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Fernanda Santana
Publicado em 31 de janeiro de 2021 às 11:00
- Atualizado há 2 anos
Há nove meses, Hugo Maia Filho - um ginecologista conhecido em Salvador - vê o perfil de seus pacientes mudar. Isso porque, entre um e outro, cresceu o burburinho de que ele assinava um protocolo capaz de reduzir a resposta inflamatória do corpo contra o coronavírus e, assim, frear os efeitos da infecção.
“Se você vai a outros médicos, é a mesma coisa. Todos tratam com algum protocolo”, disse o médico. Em busca de um protocolo diferente para tratar o coronavírus, não são mais só mulheres que chegam ao consultório de Hugo, localizado no centro da cidade. “Não me lembro os números, mas acho que já atendi de 50 a 60 pacientes”, estimou.
Os pacientes que buscam terapias alternativas contra a covid-19, como a proposta pelo ginecologista e pesquisador são, geralmente, de classe social mais alta. É o que o médico reconhece: “Essa é uma verdade da qual não se fala. Os pacientes ficam sabendo e começa o boca a boca”.
Dois dos protocolos mais conhecidos são os dos tratamentos precoce e profilático - preventivo -, ambos sem respaldo científico. As receitas dos dois são à base de ivermectina e hidroxicloroquina, também sem prova de eficácia contra a covid-19.
Como o Conselho Federal de Medicina (CFM) defende a autonomia do médico na prescrição de tratamentos, se os medicamentos prescritos forem autorizados no país, eles podem ser recomendados no contexto clínico. O Ministério da Saúde respondeu à reportagem que "o profissional médico tem total autonomia para realizar o tratamento que julgar necessário". A autonomia vale também para quem não é especialista na área da prescrição, como é o caso de Hugo.
Os protocolos, espécies de “receitas de bolo” na Medicina, variam. Aquele usado por Hugo Maia é iimportado de uma multinacional holandesa, a Fagron, na qual ele integra o comitê científico. O composto é formada por 12 ativos, permitidos no Brasil, como vitaminas e antioxidantes.
Na verdade, os protocolos, são uma forma de criar um padrão na prática clínica baseado no que funciona. Por exemplo, o conjunto de medidas adotadas num paciente que enfartou. Sem tempo para decisões complexas, os médicos e outros profissionais de saúde precisam de um guia.
Se os protocolos forem criados numa rede privada, não precisam de aprovação, desde que utilizem compostos regularizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Basta que as equipes de um hospital se reúnam e deliberem o que será regra. Em caso de atendimento pelo Sistema Único de Saúde, os protocolos são aprovação pelo Ministério da Saúde, que não informou os trâmites no caso da covid-19.
Na prática, todos estão aptos a criar. a criar protocolos. Você pode, por exemplo, inventar um protocolo de exercícios - corridas intensas num dia, mais brandas no outro, conforme observe seu corpo. A diferença é se surtirá o resultado esperado ou não.“A gente pode criar protocolo de qualquer coisa. A qualidade do protocolo é outra coisa”, diferenciou Luís Correia, cardiologista e professor de Medicina Baseada em Evidência da Escola Bahia de Medicina e Saúde Pública.A metáfora de uma casa arrombada por um ladrão e a reação do proprietário contra o invasor é empregada por Hugo Maia para explicar o protocolo adotado por ele. O ladrão entra na residência, na surdina, e o dono, ao avistá-lo, reage. “Ele hiper-reage. Mas, em compensação, destrói sua casa. Seu corpo, no caso do coronavírus, é sua casa”, comparou Maia.
Segundo ele, o protocolo chamado de Imunofórmula, melhora, na fase inicial da doença, essa resposta inflamatória do corpo ao tentar debelar o coronavírus na medida ideal. Nem de mais, o que pode causar danos aos órgãos, nem de menos, insuficiente para a cura. Não há tempo, acredita Maia, para esperar se o vírus causará danos graves ou leves. Por isso, as diferentes abordagens de tratamento.“Autonomia, eu sei, vem com responsabilidades. Ônus e o bônus [dessas atitudes] são do médico”, pontuou ele. Em resumo, a ideia é: se o assalto vai destruir a casa ou apenas assustar os proprietários, depende do protocolo.
Médico encontrou receita pregada em parede de farmácia
Certa vez, o infectologista Roberto Badaró, referência na área, conta que esteve numa farmácia na capital baiana e encontrou, fixada na parede, uma de suas receitas médicas. Como se ali estivesse o “protocolo de Dr. Badaró”, que receita um protocolo específico, não informado por ele à reportagem, aos seus pacientes. “Não é meu, mas de um grupo internacional, e eu, agora, modifiquei, com base em outras evidências. Ele é dinâmico, muda de acordo com a chegada de conhecimento”, contou o também diretor do Hospital Espanhol. Durante os dias em que esteve infectado pelo coronavírus, que lhe comprometeu parte dos pulmões, no início de janeiro, Badaró fez o uso de diferentes protocolos, sem especificar quais. Os medicamentos que compõem o protocolo receitado aos pacientes são permitidos no Brasil, escolhidos a partir de evidências científicas, disse o infectologista.
Ou você "faz a utilização na crença dos objetivos, ou você deixa o curso natural da doença e, na terceira fase da infecção, a chance de morte é de 70 a 90%”, afirmou “As evidências com estudos de longa fase, não teremos em menos de um ano", acrescentou.A proposta do infectologista de crer nos objetivos, a partir de evidências científicas anteriores ou de estudos sem larga escala, vão de encontro a uma pergunta clássica feita pelos médicos em tomada de decisões: “Essa conduta trará mais benefícios que malefícios ao meu paciente?”.
As decisões deveriam se basear sempre na ciência médica, embora nem seja sempre o padrão, justamente por essa necessidade de antecipar ganhos e prejuizos. E de agir. Recebem o status de “evidências” resultados seguros de pesquisas relevantes, com bom escopo de análise. Agora, num universo de poucas certezas e muitas necessidades, a questão ganha outra profundidade.
A liberdade de decisão dos médicos cabe desde que os pacientes concordem com o tratamento. Os médicos, nesse caso, podem prescrever os medicamentos que julgarem necessários. Quanto a isso, não há certo, nem errado, na percepção no Conselho Federal de Medicina.
Quando surgiram, em José Raimundo Zacarias, 67 anos, os primeiros sintomas da infecção pelo coronavírus, a escolha foi por um desses protocolos. Ele já tinha ouvido falar de uma fórmula eficaz e procurou o médico da sua esposa. "Não sou uma pessoa que se deixa levar sem contestar. Consultei alguns médicos amigos e eles foram unânimes em achar que esse tratamento debelaria a infecção”, argumentou.Em dois, três dias, ele diz que já não sentia mais sintomas, nem a febre, nem a dor do corpo das 72 horas anteriores.
O risco do excesso
Os protocolos contra a covid-19 contemplam as trêes fases da manifestação do coronavírus, sobretudo durante e depois, quando podem surgir sequelas. E mesmo antes de qualquer infecção ou manifestação de sintomas, existem tentativas de controle, como no caso dos chamados protocolos de tratamentos profiláticos e precoces. “Eu tenho pacientes que tomam ivermectina todo dia. Obviamente, essa é a precaução que se tem que ter, porque não são drogas sem efeitos colaterais”, comentou o infectologista Roberto Badaró, a respeito das consequências de adotar, por conta própria, um protocolo. Ou de seguir uma prescrição indevida.Em excesso, sem dosagem adequada para o devido problema, a ivermectina pode causar sobrecarga no fígado e nos rins. Os excessos podem ser igualmente prejudiciais na ingestão indevida de cloroquina, com riscos de provocar alterações cardíacas, alertam médicos. Hidroxicloroquina é um dos medicamentos encontrados em alguns protocolos (Foto: Arquivo AFP) Desde março passado, o Conselho Regional de Farmacêuticos registrou um aumento de 1000% na venda de ivermectina, hidroxicloroquina e vitamina D, cuja deficiência no corpo é associada, na literatura, à falta de uma resposta imunológica eficiente. Mesmo a aparentemente inofensiva vitamina D, pode provocar, se estiver em excesso no corpo, lesões renais graves.
Somente a cloroquina precisa de prescrição para ser liberada pelo farmacêutico. Em dezembro, a Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária decidiu que não era necessário apresentar receituário médico para comprar caixas de ivermectina e nitazoxanida, outro medicamento que é usado, sem comprovação de eficácia, contra o coronavírus.“Agora, o paciente vai a uma farmácia, com a prescrição de um médico, o farmacêutico tem que liberar o medicamento. O grande problema é esse”, opinou Mário Martinelli, presidente do CFM na Bahia. O conselho abriu dez processos éticos para apurar denúncias de que farmacêuticos estariam indicando medicamentos a clientes de farmácias. Nenhum deles foi concluído até o momento.
"Decisões médicas não devem ser cópias de evidências científicas", diz médico
Se o coronavírus é comparado a um assaltante, contra quem a vítima reage, o protocolo médico é assemelhado à feitura de um prato. “Pode ser que você não queira um cozinheiro, mas um chefe, que use da criatividade, da intuição”, metaforiza Luís Correia, o médico que ensina Medicina baseada em Evidências, para simplificar a ideia de que, nem sempre, receitas de bolo são o suficiente.
Até porque receitas trabalham com regras sem considerar, às vezes, os contratempos. E se o gás acabar durante o preparo, por exemplo? O que é benéfico num protocolo, a padronização de ações para evitar medidas desnecessárias, pode não se aplicar a todos os casos.
É isso que diz Correia, quando defende a existência de algo que ele chama de “paradigma do protocolo”.“Muitas vezes, precisa-se de uma decisão individual, que varia de paciente para paciente. Protocolo garante que a medicina seja bem feita. Mas, a arte médica vai além do protocolo”, garantiu. O paradigma do protocolo remete a um "sequestro" do termo “protocolo”, em seu significado original, acrescentou ele. É como se, para defender, muitas vezes, “propostas esdrúxulas”, a palavra protocolo fosse logo utilizada, afirmou o cardiologista.“Quando se fala a palavra protocolo para tratamento precoce [por exemplo], por exemplo. A palavra tem sido muito sequestrada para falar de credibilidade. Mas a credibilidade estaria roubada da palavra protocolo, não é do trataento em si”, opinou Correia. Os hospitais costumam adotar protocolos próprios, que envolvem desde a limpeza da unidade até o tratamento em si. E, em alguns casos, não há "comprovação" de que a regra adotada funciona. O médico conta que é comum os hospitais se inspirarem uns nos outros para firmar seus protocolos, cujos detalhes ficam restritos aos limites das unidades de saúde, assim como os médicos se influenciam.
Num artigo recente, Correia defendeu que seria também irracional, por outro lado, impor uma Medicina baseada em Evidência, sem chegar ao cerne do problema, que é a necessidade de incentivar uma nova forma de pensar cientificamente.
"Decisões [médicas]", escreveu, não devem ser apenas cópias de evidências científicas. O processo deve ser norteado por conceitos comprovados, mas também levar em conta particularidades clínicas e preferências do paciente”.
Até hoje, não existe um tratamento contra o coronavírus. Por isso, a preocupação em relação à variedade de protocolos. O que existe, hoje, é o “tratamento para os sintomas e para a resposta inflamatória do paciente”, contrapôs Fabianna Bahia, infectologista e uma das representantes da Sociedade Brasileira de Infectologia no estado. Entidades médicas lançaram cartilha com protocolos contra a covid-19 (Foto: Arquivo AFP) Há pacientes que precisam de antibióticos, outros que não; há alguns cujo corpo necessita de corticoides, alguns não. Tudo varia, cada corpo reage de uma forma ao coronavírus, disse Bahia. “Não é uma receita, é dia a dia. As vezes a gente é colocado em cheque como se não quiséssemos tratar. Quem mais quer saber como se trata, o correto a somos nós”, frisou.Os próprios pacientes, de acordo com ela, às vezes cobram, nos consultórios, receitas prontas para seus males.
As sociedades brasileiras de Infectologia e Pneumologia e a Associação Brasileira de Medicina Intensiva lançaram, juntas, uma diretriz para o tratamento da covid-19. A cartilha foi divulgada em maio do ano passado. O resto é tido, oficialmente, como experimentação.
São 77 páginas de diretrizes. Na segunda delas, há oposição ao uso de rotina da cloroquina e azitromicina, medicamentos que, juntos, chegaram a ser distribuídos por prefeituras de cidades brasileiras, como o "kit covid". A ivermectina também compunha o combo fármaco.
O paradigma dos protocolos citado por Luís Correia incorre, novamente, na pergunta: até que ponto é possível se basear somente em evidências científica num momento em que ainda sobram dúvidas relacionadas ao coronavírus.
A chave, avaliou Carlos Brites, infectologista e professor de Infectologia da Universidade Federal da Bahia (Ufba), é a “racionalidade” das decisões. “A gente não pode e não deve recomendar procedimentos que não foram adequadamente testados, principalmente quando eles mostram potenciais malefícios”, afirmou. Isso não significa deixar de tratar, ou se esquivar de decisões, segundo o médico e pesquisador. Mas pensar conforme os fatos, fazendo deduções lógicas que possam ser entendidas e aplicadas como tratamentos.
Medicamentos da polêmica Ivermectina: Remédio usado para problemas parasitários que, mesmo sem nenhum respaldo científico, é associado à possibilidade de frear a replicação do coronavírus.
Hidroxicloroquina: A cloroquina é associada à possibilidade de impedir o coronavírus de invadir as células. Nenhum estudo comprovou a eficácia contra a covid-19.
Azitromicina: É um antibiótico que tem efeito anti-inflamatório. Mas, não há comprovação de que combata o coronavírus. O uso de antibióticos sem necessidade também contribui para a formação de superbactérias.