Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Roberto Midlej
Publicado em 5 de agosto de 2022 às 06:00
- Atualizado há 2 anos
Caetano Veloso está completando 80 anos neste domingo e é reconhecido como um dos maiores letristas - e poetas - da língua portuguesa. Mas, ainda assim, o próprio compositor reluta em reconhecer isso: "Tenho apenas de confessar que em nenhum caso eu aprovei a letra (ou a música) quando cheguei a completá-la", revela o tropicalista no livro Letras, organizado pelo poeta Eucanaã Ferraz.
Mais à frente, Caetano insiste na modéstia: "Recentemente, tenho mais é me prometido parar de compor, simplesmente para não aumentar o número já grande demais de musiquinhas olvidáveis". E acrescenta que, "às vezes", vê "alguma beleza" em suas canções.
A publicação, que está sendo lançada pela editora Companhia das Letras para celebrar o novo octogenário baiano, reúne 390 composições que Caetano criou em aproximadamente 60 anos de carreira. Há um pequeno texto introdutório de duas páginas assinado pelo próprio músico e um segundo, mais longo, escrito pelo organizador. Em 2003, o mesmo Eucanaã organizou o livro Letra Só, que reunia as composições de Caetano e foi lançado pela mesma editora.
Mas há, entre as duas publicações, diferenças importantes. Ao contrário da primeira, a atual tem todas as composições do artista baiano. Aquela outra era uma seleção, com aproximadamente 180 letras contra as quase 400 desta nova."Trata-se de uma obra integral, não de uma seleção. Adotou-se [no novo livro] uma disposição cronológica inversa [das composições mais novas para as mais antigas]. Além do acréscimo das letras que ficaram fora de Letra Só, aqui estão também as composições realizadas nos dezenove anos que separam um livro do outro", revela Eucanaã.Admirador confesso de Caetano, o organizador não se preocupa em esconder isso: "Deparar com O Quereres é sempre um espanto. Meu Bem, Meu Mal vale por um dicionário de rimas. Tropicália e todas as canções contemporâneas a ela ainda surpreendem e continuam a suscitar debates e interpretações".
Esses debates e interpretações a que Eucanaã se refere ficariam ainda mais interessantes se o livro acrescentasse comentários do próprio Caetano a algumas letras, como acontece no livro que reúne as composições de Gilberto Gil e que foi lançado há cerca de um mês pela mesma editora para celebrar os 80 anos do autor de Aquele Abraço. Gil conta ótimas histórias e contextualiza as composições, o que acrescenta muito ao livro, também chamado Letras. As informações saciam a curiosidade dos fãs sobre diversas composições dele.
Os fãs de Caetano também gostariam de ouvir mais histórias, como a que envolve a canção A Little More Blue (1971) e que aparece na introdução de Letras. Eucanaã explica o que ocorreu com a composição: "Foram cortados, no fonograma, dois versos: o primeiro deles nomeia a famosa atriz argentina Libertad Lamarque, e os censores entenderam que aquilo era um modo cifrado de Caetano pedir 'liberdade para Lamarca' (o célebre guerrilheiro, capitão do Exército, que se tornaria um dos líderes da luta armada contra a ditadura militar). Durante o trabalho de realização de Letras, Caetano ouviu a gravação original e transcreveu os versos que faltavam, agora reincorporados à letra da canção: 'But Libertad Lamarque who was their mother/ Suddenly appeared between them'".
Caetano e a negritude A pesquisadora Eneida Leal Cunha, admiradora da obra de Caetano e de suas letras, já escreveu um artigo acadêmico sobre a relação da obra do tropicalista com a negritude soteropolitana, intitulado Dentro e Fora da Nova Ordem Mundial: A Negritude de Salvador. Eneida ensinou na Ufba por 35 anos e hoje é da Universidade Federal do Rio de Janeiro. No texto, Eneida usava ainda outras duas composições de Caetano - Haiti e Beleza Pura."Fiz uma análise pegando três músicas para mostrar três momentos diferentes dessa negritude. E Neide Candolina revelava um momento expressivo de dinamização da economia baiana, no final dos anos 1970, um momento de ingresso dessa parte da população negra numa ordem econômica menos cruel", diz Eneida.A letra faz referência à elegância da personagem e à ascensão econômica dela: "Preta chique, essa preta é bem linda/ Essa preta é muito fina/ Tem um Gol que ela mesma comprou/ Com o dinheiro que juntou/ Ensinando português no Central".
Em Beleza Pura (1979), Eneida observa o mito da negritude que Caetano retrata. "Ele fala em 'carne dura', 'beleza pura', dinheiro, não'. Mostra a identidade afrobaiana que se constitui e a mitologia em torno disso", diz a professora. "Em Haiti (1993), Caetano recolhe sua lira para fazer um rap e aderir a uma forma que é da negritude, para denunciar a violência. [na letra], ele e todos os brancos estão lá em cima, olhando do alto o que acontece lá embaixo", acrescenta Eneida.
A pesquisadora defende que Caetano, especialmente entre o Tropicalismo (final dos anos 1960) e o lançamento do livro Verdade Tropical (1997), foi uma espécie de porta-voz de um projeto de brasilidade: "Ele formula uma certa imagem da brasilidade que interessa a ele. Caetano vem da linhagem de Gilberto Freyre, de Jorge Amado... Ele tem uma linhagem, mas isso não significa que seja igual aos outros. Ao contrário, é um bom herdeiro, capaz de modificar a herança. Quem repete a herança não é bom herdeiro: é pobre. Só é bom herdeiro quem faz a herança crescer"
Contos O escritor baiano Marcus Vinicius Rodrigues, nascido em 1968 e admirador de Caetano desde a adolescência, escrevia poemas imitando o estilo do compositor."Nas aulas de geografia, eu ficava escrevendo poemas inspirados em Caetano. O livro de geografia só tinha poemas", diverte-se o escritor.A brincadeira nas aulas acabou ficando séria e, em 2016, Marcus Vinícius Rodrigues lançou A Eternidade da Maçã, uma reunião de sete contos inspirados em canções de Caetano Veloso. As histórias se passam entre os anos 1964, quando o golpe foi instaurado, e 1978, quando foi revogado o AI-5 (Ato Institucional Número 5).
Membro da Academia de Letras da Bahia desde 2019, o escritor reconhece a influência de Caetano em seu trabalho: "Influencia o meu método de fazer as coisas. Observo como ele constrói o percurso que quer fazer. Ele e André Gide [escritor francês] são minhas maiores influências", reconhece o escritor.