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A voz que me habita: entenda a cirurgia de mudança vocal para pessoas trans

Readequação também pode ser atingida com fonoterapia, disponível na rede pública

  • Foto do(a) author(a) Thais Borges
  • Thais Borges

Publicado em 8 de janeiro de 2023 às 05:00

. Crédito: Foto: Shutterstock

Cada dia envolvia muito esforço. No trabalho, onde lida diretamente com o público em um estabelecimento comercial, a atendente Maria Eduarda Morais, 23 anos, se cansava ainda mais. O esforço era bem específico: queria que sua voz ficasse mais suave. Ao final do dia, sentia-se exausta. Com frequência, ficava rouca de tanto buscar um outro tom que não aquele que insistia em sair das suas cordas vocais. “Era uma voz que não fazia parte de mim, porque todo mundo vê uma mulher”, conta a jovem. Maria Eduarda é uma mulher trans que, por muito tempo, não conseguia se reconhecer com sua própria voz. “Tinha até medo de falar com as pessoas, porque a voz era muito grossa”, lembra. Foram incontáveis as vezes em que percebeu expressões de surpresa pelo tom grave ou mesmo escutou comentários carregados de preconceito. Por mais que tentasse ignorar, a situação recorrente a afetava. Em setembro do ano passado, contudo, as coisas mudaram. Foi quando Maria Eduarda fez uma cirurgia para readequação vocal - ou mudança vocal -, com o objetivo de ter uma voz mais aguda e suave. 

Quando se escutou novamente pela primeira vez - após duas semanas sem falar, um dos requisitos do pós-operatório, a jovem não segurou o choro. "Foi de emoção. Agora, eu não preciso mais forçar uma voz suave que não era para mim. Essa cirurgia mudou minha vida", acrescenta Maria Eduarda, em entrevista, quase cinco meses depois do procedimento e bem no mês dedicado à Visibilidade Trans. 

Depoimentos como o dela são comuns na rotina da médica otorrinolaringologista Erica Campos, especialista em laringologia e mudança vocal pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), única profissional que faz esse procedimento na Bahia e nome por trás da cirurgia de Maria Eduarda. Nos últimos dois anos, ela viu crescer a demanda de pacientes trans, que vêm, inclusive, de outros estados. 

“Quando comecei, eram quatro, cinco pacientes por ano. Agora, tem semanas que faço cinco cirurgias”, diz ela, que é baiana, mas fez toda a formação médica entre São Paulo e os Estados Unidos. Hoje, atende em um hospital privado de Salvador e outro em Feira de Santana. 

A cirurgia não está disponível em nenhuma unidade da rede pública no estado, mas, de acordo com a assessoria do Ministério da Saúde, está entre os procedimentos que envolvem o processo transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS). Em todo o Brasil, há 15 centros que oferecem atenção especializada para o processo. Nem todos, porém, incluem a cirurgia vocal, restrita a cinco centros em estados como São Paulo e Goiás. 

Procedimento A cirurgia de modificação de pitch vocal ou de tom vocal tem sido demandada, principalmente, por mulheres trans que querem deixar a voz mais aguda ou suave. Homens trans também recorrem ao procedimento, mas em menor frequência. No caso deles, a terapia hormonal já costuma fazer diferença também na voz. Ou seja, a testosterona já consegue ‘virilizar’ o tom de voz, dizem os especialistas.

Há, ainda, mulheres cisgênero - ou cis, aquelas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído no nascimento - que aderiram aos implantes hormonais como o chip da beleza (que têm, como efeito colateral, o engrossamento da voz) e homens cis que não tiveram a muda vocal completa durante a puberdade. 

“Mas, a maior busca é das mulheres trans, sem dúvida”, diz a otorrinolaringologista Erica Campos. Ainda que a técnica não seja necessariamente algo novo na área, somente nos últimos anos é que o debate sobre pacientes trans aumentou. 

O procedimento destinado às mulheres trans, em geral, é a glotoplastia. Trata-se de uma cirurgia feita por dentro da boca e considerada minimamente invasiva. Não há cortes externos, nem cicatrizes e todo o processo dura cerca de uma hora e meia. Se a paciente quiser remover a chamada proeminência laríngea - mais conhecida como pomo-de-adão -, a cirurgia pode chegar a duas horas.

Retirar o pomo-de-adão não faz diferença na voz, de acordo com Erica. A mudança é apenas estética. “A glotoplastia atua diretamente sobre a corda vocal, que fica mais curta. Ela funciona pelo mesmo princípio da corda de um violão”, explica. No caso dos homens trans, a cirurgia é chamada de tireoplastia tipo 3 e envolve um corte pequeno no pescoço, na região chamada de arcabouço da laringe. Por fora da laringe, há um esqueleto de cartilagem que lhe dá sustentação. Para tornar a voz mais grave, é preciso mexer na estrutura para diminuir a tensão.  Segundo a otorrinolaringologista Erica Campos, a cirurgia para mudança vocal exige um pós-operatório de silêncio total por até dez dias, em média (Foto: Divulgação) Para a otorrinolaringologista, o mais desafiador é passar de sete a dez dias em silêncio total. A pessoa pode comer normalmente e desempenhar atividades do cotidiano (com exceção de atividades físicas que precisem de muito esforço), mas não pode falar nada. 

“Cada vez que ela fala, imprime uma tensão sobre a sutura que a gente faz. Assim, corre o risco de a sutura romper e perdermos o resultado. A gente também aconselha que as pacientes evitem situações que podem desencadear muita tosse e espirro”, diz. 

Tanto a glotoplastia quanto a tireoplastia custam em torno de R$ 20 mil. Como o procedimento não faz parte do rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), não está incluso na cobertura de nenhum plano de saúde. No entanto, a otorrinolaringologista explica que, entre as formas de pagamento, há desde parcelamento no cartão de crédito até boleto bancário e consórcios de cirurgia. 

“Eu costumo falar que essa cirurgia não transforma só a voz. Ela transforma vidas, porque a voz é como a gente se reconhece e como os pares nos reconhecem. Pelo que eu vejo, é uma cirurgia tão desejada quanto as corporais, ou talvez até mais. Porque a corporal também é um sonho, mas a gente não vê o corpo de todo mundo o tempo todo. Mas a voz a gente usa o tempo todo”, acrescenta a médica, referindo-se à cirurgia de redesignação sexual. 

Pós-operatório O pós-operatório de Maria Eduarda teve uma única complicação justamente por ela ter tossido muito. Um dos pontos acabou soltando antes da hora e, por isso, teve que passar 14 dias em silêncio - praticamente o dobro do que normalmente é solicitado às pacientes. 

Maria Eduarda, que deu início à transição aos 19 anos, chegou até a médica através de uma amiga, também mulher trans. Passou por uma assistente social e por uma psicóloga antes de começar a fazer os exames para a cirurgia. Ela ainda aproveitou para retirar o pomo-de-adão. Apesar de não ser algo que a incomodava muito, sentiu que era uma oportunidade. 

“Quando fiz a cirurgia, não falei para ninguém (no trabalho) que era sobre a voz. Não queria falar logo para que as pessoas percebessem a diferença. Quando elas viram, ficaram bestas”, lembra. 

Natural de uma pequena cidade do interior da Bahia, Maria Eduarda sempre soube que queria fazer a transição. Quando morava com os pais, porém, não podia e nem tinha acesso a serviços de saúde. Foi só quando se mudou para Feira de Santana, para viver com uma tia, que conheceu um serviço em um posto de saúde da cidade. Lá, fez acompanhamento com uma endocrinologista que lhe deu seus primeiros hormônios. “No trabalho, tinha muitos clientes que falavam ‘que voz de homem’. Mulheres trans não gostam de escutar isso. Você está vendo uma mulher e de repente escuta uma voz de homem. Por isso, quando soube que ia conseguir fazer a cirurgia, pulei, gritei. Fiquei muito feliz”.Depois do procedimento, Maria Eduarda chegou a fazer fonoterapia para estabilizar a voz. Segundo a otorrinolaringologista Erica Campos, ela sempre recomenda que pacientes que passam pela cirurgia façam pelo menos de quatro a seis sessões, porque uma voz é mais do que o tom produzido nas cordas vocais.  Otorrinolaringologista, Erica Campos é a única médica que faz a cirurgia na Bahia, por enquanto (Foto: Divulgação) Fonoterapia Para algumas pacientes, a fonoterapia pode ser suficiente. Vai depender do tom de voz que elas queiram ter, como explica o fonoaudiólogo Marcus Carvalho, especialista em voz. Segundo ele, a voz é um dos aspectos que garante que a pessoa trans se sinta completa em sua identidade, sobretudo no caso das mulheres.

“Elas já começam dizendo que precisam deixar a voz aguda, porque, na nossa sociedade, há um marcador de dois gêneros. A gente entende que homem tem voz grave e mulher tem voz aguda”, explica. 

Assim, na fonoterapia, são feitos exercícios que trabalham a musculatura da laringe, mas também que filtram a voz. Casos como o de Maria Eduarda, que tentava suavizar a própria voz por conta própria, são comuns, de acordo com ele. 

Muitas vezes, as mulheres trans começam a fazer esses ajustes para chegar perto da voz que entendem como ideal. No entanto, muitas vezes começam a gerar tensões e não conseguem manter a voz. Já os homens buscam a fonoterapia por outras questões, na maior parte das vezes. Ainda que tenham chegado à voz mais grave através da terapia hormonal, por vezes eles não conseguem gritar ou mesmo falar alto.  O fonoaudiólogo Marcus Carvalho explica que algumas pacientes atingem a voz que desejam com a fonoterapia (Foto: Divulgação) “O trabalho vem também para conseguir aproveitar essa voz que o hormônio conseguiu modificar. A gente consegue perceber homens trans com a voz abafada, porque não conseguem projetar a voz”. O fonoaudiólogo reforça que cada situação é única e tem a ver com a história de cada paciente. Ele já atendeu, por exemplo, mulheres trans que não se incomodavam com a voz grave. Eram mulheres que entendiam que, por serem altas, não 'combinariam' com uma voz aguda. Assim, queriam trabalhar apenas a suavidade vocal. 

O ideal é buscar saber como cada pessoa quer ser vista na sociedade. “Elas falam que querem ter a ‘passabilidade’, ou seja, uma pessoa trans que não seja identificada como pessoa trans. Até porque, no caso delas, é também uma proteção à vida”. 

Ainda de acordo com Carvalho, uma vez que elas aprendem a automatizar a voz que querem na fonoterapia, podem mantê-la durante toda a vida. “Pelo fato de se sentirem seguras com a voz, conseguem interagir muito mais socialmente. Isso interfere diretamente na vida social dessas pessoas”, completa. 

Serviço público  De acordo com a Secretaria Estadual da Saúde (Sesab), a rede tem dois ambulatórios do processo transexualizador: o do Hospital Universitário Professor Edgard Santos (Hupes), ligado à Universidade Federal da Bahia (Ufba), e o do Centro Estadual Especializado em Diagnóstico, Assistência e Pesquisa (Cedap). 

Ambos atendem por demanda espontânea e, segundo a Sesab, os tratamentos e terapias são avaliados e conduzidos a partir do acolhimento nos serviços. Nenhum dos dois têm habilitação para realizar procedimentos cirúrgicos ainda. 

No Hupes, porém, desde novembro do ano passado, pessoas trans, não-binárias e travestis podem buscar atendimento de fonoterapia pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O Programa Vocal Trans foi inaugurado no Serviço de Fonoaudiologia do Complexo Hupes e conta, ainda, com um fonoaudiólogo voluntário designado para o atendimento junto ao Ambulatório Transexualizador da unidade. “A voz é um dos principais veículos da comunicação humana e expressa características pessoais, como idade, estado emocional e gênero. O principal objetivo da fonoterapia para a pessoa trans é a adequação da voz à identidade de gênero, também chamada de redesignação vocal”, diz a fonoaudióloga Maria Lúcia Masson, professora do departamento de Fonoaudiologia da Ufba e supervisora do Programa Vocal Trans do Hupes. Ela explica que o programa compreende avaliação vocal, fonoterapia individual e oficinas de expressividade em grupo, numa parceria entre o serviço de fonoaudiologia do hospital e o ambulatório. Primeiro, há um acolhimento com escuta inicial da demanda vocal, identificação do gênero e as expectativas. Em seguida, na avaliação vocal, é o momento de aprofundar a história pessoal, de saúde, hábitos e rotina da paciente, focando no percurso da transição de gênero e na autopercepção da voz. 

Já na fonoterapia, a pessoa aprende sobre aspectos como psicodinâmica vocal, que são as impressões transmitidas pela voz, como sensualidade, autoridade e agressividade; pitch, que é o tom; loudness (o volume), articulação, velocidade, ressonância e entonação (conhecida como prosódia). “Todos esses aspectos têm relação direta com a identidade de gênero, que pode ser mais masculina ou feminina”, acrescenta a professora. 

De acordo com o fonoaudiólogo Gabriel Cabral, que atua na equipe do Ambulatório Transexualizador do Hupes, ainda que o programa seja recente, há uma grande demanda, especialmente de mulheres trans. A expectativa dos profissionais é de abraçar a individualidade de cada pessoa, não apenas com a demanda vocal, mas incluindo o discurso, comportamento gestual e seleção de palavras. “A grande maioria revela uma grande elevação da autoestima, relatando que se sente mais confiante, feliz e confortável. Essas pessoas perdem o medo de se comunicar em lugares públicos, de conversar com outras pessoas, de atender ao telefone, de gravar um simples áudio no Whatsapp o que, por consequência, influencia positivamente a saúde mental delas”, diz o fonoaudiólogo. Para acessar o serviço no ambulatório do Hupes, é preciso ir até o guichê do prédio José Maria de Magalhães Neto, em dias úteis, das 13h às 19h. Os atendimentos acontecem às sextas-feiras, sempre à tarde. Segundo a coordenação do ambulatório, as cirurgias de readequação vocal fazem parte da portaria do Ministério da Saúde. O Hupes aguarda a habilitação, pelo órgão federal, para fazer cirurgias.  Na Bahia, ainda não há centros que façam a cirurgia vocal pelo SUS, mas a fonoterapia está disponível no Ambulatório Transexualizador do Hupes/Ufba (Foto: Shutterstock) Voz é essencial para ter gênero reconhecido, mas não é o único aspecto

Além de ser uma forma de se reconhecer e reconhecer o outro, é através da voz que pessoas trans e travestis reivindicam seus direitos e sua identidade de gênero. Essa é a leitura da psicóloga Ariane Senna, doutoranda em Psicologia Social pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e coordenadora da Comissão de Mulheres e Relações de Gênero do Conselho Regional de Psicologia da Bahia. “É através dessa voz que nós, mulheres trans e travestis, temos nosso gênero reconhecido ou deslegitimado, a depender se essa voz atende ou não às normativas cisgêneras”, afirma. Quando a voz não coincide com o gênero designado no nascimento, ela pode também se transformar automaticamente em um desgosto, além de um desejo para mudar. Isso acontece também porque a voz, muitas vezes, chega antes mesmo do corpo passar pela readequação de gênero Como destaca Ariane, se uma pessoa trans falar ao telefone com uma determinada empresa e não for reconhecida com uma voz esperada para o gênero com o qual ela se identifica, pode ser vista até como suspeita de fraude. 

“Pode gerar uma série de problemas de interdição social e gerar desconforto, medo, revolta, indignação, depressão, ansiedade e tantos outros transtornos emocionais e psicológicos”, argumenta. 

Quando alguém passa por uma cirurgia ou tratamento de readequação vocal e relata uma mudança de vida, é como se estivesse, portanto, quebrando essa interdição. A pessoa passa a conviver com o direito de transitar, falar ao telefone e se relacionar sem suspeitas, medo ou insegurança. 

“Para algumas pessoas, poderá ser um sentimento de libertação, de ressurreição. Para outras, pode ser de frustração, especialmente se for apenas a fonoterapia, porque não garante que corresponderá ao desejo que a pessoa tinha”, acrescenta, enfatizando que acredita ser importante que todas as pessoas, sejam trans ou cia, passem por psicoterapia antes de passar por procedimentos estéticos ou cirúrgicos justamente para trabalhar expectativas e evitar frustrações. 

Mas, como reforça a ativista Millena Passos, vice-presidente da União Nacional LGBT e primeira servidora trans em uma secretaria de políticas para mulheres (a SPM estadual), a importância da readequação de gênero vai além da mudança vocal. “Não é só a voz. É hormonioterapia, silicone, cirurgia de redesignação. Tudo é muito importante para se autoafirmar e se aceitar”, diz. Ela diz que mulheres trans são particularmente cobradas para apresentar um fenótipo atribuído a mulheres. “A gente faz até loucuras, como colocar silicone clandestinamente, por isso é importante o apoio com políticas voltadas para essa população”. 

Segundo Millena, os corpos trans são políticos também porque não passam despercebidos. “A sociedade é muito cruel, machista e sexista. Pessoas trans merecem respeito porque são cidadãs, pagam impostos e precisam de um tratamento humanizado”, reitera.