetor viral. Isso significa dizer que os cientistas modificaram geneticamente esse adenovírus e inseriram nele um DNA capaz de codificar a proteína spike do coronavírus. >
Só que, ao contrário de outros imunizantes que também usam adenovírus - como o da AstraZeneca e o da Janssen -, a Sputnik V usa dois vetores: o Ad26 e o Ad5. Esse é justamente o trunfo da vacina russa, em comparação a outras. "A ideia de modificar dois adenovírus diferentes é para reduzir uma possível resposta imune contra o próprio vetor. Por isso, ela tem uma eficácia maior do que as outras vacinas com vetor viral. A eficácia dela no estudo publicado foi acima de 90, enquanto as outras ficam em torno de 70% a 75%", diz a infectologista e imunologista Fernanda Grassi, pesquisadora da Fiocruz e integrante da Rede Covida. Usar um adenovírus geneticamente modificado para que não se repliquem é algo relativamente comum - acontece em vacinas como a do ebola, por exemplo. Esse tipo de imunizante costuma ser considerado seguro pela comunidade científica. No caso das de covid-19, a da Janssen usa o Ad26, enquanto a AstraZeneca conta com um adenovírus de chimpanzé. >
Na Sputnik V, o grande problema ocorreria no Ad25 - que está presente apenas na segunda dose. Na primeira dose, usa-se o Ad26. “Os adenovírus normalmente podem causar resfriados ou diarreias, que é algo bem menos grave que a covid”, explica Fernanda. Ela explica que, se a dose de reforço usasse o mesmo vetor viral - por exemplo, duas doses de Ad26 -, o corpo poderia criar uma resposta imune a esse vírus. >
“Acho que a gente tem que pesar o risco e o benefício numa pandemia, mas não tenho condição de julgar porque não tive acesso. São vários comitês que avaliam, porque a Anvisa é uma agência reguladora que trabalha em cima de documentos. Então, a questão da Sputnik tem que ser resolvida com comunicação e transparência”, opina a infectologista. >
O farmacêutico Julio Ponce também não vê grandes riscos no adenovírus em si - justamente porque as doenças causadas por ele não têm muita gravidade. "Mas se eu estou vendendo um produto dizendo que não tem vírus replicante e eu admito a possibilidade de ter, preciso comprovar que, mesmo com essa capacidade de replicação, ela não é prejudicial à saúde. E a Sputnik não fez isso". >
Ponce afirma que "entende o rigor" da Anvisa. Quando os cientistas russos afirmam que há 'menos' do que o limite internacional permite para adenovírus em uma vacina, eles não afirmam que o índice é zero. "Isso poderia ser resolvido pedindo para o Gamaleya fazer uma análise com o mesmo limite do placebo. Eu entendo que a Rússia utilizou um limite diferente e que, dentro dos limites estabelecidos pela agência russa, teria passado. Mas não é o limite da Anvisa", pondera Ponce, reforçando que a agência brasileira faz parte de um consórcio de países rigorosos na avaliação de medicamentos e produtos biológicos desde 2016. "Ou seja, ela é reconhecida internacionalmente pelo seu rigor", completa. Parecer técnico Alguns dias após a decisão da Anvisa, no dia 4 deste mês, o comitê científico do Consórcio Nordeste divulgou uma nota afirmando que recebeu com surpresa a decisão da agência. No documento, anexaram um parecer do médico e virologista Amilcar Tanuri, doutor em Genética e Virologia e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). >
No parecer, o professor afirma que os benefícios da Sputnik V para a população seriam “enormes”. Ele aponta que, até dezembro deste ano, as previsões são de que o Brasil deve ter ainda entre 300 mil e 500 mil mortes por covid-19. No entanto, com uma vacina com mais de 90% de eficácia, o número de óbitos cairia para algo entre 27 mil a 45 mil.“A Anvisa negou a importação da Sputnik V basicamente por ausência documental e acho que para sanar estas pendências vai ainda demorar muito e perderemos o tempo adequado de vacinar rapidamente a população brasileira”, conclui, no texto.Ao CORREIO, Tanuri afirmou que os documentos que recebeu respondem à pergunta principal da Anvisa - sobre o vírus replicante -, além de informações sobre a segurança. "A tecnologia da Sputnik é muito semelhante à usada pela AstraZeneca e pela Janssen. No documento, eu falo que não é plausível que ela seja muito mais tóxica que as outras", explica. >
No entanto, ele contesta que exista um vírus replicante na vacina. Teria havido, assim, um erro de interpretação, especialmente porque a agência não teria tido acesso aos novos documentos. Os mais recentes, segundo ele, mostram que a análise dos lotes provam que não há vírus ativo na vacina. >
Para Tanuri, diante da situação epidemiológica do Brasil, é preciso analisar o que a Anvisa aponta como risco-benefício. Sem a vacinação em massa o quanto antes, é possível que surjam novas variantes mais transmissíveis e fatais do vírus, como aconteceu com a cepa de Manaus, a P1. >
"É óbvio que a vacina vai ter um benefício muito maior", reforça. Na avaliação do professor, inclusive, a Anvisa colocou requisitos muito altos para uma importação emergencial neste contexto. >
Em seu parecer, Tanuri fez algumas sugestões para a importação das vacinas, de modo que os pontos apresentados pela Anvisa fossem sanados de alguma forma. Uma das medidas seria fazer uma importação lote a lote que, a cada carregamento, apresentasse também laudos indicando a quantidade de vírus na vacina, que não há adenovírus replicantes, nem contaminação por outros patógenos. "E quando essa vacina chegasse no Brasil, faríamos uma farmacovigilância, que é procurar casos com efeitos colaterais graves", indica. >
No entanto, Tanuri destaca que os resultados de países que já usam a Sputnik V amplamente já provam que a vacina tem um bom perfil de segurança, além da alta eficácia. >
Ainda assim, ele não acredita que deva existir uma briga com a Anvisa. Para o professor, é preciso encontrar um caminho para que a vacina consiga ser aplicada, porque a população se beneficiaria dela. "Qual é a plausibilidade de uma vacina com uma tecnologia muito semelhante à AstraZeneca e à Janssen ser tão monstruosa assim? Se a gente não vacinar, quem vai pegar esse pessoal é o vírus que está circulando e matando três mil pessoas por dia". México incluiu a Sputnik V entre os imunizantes usados no país em fevereiro (Foto: Shutterstock) Outros países Citados no parecer do professor Tanuri, Argentina e México se tornaram referência para a vacinação com a Sputnik V na América Latina. No México, a Sputnik foi aprovada em fevereiro e, agora, faz parte de um grupo de imunizantes usados no país que inclui Pfizer, AstraZeneca, Coronavac e CanSino (uma vacina chinesa de dose única que ainda não é utilizada no Brasil). “A boa notícia é que o México é um dos países que têm uma vacinação contínua e temos acesso universal às vacinas”, diz o Dr. Xavier Tello, analista mexicano em políticas de saúde.Ele conta que a Sputnik V tem sido administrada na população sem qualquer distinção com as outras, de acordo com a disponibilidade no mundo. >
A aprovação do uso emergencial foi rápida, mas, na avaliação dele, “obscura”. “Não é novidade que a Sputnik V tem tido muitas controvérsias no sentido de informações sobre os estudos clínicos”, pondera. Ainda assim, a questão foi resolvida inclusive com a ajuda do governo argentino, que disponibilizou dados clínicos sobre a vacina no país aos mexicanos. >
Depois que os documentos foram entregues ao órgão regulatório do México, não houve nenhum questionamento para a aprovação. Segundo Tello, não houve até então nenhuma complicação ou efeito adverso grave com nenhuma vacina no país, incluindo a Sputnik V. >
“Creio que no caso do Brasil, como de outros países que, nesse momento, têm grandes problemas de mortalidade por covid-19, o processo de aprovação de qualquer que seja a vacina deve ser acelerado”, defende. “Os riscos e efeitos secundários que poderiam acontecer com algumas vacinas são muito menores do que os riscos que estamos vendo com a doença”, completa. A Argentina começou a utilizar a Sputnik V ainda em dezembro do ano passado (Foto: Shutterstock) Já na Argentina, aproximadamente metade dos cerca de oito milhões de vacinados receberam a Sputnik V. O país foi o primeiro da América Latina a usar a vacina russa, ainda no dia 29 de dezembro do ano passado. Na ocasião, foram importadas inicialmente 300 mil doses para profissionais de saúde. >
Hoje, o país já recebeu pouco mais de 12,6 milhões - além da Sputnik V, também foram aprovados os imunizantes da AstraZeneca e da Sinopharm. O cônsul da Argentina em Salvador, Pablo Virasoro, confirma que não houve nenhum evento adverso severo pela aplicação da vacina russa. >
"Não tem registro de nenhuma reação grave. Já são milhões de pessoas vacinadas e já temos quase cinco meses de experiência. O que pode se falar é que é uma vacina bastante testada na Argentina, que inclusive já está em negociaçao avançada no acordo para produzir lá mesmo", conta, referindo-se à produção pelo Laboratório Richmond. Assim, o IFA deve vir da Rússia e ser envasado na Argentina - assim como acontece com a Coronavac e com a AstraZeneca no Brasil. A produção em massa deve começar em junho. >
De acordo com ele, a aceitação da vacina pelos argentinos é tão grande que há, inclusive, uma preferência pela Sputnik V, por quem vai se vacinar. No entanto, assim como no Brasil, lá também não é possível escolher o imunizante que a pessoa vai receber. "Meus pais foram vacinados com a Sputnik, são bem idosos e estão bem", conta. "Acho que, com o tempo, o boca a boca foi expressivo. Todo mundo passou bem com a vacina e os números demonstram que é uma vacina eficaz", diz. Mas nem sempre foi assim. Ainda que exista um consenso na população argentina sobre a necessidade da vacinação, a Sputnik V foi criticada, no começo, principalmente por políticos da oposição ao governo do presidente Alberto Fernandez. As críticas foram porque, quando o imunizante foi aprovado pela Anmat, a Anvisa argentina, os estudos com os resultados dos testes ainda não haviam sido publicados. >
"Mas a Anmat viajou para Moscou. Eles permaneceram lá por três semanas e revisaram todos os estudos no Instituto Gamaleya. Essa viagem foi em novembro do ano passado, o que tornou possível autorizar o uso emergencial em dezembro", explica Virasoro. >
*Colaborou Vinícius Nascimento>
'Não tive medo de tomar a Sputnik e não senti nada', diz brasileira imunizada com vacina russa Conheça a médica baiana que trabalha com a vacinação na Argentina (Foto: Acervo pessoal) >
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