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A menina que distribui livros

Aos 13 anos, Clara Beatriz mantém projeto de leitura que já distribuiu mais de 11 mil títulos na região de Irecê e no Pará

  • D
  • Da Redação

Publicado em 17 de outubro de 2021 às 07:00

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: Caio Antunes

Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade, escreveu o poeta Manoel de Barros (1916-2014). Esperta que só, Clara Beatriz Maciel Nunes Dourado faz da cidade de Irecê, a 480 Km de Salvador, o seu próprio quintal. E, como uma criança generosa que espalha brinquedos para outras crianças brincarem com ela, distribui livros pelas praças, com o projeto Casinha de Livros. Em quase três anos, foram instaladas 15 casinhas - duas delas no Pará - e disponibilizados cerca de 11 mil títulos, todos de graça, com o comprometimento da devolução por parte do leitor. O trabalho é fruto da arrecadação de livros em todo o Brasil. Não vale livro didático, apenas literário. A intenção é fazer crianças, jovens, adultos e idosos pegarem gosto pela literatura. 

Clarinha, como é conhecida, ganhou seu primeiro livro, ‘O Cachorrinho e as Formas’, aos quatro anos. Até hoje, se lembra da sensação. As mãozinhas percorriam as páginas com as figuras coloridas e chamativas, numa das muitas descobertas sensoriais típicas da idade. “Fiquei encantada com todas aquelas cores, aquelas formas. Era um livro bem interativo e eu gostava muito de ficar tocando nas imagens”, conta. 

Durante uma das muitas viagens à capital baiana, já maiorzinha, se deparou com uma casinha de madeira cheia de livros, em um shopping da cidade. Incutiu que também queria uma. Não para ela, mas para todos. Só sossegou quando convenceu o pai a construir o equipamento na praça pertinho de casa. “Ficamos preocupados em encorajá-la  e depois danificarem as casinhas. Não queríamos que ela passasse por essa decepção. Mas, em hipótese nenhuma houve depredação”, relembra Paulo Cefas Dourado. Começava, assim, a saga da menina que distribui livros. 

Protagonista da história, Clarinha tem na família e em muitas pessoas que cruzam seu caminho personagens importantes desse enredo. Além da ajuda do pai, a estudante de 13 anos conta com a mãe como grande influenciadora, responsável por despertar nela o amor pelos livros: “Minha mãe lia pra mim desde que eu era pequenininha. Antes mesmo de eu aprender a ler, já fui criando essa paixão pela leitura”. 

A disposição da filha ainda chama atenção de Maria José Maciel: “Ela quer desenvolver muitas ações, muitos projetos. A gente fica dando uma segurada aqui e ali, porque tem coisa que não é viável, né?”, questiona, sem, no entanto, deixar de incentivar as ideias da menina. Quando não está no Núcleo Especial de Atendimento à Mulher (NEAM) de Irecê, a delegada ajuda com a arrecadação dos livros, inscrevendo o projeto da Casinha em editais e dando suporte nas diversas campanhas que Clara promove nas redes sociais (@projetocasinhadelivros). A última, voltada à pobreza menstrual, conseguiu levantar 15 mil absorventes para distribuição entre pessoas em situação de vulnerabilidade social na região. 

Também nas redes sociais, ela realiza lives de incentivo à leitura, já tendo conversado com o ator Lázaro Ramos, a apresentadora Astrid Fontenelle, que é madrinha do projeto, e com o jornalista Rodrigo Carvalho. A propósito, ela conduziu (lindamente) o bate-papo com o correspondente da Globo em Londres. “A leitura faz você falar e ler melhor, ter um vocabulário mais amplo, conhecer lugares sem sair de casa. A leitura pode te beneficiar de muitas formas diferentes”, sugestiona Clara, que garante já ter lido “uns duzentos livros, incluindo os infantis, mais curtos”.  

Mesmo muito fã de Ruth Rocha, Clarice Lispector (1920-1977) e J.K. Rowling, as obras  preferidas de Clara são aquelas que têm a Segunda Guerra como pano de fundo. Entre elas, ‘O Diário de Anne Frank’, ‘Os Meninos que Enganavam os Nazistas’, de Joseph Joffo, e ‘O Menino do Pijama Listrado’, de John Boyne. “Me fazem refletir”, conta “Também gosto muito de ‘Malala, A Menina que Queria ir pra Escola’”. Atualmente, está lendo ‘Emma’, romance da inglesa Jane Austen (1775-1817) publicado pela primeira vez em 1815. 

Jogos e condecorações

E não pense você que Clarinha é do tipo avessa à tecnologia. “Eu aaaaamo jogos de celular, também sou humana”, enfatiza. Para ela, leitura e games são bastante compatíveis: “Muita gente coloca livro como inimigo do celular, mas assim como tem livros sobre aparelhos eletrônicos, existem ferramentas relacionadas à leitura, como o Kindle e A Árvore de Leitura, com várias obras pra você ler”. Seus jogos preferidos são Roblox, que adora jogar com a irmã Júlia, de 9 anos, e BitLife. Mas garante que jogar só aos fins de semana. 

Adolescente como quase qualquer outra, Clara Beatriz gosta de passear com seu cãozinho Theo e encontrar as melhores amigas, Duda, Ceci e Luiza. Estudante do 8º ano, suas disciplinas preferidas são ética, inglês e, claro, produção de texto. As aulas de teatro - que pararam por conta da pandemia - fazem os grandes olhos castanhos da menina brilharem. A vontade de se tornar atriz famosa (“ou jornalista”) pode estar logo ali: em novembro, ela começa a gravar ‘Sonho de Cinema’, primeiro filme do diretor Sólon Barreto.

Até lá, se divide entre a rotina em casa e na escola e as atividades com a Ashoka, organização internacional com foco em empreendedorismo social, fundada na Índia. Este ano, ela recebeu o título Jovens Transformadores Ashoka Brasil, sendo uma das 15 selecionadas pela instituição por conta do seu engajamento no incentivo à leitura. Em breve, Clarinha recebe a comenda Dois de Julho, a mais alta honraria concedida pela Assembleia Legislativa da Bahia (Alba) e se torna uma das pessoas mais jovens a obterem a condecoração. 

Inspiração 

Ah! Sabe a casinha de madeira cheia de livros que Clarinha viu no shopping quando tinha 8 anos e que a instigou a querer suas próprias casinhas? Era da Livres Livros (@livreslivros). Idealizado por Raíssa Martins, o projeto também incentiva a leitura, através da doação de livros e da ‘adoção’ de pequenos leitores. Para a escritora soteropolitana, tão importante quanto fazer é inspirar outros a se moverem: “Nunca devemos parar. Certamente, Clarinha inspira outras pessoas também, ainda mais sendo criança. Ela é um ótimo exemplo!”.